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Corpo e sobrevivência psíquica

No documento FERNANDO ALBERTO TADDEI CEMBRANELLI (páginas 63-67)

2. ASPECTOS SÓCIO-CULTURAIS DAS SITUAÇÕES DÚPLICES

2.6 Corpo e sobrevivência psíquica

O bioascetismo contemporâneo, malgrado sua inspiração foucauldiana, reúne elementos das três moradas éticas, sobretudo do pólo disciplinar, mas não apenas deste; pode- se entender que o corpo tornou-se o casulo, o exoesqueleto de um “eu” mínimo que carregamos às costas, e em cuja superfície “as imagens do recalcitrante e do abjeto (as rugas, estrias, as manchas marcas que nos lembram o envelhecimento e a morte) ameaçam irromper” (COSTA, op. cit., p.78). Mas o individuo está condenado a vigiá-lo incessantemente para que o recalcitrante e o abjeto não o desalojem de seu próprio corpo.

O bio-ascetismo configura um campo multiforme de tentativas erráticas, instáveis, por vezes desesperadas de enraizamento, alguma forma de habitar (ou de acampar, forma bem mais precária e provisória), a partir das significações investidas no corpo e na saúde.

Algo similar se passa com o conceito de biossociabilidade, formulado Rabinow (1999); uma coisa é supor que os discursos e práticas que se originam no desenvolvimento da genética e da biologia possam modificar comportamentos, induzir a formações identitárias ou novas redes sociais; outra é inferir que a biotecnologia “reinventa” a subjetividade, transformando radicalmente os modos de viver e até mesmo o que se entende por vida.

Quer nos parecer, em lugar disso, que manter-se bio-sociável é só uma das alternativas em face da experiência subjetiva de desterritorialização, mas haveria outras; por exemplo, a de tornar-se auto-degradável, que significaria desaparecer em meio à multidão

anônima, experimentando uma forma de sócio-solubilidade (com perdão dos neologismos), sonho ou pesadelo, a depender do paciente.

Penso que a articulação que caberia explicitar é a que liga a saúde, o corpo e a noção de sobrevivência psíquica. O paradoxo que há entre estes termos é apenas aparente.

Vejamos, para começar, a palavra “sobrevivência”. Ela é tão dramática e grandiloqüente que parece sempre evocar as situações em que nos deparamos com a catástrofe; quando estamos diante da iminência de morrer, quando enfrentamos a proximidade incômoda da morte e dela nos livramos! Mas há um sentido bem menos espetaculoso: “sobreviver” é também resistir, permanecer dia após dia, malgrado as intempéries e o passar do tempo. Os prisioneiros dos campos nazistas, por exemplo, “sobreviveram”, e alguns deles foram capazes de atos nada heróicos para cumprir com este objetivo. Saddam Hussein passou seus célebres dias num buraco e ali teria preferido ficar, sem sombra de dúvida, a ser capturado pelo inimigo e exposto à execração, como foi, até o ato final. Se lhe fosse dado escolher, certamente teria preferido morrer sob a terra; isto equivaleria a “sobreviver” na imaginação coletiva, sob a forma de um mistério ou de uma lenda a ser cultivada. Um exemplo menos exótico: a maioria de nós, comuns mortais, sobrevivemos cotidianamente ao movimento de olhar o próprio rosto refletido no espelho; não ficamos surpresos nem assustados, nem cedemos à tentação de chorar a passagem do tempo quando, ao exame do rosto, notássemos que algo está mais franzido, amarrotado, flácido, amolecido ou sulcado, indigno de ser visto ou tolerado.

Sobreviver, nestes casos é justamente “não ver”, tornar-se invisível, seguir em frente como se nada estivesse acontecendo. Sobrevivência pode implicar o gesto nada honroso de subtrair-se à luz ou, como acontece a certas espécies do reino animal, mimetizar-se para não ser visto.

Uma paciente em análise, toda vez em que o enfrentamento com o espelho a deixava magoada, derivava suas associações para temas ecológicos e se punha a interrogar sobre o apocalipse : “Sobreviveremos ao aquecimento global, à destruição da natureza?” Ao dizer “nós”, ela compunha com o analista um sujeito indeterminado, bastante amplo para conter toda a espécie humana, ameaçada em sua sobrevivência. Assim, ela se defendia da ferida narcísica. Ao dizer que “estávamos todos no mesmo barco” ela produzia um efeito “oceânico” que a redimia.

Talvez, toda sobrevivência seja essencialmente psíquica, e não porque esteja ligada ao narcisismo.

