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imaginação material No discurso de Peter Zumthor encontram-se várias pistas sobre como pode

No documento Corpo, fábrica do sensível (páginas 34-40)

a arquitectura pensar sobre esse toque entre corpos. A que aqui se quer considerar, é a de uma arquitectura sem mensagem que, esclarecendo, não terá que ver com neutralidade mas antes com uma não determinação58, será a potencialidade das obras que não querem dizer nada além da sua presença. É uma ideia próxima à de Merleau Ponty quando diz que “Procurar a essência do mundo não é buscar aquilo que ele é em ideia, uma vez que o tenhamos reduzido a tema de discurso, é buscar aquilo que de fato ele é para nós antes de qualquer tematização.” 59

“Quando observamos objectos ou obras que parecem repousar dentro de si próprios, a nossa percepção torna-se, de uma maneira especial, calma e obtusa. O objecto com que nos deparamos não nos impõe nenhuma mensagem, simplesmente está lá. A nossa percepção torna-se, então, silenciosa, imparcial e não possessiva. Encontra-se além dos sinais e símbolos. Está aberta e vazia. (...) Agora neste vácuo da percepção, pode surgir uma memória no observador que parece ter origem na profundidade do tempo. Ver o objecto significa agora também adivinhar o mundo na sua totalidade, uma vez que não há nada que não se possa perceber”60. Será uma experiência em que o “exterior não agride; torna-se arquitectura anónima”.61 Aquilo que participa na imaginação de Peter Zumthor quando pensa em arquitectura, desvia-se de teorias abstractas, é “a realidade dos materiais - pedra, tecido, aço, cabedal...”62 - que lhe interessa, mais do que as formas que os materiais constroem interessam-lhe as suas propriedades sensoriais. Pensar nestes termos é também reduzir os imperativos sobre a arquitectura, pensá-la fora de conceitos e estilos, condições passageiras, e encontrar a sua justificação no encontro com coisas concretas como a gravidade, clima e sistemas construtivos. Pensar como diz P. Zumthor “o evidente”. E, no entanto, “o difícil”63.

Em conformidade com esta ideia de uma arquitectura sem mensagem, que é diferente de uma arquitectura muda, está a distinção que, segundo J. Pallasmaa, Gaston Bachelard (1884-1962) faz entre “imaginação formal” e “imaginação

58 - A propósito da arquitectura associada ao espectáculo, Fernando Quesada, fala-nos de uma estratégia de medição do sentimento pelo “cálculo das emoções do espectador, a conversão imediata da resposta sentimental em dados quantificáveis.”; QUESADA, Fernando, Del cuerpo a la red : cuatro ensayos

sobre la descorporeización del espacio, Assimétricas, Madrid, 2012

59 - Ponty, Merleau apud ABRAM, David, Magia do sensível, (A): percepção e linguagem num mundo mais do que humano, op. cit., p. 13

60 - ZUMTHOR, Peter, Pensar a arquitectura. Gustavo Gili, Barcelona, 2005, p. 17

61 - VIEIRA, Siza in BARBARIN, Antonio Ruiz, Luis Barragán frente al espejo : la otra mirada - Barcelona : Caja de arquitectos, 2008, p.11

62 - ZUMTHOR, Peter, Pensar a arquitectura. Gustavo Gili, Barcelona, 2005, p. 17 63 - idem, ibidem

material”. As imagens geradas no corpo pelos materiais “projectam experiências, lembranças, associações e emoções mais profundas e penetrantes que aquelas evocadas pela forma”64, esta, enquanto coisa fechada nos seus contornos, de captura imediata terá uma potencialidade diferente daquela que os materiais carregam e estes, por sua vez, mais densos, estimulam uma reciprocidade viva com aquele que percebe, não se deixando fechar. A percepção do meio não se dá de tal forma que seja possível engavetar sensações de naturezas diferentes, sensações puramente olfactivas à parte de outras puramente auditivas ou tácteis, dá-se numa inevitável simbiose, permitindo ao corpo desorganizar-se e organizar-se, como é próprio de um corpo vivo.

Essa relação entre forma e matéria terá semelhanças com a que podemos fazer notar entre a palavra e a imagem (de natureza diversa). Enquanto a palavra isolada procura ser expressão de um consenso, convergindo para um determinado significado, a imagem pelo seu carácter incompleto mantêm o interesse desperto, é como “a pedra [que] nos fala das suas longínquas origens geológicas, da sua durabilidade e a sua inerente permanência, ou o “tijolo [que] nos faz pensar na terra e no fogo”65, ou a madeira que nos conta de uma vida anterior enquanto árvore.

No encontro material, a permeabilidade do corpo em que circulam as sensações é capaz de formar uma intensidade, que mais do que habitar um corpo fechado permite habitar a intimidade, dá-se o diálogo sensorial entre corpos, o humano e o da arquitectura.

A luz é um material da arquitectura, a sua materialidade não se deixa negar até, pela temperatura do corpo.66 A luz não é coisa que chegue depois e faça aparecer indiferenciadamente o construído. Existe desde o início. Infiltra o corpo da arquitectura provoca reacções diferentes no encontro com as superfícies.

