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co isolamento Escreve José Gil que “se a afirmação individual é a primeira tendência

No documento Corpo, fábrica do sensível (páginas 119-122)

fundamentalmente humana, a participação cósmica é a segunda.”271

Bernardo Soares, o heterónimo de Fernando Pessoa, é exemplo da dinâmica que coloca o corpo entre o isolamento e a sua vontade de expansão. “Há constantemente uma habitação de um quarto, sobretudo de um quarto obscuro que tem duas linhas de fuga que marcam o habitar do Bernardo Soares. Uma é a janela, uma abertura cuja linha de fuga se espraia, através das forças da visão, sobre a cidade que é o território (...) e é através dela que o seu corpo é investido. E, depois, há o fundo do quarto, (...) que é como uma rede subterrânea e cósmica de forças e de abertura”272. Dois elementos, a janela e o fundo do quarto, que movem Bernardo Soares entre duas imensidões. Ou uma só. Dois elementos, capazes de transformar as proporções humanas; elementos de medidas finitas, à escala humana, onde cabe o infinito.

Neste ponto, deixa-se o fundo do quarto para seguir na direcção da janela. A janela contemporânea é bastante telemática. Por meio dela o sujeito contemporâneo admite participações exteriores no diálogo interior, uma “auto-simbose”273 que, dentro de casa, substitui as relações da família tradicional. Contudo, se por meios telecomunicativos o sujeito contemporâneo vê o seu território alargado como nunca antes, na medida em que, se pode pôr a par das últimas descobertas astronómicas, dos acontecimentos globais, ou das conquistas científicas à nano-escala, esse é, em grande medida, um alargamento virtual: como na janela que rasga a parede e que ganha uma dimensão de janela-cenário, a janela telemática, janela-ecrã, reserva também um afastamento relativamente ao corpo, há um mundo que chega a casa, essencialmente, por via da visão. Neste contacto com o mundo, paradoxalmente, sem tacto, desenvolve-se uma relação mais próxima com a vizinhança virtual do que com a local.

O afastamento pode encontrar entre as suas causas a defesa das “sensações” e “acontecimentos interiores, privados e absolutamente impartilháveis” de cada um, “se o real exterior pode ser discutido, se pode ser alvo de concordância ou discordância, o interior”274 não. Mas, podemos vê-lo também, num outro sentido, como manifestação de um - citando Marx (1818 - 1883) -“modo de produção que isola uns de outros, em vez de (...) pôr em contacto recíproco.” Modo de produção, que será equivalente a dizer, modo de habitar. Marx assim se referia à organização camponesa em França, no entanto, estas palavras não perdem todo o sentido se as fizermos referir ao modo desarticulado em que nos organizamos hoje. Continuava

271 - GIL, José, Falemos de Casas: Entre o Norte e o Sul, op. cit., p. 91 272 - idem, ibidem

273 - expressão utilizada por Peter Sloterdijk em Esferas III: Espumas

274 - TAVARES, Gonçalo M., Atlas do Corpo e da Imaginação: teorias, fragmentos e imagens, op. cit., p. 134

Marx: “a parcela, o camponês e a família; ao lado outra parcela, outro camponês e outra família. Assim a grande massa da nação francesa forma-se pela simples adição de magnitudes homólogas, como um saco de batatas, por exemplo, forma um saco de batatas”, “os isolamentos, que impedem que os habitantes das parcelas levem a cabo o trânsito do modo de ser de uma classe em si a uma classe para si.”275

Neste assunto P. Sloterdijk é peremptório. Recorrendo ao exemplo do apartamento, escreve: “assim como o modernismo soviético se condensou no mito da vivenda comunal”, que havia de ser marca “do Novo Ser Humano, adequada para o coletivo, assim se centra o modernismo ocidental no mito do apartamento, onde o indivíduo liberado, flexibilizado no fluxo de capital se dedicada ao cuidado de relações consigo mesmo”276.

Contudo, se o empilhamento habitacional satisfaz na protecção do indivíduo e dos seus acontecimentos impartilháveis, a separação por paredes e lajes comuns, pelas quais resultam, muitas vezes, comunicações indesejadas, denunciam um co-isolamento e a feliz inevitabilidade de um território de habitar partilhado. Como “dispensador de conforto e distanciador [o apartamento], continua a ser um espaço do mundo”. “Aberta ao mundo, ainda que longe, a egosfera” como P. Sloterdijk chama ao apartamento “permite a entrada a partículas de realidade, ruídos, sensações, compras, achados e convidados escolhidos.”277

275 - SLOTERDIJK, Peter, Esferas III: Espumas,op. cit., p. 432 276 - idem, ibidem, p. 433

Ligar o corpo a dispositivos tecnológicos: uma forma de extender o corpo dentro de casa.

i57. Kurt Weinhold, “Man with radio (homo sapiens)”

intimidade alargada

“(...)

Do muro nasce a coluna O muro fez bem ao homem. Com a sua grossura e força protegeu-o da destruição.

Mas em breve a vontade de olhar para fora fez o homem esburacar o muro

e ao muro doeu muito, e disse, ‘Porque me fazes isto?’ (...)

E o homem respondeu

Vejo coisas maravilhosas lá fora (...)”

Retomemos a metáfora das esferas de P. Sloterdijk, voltemos ao seu mundo-espuma, desta vez, atentemos não sobre todo o conjunto mas sobre a sua unidade base: a “microesfera”. Microesfera é o nome que P. Sloterdijk dá ao “espaço interior produzido pela proximidade entre humanos” e que caracteriza “como um sistema de imunidade espacial anímico”, um espaço “muito sensível e capaz de aprender.” A microesfera vem, na tese do filósofo, contrapor-se a um pensamento elementar do qual é herdeiro o pensamento filosófico e científico ocidental - baseado na substância simples indissolúvel. Vem, assim, a uma simples contrapor uma base complexa. “O acento põe-se na tese de que é o par, e não o indivíduo, que representa a magnitude mais autêntica; isso significa, por sua vez, que, frente à imunidade-eu, a imunidade-nós encarna o fenómeno mais profundo.”278 Como alega P. Sloterdijk, “o espaço humano está formado desde o princípio, literalmente

ab útero, primeiro bipolarmente, pluripolarmente em etapas mais desenvolvidas;

possui a estrutura e dinâmica de” um “entrelaçamento (...) de seres vivos. Nela vale a lei de incorporação por assimilação (...). Trata-se de um espaço híbrido elástico, que responde à deformação não só com a recompustura, mas com a expansão.”279

Este espaço de fricção, humano, é o que trata também a arquitectura. Há, neste contexto, uma ideia de Diller+Scofidio sobre a arquitectura, que nos cativa, e que, segundo conta Fréderic Flamand, faz corresponder a arquitectura ao “ ‘que

278 - SLOTERDIJK, Peter, Esferas III: Espumas, op. cit., p. 15 279 - idem, ibidem, p. 18

No documento Corpo, fábrica do sensível (páginas 119-122)