É preciso apontar uma deturpação, muito freqüente, do epítome “cultura do narcisismo”: o sentido que Lasch (1984) tinha em mente, ao contrário de ser um diagnóstico da inflação do individualismo e uma busca do prazer hedonista, era exatamente este, o de nomear uma estratégia de sobrevivência psíquica26.

Figueiredo (1995b), na passagem que citamos antes, apontava também esse aspecto sobrevivencial, anti-diluviano, dos investimentos maciços no si mesmo e o relacionava ao problema da confiança, que é central na sociedade de risco.

No casulo, deve caber o mínimo, e sua mobilidade e portabilidade são marcas de sua máxima funcionalidade.

No plano mais especificamente da clínica psicanalítica, Joyce Mcdougall (1989, 1995) propôs que o compromisso com a sobrevivência psíquica pudesse ser a unidade básica de uma ética para o exercício da psicanálise. Em certa altura, ela a definiu como

“a capacidade de o indivíduo de sustentar um sentimento de identidade em suas dimensões tanto subjetiva quanto sexual, bem como de manter um sentimento de estabilidade narcísica mesmo quando os níveis de auto-estima sejam constantemente afetados por circunstâncias flutuantes” (MCDOUGALL, 1995, p. 256).

A definição não é fácil. Envolve vários termos e armadilhas, como reconhece a própria autora. “O que é e o que não é considerado essencial à sobrevivência psíquica dos seres humanos?” – pergunta-se ela. “Como vamos julgar a organização psíquica em um indivíduo cujas técnicas de sobrevivência diferem amplamente das nossas próprias ou da ampla maioria dos cidadãos?” (op. cit., p. 257). Poderíamos acrescentar que a menção à identidade é também problemática do ponto de vista da psicanálise, porque ela carrega a marca daquilo que é estático, do que é idêntico a si mesmo, ilusão de permanência que o sujeito do inconsciente está sempre a desautorizar.

Mas, para Mcdougall, a questão da sobrevivência está estreitamente ligada a seu foco de interesse teórico-clínico que são os indivíduos comprometidos com formas de “sexualidade arcaica”, de que derivam comportamentos extremos, além da doença psicossomática, e das soluções aditivas. Todas elas, condições que se relacionam a falhas que teriam acontecido num nível bastante primitivo de constituição do psiquismo, anteriores ao conflito edípico e muito próximas do engendramento e manifestação de uma psicose.

26

Como disse o próprio Lasch em obra posterior: “neste ensaio eu espero antes de tudo esclarecer o que A

cultura do Narcisismo parece ter deixado na obscuridade ou na ambigüidade: que o cuidado consigo que parece

Mcdougall tende a vê-las como respostas primitivas e infra-verbais, ligadas a experiências que não lograram produzir uma representação mental verbal, ou da ordem do “pensável” (MCDOUGALL, op. cit., p. 69). Haveria ali, portanto, uma pane ou um curto- circuito da linguagem e dos processos secundários. E o desafio clínico seria, justamente o de forjar canais de simbolização ou de comunicação para tais dramas que se apresentam na clínica como “sem saída”. A chance de êxito decorreria de certo cálculo:

“Quando a estrutura do paciente se presta a isso, a situação analítica, assim como a relação com o analista, aparecerá como o lugar de segurança, sob a proteção do qual eles podem sem perigo exprimir suas fantasias primitivas disfarçadas e os roteiros profundamente arcaicos de seu teatro psíquico interno” (MCDOUGALL, op. cit, p. 46,

grifo meu).

É este modo de conceber o problema do tratamento de pacientes com estas características que, a meu ver, torna ainda mais pertinente a evocação da sobrevivência psíquica, como referência a ser levada em conta pelo analista nos contextos em que as preocupações com a saúde e a fragilidade física entram em cena (ou “irrompem na sala”). Vimos como sobreviver é o que se afigura como a tarefa paradoxal e desestabilizadora para o sujeito contemporâneo desde sua impossibilidade de configurar um ethos, uma morada.

Ao final do percurso sinuoso deste capítulo, sugiro que as questões relativas à sobrevivência psíquica, quando se apresentam conectadas ao corpo, aos sintomas somáticos ou sob a forma difusa de preocupações com a saúde, sejam encaradas como grandes motoras de situações dúplices de tratamento. Elas concernem a pacientes fortemente susceptíveis de recorrer ao dispositivo médico, que, no entanto, não podem prescindir de outros recursos terapêuticos, dentre os quais, a psicanálise.

No documento FERNANDO ALBERTO TADDEI CEMBRANELLI (páginas 63-67)