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3 DA ALDEIA À SALA DE ENSAIO: SABER, PRÁTICA E CRIAÇÃO EM

3.5 DIÁRIO DA FLORESTA

3.5.1 Da chegada: (des)encontros

No primeiro dia, na abertura das aulas, coordenação do curso organizou uma Noite Cultural, que contaria com apresentações dos indígenas e uma mesa de abertura a moldes da estrutura tradicional com apresentações de autoridades não- indígenas e indígenas.

Para a abertura da mesa, iniciaram com uma apresentação de uma dança indígena no campo de futebol. Estava previsto 10 minutos para a apresentação das

lideranças indígenas, no entanto, a “performance ritual31” quebrou com a lógica do

tempo da mesa tradicional de abertura e a apresentação se estendeu por uma hora.

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JUNQUEIRA, Carmem. Antropologia indígena: Uma introdução. História dos Povos Indígenas no Brasil, pag. 60. São Paulo, EDUC- Editora da PUC-SP, 2002.

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Chamei de performance ritual a apresentação das lideranças indígenas, no entanto, eles disseram que apresentaram uma dança. Interessante que eles tocavam instrumentos próprios, cantavam e dançavam.

Não-indígenas que estavam responsáveis pela organização do evento, ficaram constrangidos, pois não sabia o que fazer. Se interromperiam a “performance ritual” e se assim fosse, como interromperiam? Não interromperam e a apresentação aconteceu respeitando o tempo e a dinâmica tradicional proposta pelos participantes. Oficializou a abertura do Projeto Açaí II e no outro dia pela manhã começariam as aulas.

Já para início das aulas, os cursistas foram agrupados por proximidades geográficas e étnicas com vários grupos em uma mesma turma. Um ambiente completamente intercultural: cruzamentos se estabeleciam entre as diferentes etnias e a relação com os professores e professoras não-indígenas.

Quadro 4: Divisão das turmas (nº de discentes e etnias)

Nas aulas de arte/teatro os alunos e alunas tinham a referência de teatro pela televisão ou por dramatizações feitas em outras disciplinas, no entanto não tinham trabalhado com a linguagem teatral propriamente dita, improvisação, jogo teatral, interpretação, voz.

As perguntas que direcionaram o trabalho: Alguém aqui sabe contar histórias? Gosta de ouvir histórias? Resposta unânime:- Sim. Gostamos! Eu disse: - Então, no teatro a gente vai contar história. Alguém aqui sabe cantar? - Sim, muitos responderam. - Então, no teatro a gente também vai cantar. -Alguém aqui dança? - Sim, alguns responderam. -Então, no teatro a gente vai dançar. - Alguém aqui pinta? - Sim, alguns responderam. -A gente vai pintar no teatro. - Alguém aqui sabe tocar? - Sim, alguns meninos levantaram a mão. - A gente vai tocar também. - Alguém aqui sabe fazer artesanato? - Sim, a maioria mulheres levantou a mão. - A gente vai fazer artesanato também no teatro. E escrever histórias? Alguém sabe? Quase todos levantaram a mão. -Então, no teatro a gente vai escrever histórias.

Alguns estudantes não dançavam, pois, de acordo com o pastor da igreja da aldeia não era coisa de Deus. Como começamos por um bate-papo anterior para se estabelecer os caminhos da aula, alguns conflitos já foram levantados. Para alguns, dançar seria um conflito.

Assim, após a roda de bate-papo, me questiono: Por onde começar? Ouvir o que eles tinham a dizer. As relações entre mito, teatro, ritual, dança, música, artes visuais, artesanato, maquiagem, figurino, cenário, dramaturgia, contador de história, ator, personagem estavam se estabelecendo.

Naquele momento, improvisação para o teatro, jogos teatrais, teatro do oprimido, e outras metodologias de ensino de teatro, não ajudaram diretamente da maneira que eu ingenuamente esperava, mas, já possibilitavam vários caminhos. Precisava atualizar/criar propostas metodológicas de trabalho que fizessem sentido naquele contexto.

Muitos paralelos estavam sendo criados: improvisação e mito; jogos teatrais, ritual e performance; teatro do oprimido de Boal, temas geradores de Freire e o contexto intercultural indígena. Estas relações e práticas foram fundamentais para

se criar as propostas de atividades e desenvolver o que chamei de mito-drama32.

No diálogo, na intermediação e na mediação estávamos conseguindo estabelecer relações entre as diversas etnias e suas culturas o componente curricular Arte/teatro.

Posteriormente, alguns indígenas me disseram que já tinha escutado o professor de história falar que antes os padres jesuítas catequizavam os índios através das da bíblia e que naquele tempo, os padres colocavam os índios para “fazer teatro” com as parábolas. Esta colocação foi um gancho interessante para posteriormente discutir a questão do teatro como instrumento pedagógico e fazer um contraponto com o teatro no período colonial do Brasil que se limitou ao teatro e a catequese.

Com relação ao teatro e a catequese dos indígenas, eles já haviam escutado e estudado sobre este contexto histórico no Brasil e alguns estudantes já associavam

32 O mito-drama será apresentado na quarta parte desta tese a partir das atividades de improvisação propostos por Viola Spolin, jogos teatrais apresentados por Ingrid Koudela, o drama como método de ensino de Beatriz Cabral, o teatro do Oprimido desenvolvido por Augusto Boal e o método de Paulo Freire a partir dos temas geradores.

o nome de Padre José de Anchieta ao teatro feito com indígenas no período da colonização. Portanto, eles conheciam o “nosso primeiro encenador brasileiro!” Discutimos sobre a questão do teatro jesuíta, suas conseqüências e fizemos os paralelos com a catequização no Brasil e o momento atual.

No entanto, a partir das práticas de teatro realizadas por eles ao longo das aulas, a imagem relacionando Padre José de Anchieta e o teatro ia se distanciando. No nosso teatro indígena, contava-se o que eles tinham para dizer sem imposições. Trabalhávamos a expressão artística. A emoção. A interpretação. O corpo e a voz. Fomos relacionando e tentando observar como se inseria o teatro nas diferentes culturas. Nas suas práticas diárias, na caça, nos jogos e brincadeiras de faz-de- conta, nos ritos de passagem, nas festas e danças tradicionais, na contação de histórias, na imitação de animais da floresta. Importante ressaltar que a representação teatral já está presente em todas estas atividades cotidianas, porém, estabelecer o palco e platéia, ou seja, apresentar algo para um determinado público não era a prática comum. A idéia de platéia e o lugar palco-platéia foram se estabelecendo.