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Uma psicopatologia mínima para as situações dúplices

No documento FERNANDO ALBERTO TADDEI CEMBRANELLI (páginas 86-89)

3. ASPECTOS CLÍNICOS DAS SITUAÇÕES DÚPLICES

3.3 Uma psicopatologia mínima para as situações dúplices

Procurei ressaltar que nas análises precedentes, os autores empreendem uma crítica da cultura e do social e um diagnóstico da pós-modernidade, em que os psicofármacos e as drogas desempenham papel estratégico. Parece que o caráter “sofístico” dos medicamentos modernos (FÉDIDA, 1996), enquanto promessa de supressão do sofrimento e do mal-estar, é denunciado por todas elas. Em algumas, (especificamente a de Birman, mas, em certa medida, também a de Roudinesco) a crítica comporta uma denúncia da colusão do político com a ordem médica, onde se aninharia a ambição de uma regulação dos conflitos entre os sujeitos, entre os sujeitos e os grupos, mantendo todos sob o embalo de um “desfrute fármico”: a tolerância da sociedade capitalista de consumo para com o uso abusivo de medicamentos e drogas seria a outra face do processo de docilização dos corpos e medicalização da vida.

Daí á hipótese de um processo único, abrangente, intersticial, heterogêneo e múltiplo, que atravessa todo o social, há apenas um passo. A biopolítica é este passo. Conceito de tal modo inclusivo que nada lhe escapa: ele vai do micro ao macro, do molar ao molecular. Vimos que, sob o enunciado de que “biopolítico” seria todo o discurso ou prática que se apodera da vida enquanto fato biológico (a vida nua) para dela fazer seu objeto, cabe rigorosamente tudo: das explorações do genoma ás neurociências; das academias de ginástica, aos livros de auto-ajuda; do planejamento familiar ao universo das psicoterapias. A palavra e o conceito se declinam triunfalmente nas teses acadêmicas, sendo acolhidos por vários autores psicanalistas (dentre as leituras que acompanhamos, o caso emblemático parece ser o de Joel Birman).

Caberia, no entanto perguntar, singelamente, se a psicanálise não seria parte integrante da biopolítica. Como dar-lhe um salvo-conduto que a exima de prestar contas, ao lado de todas as outras ciências do homem? Por quais atalhos do pensamento do “Fora” (PELBART, 1989, 2000), não a incluiríamos, também ela, “dentro” da contabilidade das forças que fazem falar a subjetividade, como uma das formas de manifestação do biopoder? Afinal, para sermos coerentes com o pensamento foucauldiano, tomemo-lo por inteiro: a psicanálise é um produto da sociedade disciplinar, e sua finalidade não é outra senão promover a

“normalização das condutas e a produção de corpos dóceis, necessários à manutenção do sistema dominante” (CHAVES, 1988, p. 7)34.

No entanto, é possível ver que, mesmo quando não são inseridos na hipótese biopolítica, os psicofármacos permanecem estrategicamente situados como a chave que liga e desliga o circuito das explicações, sendo o elemento que dá passagem da experiência clínica (sobretudo, quando algo não dá certo) para uma teoria psicanalítica da cultura.

Diante disso, a pergunta que se impõe é outra: quanto certos diagnósticos do social que partiram de situações de impasse na experiência analítica (quando o paciente, uma vez medicado, parou de associar, abandonou o tratamento, etc.) são tributários de projeções do próprio analista ou de sua contratransferência, hipostasiadas em interpretação? Questão incômoda, cuja validade vem de lembrarmos que a clínica psicanalítica se faz hoje em dia com pacientes medicados a todo momento.

Mas o aspecto mais importante a considerar, nesta altura, é a ambição que se evidencia, em alguns autores, de delinear uma psicopatologia da contemporaneidade.