Quando cai sobre os outros materiais não é só uma aparência que é revelada: coloca planos à frente de outros, fazendo perceber distâncias, ajudando assim à construção do tempo; faz sentir texturas e brilhos pela visão, revela as propriedades de outros materiais pelo quanto absorvem ou nos devolvem a luz, revela a sua resistência, se são leves ou pesados, etc. E essas propriedades não são absolutamente exteriores, essas propriedades que nos chegam com a luz, encontram

64 - PALLASMAA, Juhani, Una arquitectura de la humildad, op. cit., p.135 65 - idem, Imagen Corpórea: Imaginación e imaginario en la arquitectura, op. cit., p.55

66 - “A um não arquitecto há uma coisa que o aborrece muito, e é quando digo que a luz é um material. E não o digo eu, um tal Newton disse que era corpuscular, assim (...) é um material. E nós arquitectos teríamos que utilizá-la como material. E digo teríamos porque muitos não o fazem.De facto, a luz é o material mais luxuoso que há, o material mais luxuoso com que trabalhamos (...); mas como é grátis, não o valorizamos.”; BAEZA, Alberto Campo, in http://www.jotdown.es/2014/03/alberto-campo-baeza-la- luz-es-el-material-mas-lujoso-que-hay-pero-como-es-gratis-no-lo-valoramos/

estrutura física daquilo que percebe, numa relação quase mimética.

Pela luz chega-nos a cor. E mais uma vez, não é uma mera aparência que nos chega: “quanto mais profundo é o azul”, diz W. Kandinsky, “mais poderosa é a sua atracção sobre o homem, a chamada infinita que desperta no seu desejo de pureza e imortalidade. O azul é a cor tipicamente celeste que desenvolve profundamente o elemento de quietude”67. Na investigação da cor, se considerarmos o trabalho de James Turrel, será inevitável o fascínio pelos seus mistérios, pela maneira como lhe dá forma, é capaz de nos extrair da comodidade da percepção habitual e deixar os sentidos confusos. A sua obra convida a questionar a natureza da visão e da luz. Diz o autor que o seu trabalho “não tem objecto, (...) nem foco.”68 Interessa-lhe criar experiências de “pensamento sem palavras”69. Diz também que, sem objecto no qual nos possamos centrar, aquilo que observamos é a nós mesmos, a observar.

Na casa Gilardi do arquitecto mexicano Luis Barragán (1902-1988) “o comedor (...) não é só um espaço destinado a um uso em concreto, mas está concebido como a estância mais importante da casa, o lugar de reunião mas também de meditação e silêncio (...) Para o conseguir, Barragán opta por introduzir um elemento estranho dentro do espaço: a piscina (...). As cores, o azul e o vermelho, conferem a este espaço uma intensidade assombrosa e mutante, irreal, que se vai transformando pela luz zenital ao longo do dia. E desde o corredor se segue sentindo a luz dourada tingindo o ar. Luz criando espaço”70. A piscina, esse elemento desnecessário, do ponto de vista utilitário, torna-se vital para incubar uma certa maneira de estar, “mais do que uma paisagem”, os elementos reunidos pela arquitectura participam na construção de “um estado da alma.”71

Aproveitando a entrada na casa Gilardi, introduz-se um outro material: a água. Na mesma piscina da casa Gilardi, o pilar não estrutural, “lembra que o plano da água é um espelho em que a cor se desmaterializa ao introduzir-se o pilar na água escura, encena a diferença entre o mundo sólido e o líquido.”72 O fascínio que a água exerce sobre nós, é capaz de fazer mover o nosso imaginário, cativam-nos os fenómenos a que damos os nomes de reflexão, inversão, refracção, que transformam a imagem da coisa vista directamente, perturbando assim a sinceridade dessa primeira aparência.

Um diálogo sensorial que podemos encontrar na descrição de P. Zumthor:

67 - KADINSKY, Wasily apud BARBARIN, Antonio Ruiz, Luis Barragán frente al espejo : la otra

mirada. Barcelona, Caja de arquitectos, 2008, p.157

68 - TURREL, James in http://alfalfastudio.com/light-and-space-james-turrell/ 69 - idem, ibidem

70 - BARBARIN, Ruiz, Antonio, Luis Barragán frente al espejo : la otra mirada. op. cit., p. 157 71 - PALASMAA, Juhani, Imagen Corpórea: Imaginación e imaginario en la arquitectura, op. cit., p.152

me respirar mais livre, não sei como denominar esta sensação, mas vocês sabem o que quero dizer.”73

Sentimos isso por exemplo a partir da temperatura, quando a materialidade das coisas faz variar o calor do corpo - o fogo e o gelo são exemplos extremos mas cada material terá uma temperatura, “uma temperatura física e provavelmente também psíquica”74. Uma temperatura não quantificável onde, tenhamos em mente, por exemplo, o metal ou a madeira, podem também participar outros elementos como a cor ou a textura. Uma temperatura vermelha ou azul, assim como uma temperatura rugosa.

Sentimos isso pela forma como “cada espaço funciona como um instrumento grande”75, quando por exemplo, nos devolve os sons dos nossos passos enquanto caminhamos, confirmação da nossa presença e movimento. E sentir isso é experimentarmo-nos a partir desses fenómenos. Mais do que observadores somos parte das atmosferas que criamos, somos tocados e atravessados por elas, a forma como a matéria nos toca permite-nos assumir existências diferentes.

73 - ZUMTHOR, Peter, Pensar a arquitectura. Gustavo Gili, Barcelona, 2005, p. 55 74 - idem, ibidem, p. 35

O corpo-que-imagina molda a matéria. Molda-se.

i7. em cima: Alberto Campo Baeza, Caixa de Granada, Espanha, 2001 i8. próxima pág.: Herzog & de Meuron, Dominus Winery, California, 1998

decisões tácteis

No documento Corpo, fábrica do sensível (páginas 34-40)