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CORPO DE MOVIMENTOS

No documento Corpo, fábrica do sensível (páginas 58-60)

reciclagem A ligação da casa-pátio da Quinta da Malagueira às memórias dos seus

II. CORPO DE MOVIMENTOS

“No começo era o movimento. Não havia repouso porque não havia paragem do movimento. O repouso era apenas uma imagem demasiado vasta daquilo que se movia, uma imagem infinitamente fatigada que afrouxava o movimento. Crescia-se para repousar, misturavam-se os mapas, reunia-se o espaço, unificava-se o tempo num presente que parecia estar em toda a parte, para sempre, ao mesmo tempo. Suspirava-se de alívio, pensava-se ter-se alcançado a imobilidade. Era possível enfim olhar-se a si próprio numa imagem apaziguadora (...). Era esquecer o movimento que continuava em silêncio no fundo dos corpos. Microscopicamente.”121

A cada momento, a arquitectura participa na exploração e construção da imagem que o ser humano faz de si e do mundo, e possibilita essa aparente imobilidade. A cada momento, a arquitectura numa síntese de ideias, símbolos, funções, cai sobre a materialidade, e insere o corpo num determinado modo de viver. A sua cristalização escreve sobre o corpo, ritmos, hábitos; influi nos seus movimentos, nos visíveis e nos do pensamento, em simultâneo. A sua presença faz- se então, não como extensão, mas enquanto própria maneira de existir do corpo, que procura o equilíbrio.122 Num avançar mútuo, a história do ser humano emaranha-se na história dos materiais, dos seus usos, transforma-se com eles. A arquitectura será, assim, não apenas um resultado, como será também agente na construção do corpo. Por um lado, no fazer casa, o corpo é matriz para as suas criações, sendo que a mobilidade da percepção daquilo que o corpo é, ou quer ser, logo provoca a firmeza do que se constrói; por outro, os movimentos orgânicos fixados no espaço, ganham a seu modo a função de verbo, são construtores de acção, de ritmos, memória corporal e projecções.

Retomemos José Gil e o seu momento inaugural. “No começo era o movimento porque o começo era o homem de pé, na Terra. Erguera-se sobre os dois pés oscilando, visando o próprio equilíbrio. O corpo não era mais que um campo de forças atravessado por mil correntes, tensões, movimentos. Buscava um ponto de apoio. Uma espécie de parapeito contra esse tumulto que abalava os seus ossos e a sua carne.(...) Faz apelo ao movimento, que proporcionará claridade e estabilidade à sua extrema agitação interior. Por meio de movimento domará o movimento: com um gesto libertará a velocidade que arrebatará o seu corpo traçando uma forma de espaço. Uma forma de espaço-corpo efémero, por cima do abismo.” 123

Entre os animais existe uma associação rígida entre estrutura e função, pela qual subsistem as características da espécie, por sua parte, o ser humano na conquista

121 - GIL, José, Movimento total: O corpo e a dança, Relógio D’Água, Lisboa, 2001, p.10 122 - Citando Noël Arnaud : “Eu sou o espaço onde estou” apud PALLASMAA, Jhuani, Una

arquitectura de la humildad, p.159

da sua indeterminação, disjunta forma e função. Os movimentos humanos são diferentes dos movimentos animais, na medida em que pelo menos, se dissemelham entre si e se superam a uma velocidade superior. Assim, a estabilidade estática da arquitectura que associa a permanência do construído a uma dependência da permanência dos usos que o geraram, pela resistência que oferece à actualização das práticas do ser humano torna-se, nesse sentido, contraditória. Sobre esta questão Bernard Tschumi é directo: a “inerente confrontação na arquitectura entre espaço e uso, e a inevitável disjunção dos dois termos, significa que a arquitectura é constantemente instável, constantemente no limiar da mudança. É paradoxal que três mil anos de teoria arquitectónica tenham tentado afirmar o preciso oposto: que arquitectura tem que ver com estabilidade, solidez e fundação.”124

Na construção do ser, o humano procura sempre ser mais livre, e nisso está também implícita uma liberdade maior de movimentos, uma conquista a que a arquitectura não se vê alheia; os dispositivos da arquitectura serão possibilitadores de movimentos, não só dos já conhecidos, mas de outros a construir, movimentos de libertação.

Se considerarmos que o pensamento e aquilo que cunhamos de realidade, o domínio das coisas com peso e volume, correm a velocidades diferentes, no momento em que proporciona equilíbrio e sustento às ideias do homem, a arquitectura, também lhes oferece obstáculo, tornam-se inóspitas aos seus movimentos. Neste sentido, revela-se ser condição da arquitectura atender à imprevisibilidade dos movimentos que quer apoiar para que aquilo que construímos sobre os pensamentos e práticas de hoje não se torne obstáculo aos pensamentos e práticas de amanhã. A tarefa a que nos propomos aqui é por isso a de reunir elementos que possam contribuir para a arquitectura e para o arquitecto na investigação de uma posição não definitiva, mas potenciadora de situações que se possam regenerar.

O texto reciclagem, do capítulo anterior, será já um espaço de transição para este segundo capítulo em que, pelo interesse no papel co-participativo da arquitectura na conquista desse tipo de movimentos mais livres, se encaminha o discurso à “habitação humana”, ao domínio doméstico que parece coincidir com o território privilegiado da subjectividade, e que, nessa condição, como escreve Ignasi de Solà-Morales, “sem dúvida, (...) especialmente na grande cidade, parece continuar a ser o tema quantitativamente mais importante que compete à arquitectura e aos arquitectos.”125

124 - TSCHUMI, Bernard apud PEREIRA, Godofredo, Delírios de poder, Opúsculo 3 - Pequenas

Construções Literárias sobre Arquitectura, Dafne, Porto, 2007, p.3

125 - SOLA-MORALES, Ignasi, Presente y Futuros: Arquitectura en las ciudades, Actar, Barcelona, 1996, p.17

No documento Corpo, fábrica do sensível (páginas 58-60)