No plano das explicações da subjetividade contemporânea (sem a pretensão de homogeneizá-las, nem atribuir a elas uma convergência de propósitos e intenções), é possível identificar um denominador comum para as “novas doenças da alma”, como diz Kristeva: a indisponibilidade para a elaboração mental, um empobrecimento dos recursos de simbolização que se conecta a um déficit da experiência subjetiva; ao lado deste, uma intolerância à dor psíquica.

Nesse contexto, o fármaco tanto pode comparecer como o lenitivo para a dor, no seio de uma cultura que não a tolera; quanto o objeto que preenche um vazio subjetivo, uma prótese de vida psíquica para os que não a podem ter, correspondendo a um anseio de normalização e adaptação.

Com isto, em certos momentos, é possível ver que as interpretações psicanalíticas do social conduzem a uma crítica das formas de normalização que alienam o sujeito. De fato, historicamente, a psicanálise sempre se revigora e assume uma postura genuinamente psicanalítica “quando toma como objeto de investigação a normalização socialmente imposta ou a pseudo-normalidade resultante de injunções primordialmente psíquicas” (FERRAZ, 2003, p. 36).

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Ernani Chaves mostra que ao inaugurar-se a fase genealógica de seu pensamento, quando a questão do poder emerge com toda a força, a crítica de Foucault à psicanálise deixa para trás as ambigüidades e se “radicaliza” na direção de apontá-la como “expressão do biopoder” (CHAVES, 1988).

No entanto, parece que em lugar de delinear uma psicopatologia do sujeito contemporâneo, o que as análises de fato conseguem é desvelar um quadro de psicopatologias que alimentam as situações dúplices (ou tríplices!); pois, ali estão descritos os sintomas e as formas de sofrimento psíquico que se candidatam ao tratamento médico e ao gabinete do psicanalista.

O “déficit de vida subjetiva” relaciona-se ao anseio de normalização e adaptação; a “impossibilidade de simbolizar” liga-se a uma intolerância à dor e à necessidade de soluções aditivas; e um desvio para o corpo é o resultado do bloqueio expressivo, no caso das somatizações. Temos assim configurado, esquematicamente, o quadro que vai das normopatias, às adições em geral e às doenças psicossomáticas.

Tomemos por exemplo, o indivíduo normopata. Como nos mostrou Mcdougall, enquanto estilo de viver e modo de posicionar-se em relação a si mesmo e a seus objetos, a normopatia também diz respeito à “atrofia da experiência do sujeito” (MCDOUGALL, 1978). Bollas descreve uma forma específica de adoecimento com características bastante próximas, sob o nome de “doença normótica” (BOLLAS, 1987). O aspecto fundamental da doença normótica seria a aversão manifestada pelo indivíduo em “nutrir o elemento subjetivo da vida, existente dentro de si próprio e do outro”. Incapaz de acolher dentro de si “o jogo interno dos afetos e das idéias que geram e autorizam a imaginação pessoal”, votados a serem objetivos em tudo os que fazem, tais indivíduos podem parecer “excepcionalmente fortes e estáveis”, até que sobrevenha um “colapso normótico” (BOLLAS, 1987, op. cit., p. 181).

Seja como normopatia, seja como doença normótica, falamos de formações subjetivas que trazem dificuldades ao processo analítico e que desafiam as capacidades do analista. Joyce Mcdougall referiu-se a tais pacientes como antianalisandos em análise (1978a), sublinhando o caráter mineral e opaco dos vínculos transferenciais que são capazes de criar, o que pode angustiar fortemente o analista. Mesmo porque, dada a ausência de vida fantasmática e subjetiva, e por “jamais se arriscarem a ficar na mão de outro” (MCDOUGALL, 1978a, p. 96), a transferência está prejudicada de saída, relegando o analista a uma condição de “exclusão objetal”, como bem observou André Green: “o analista fica aprisionado na rede de objetos mumificados do paciente, paralisado na sua atividade e incapaz de despertar no paciente qualquer curiosidade a respeito de si próprio” (GREEN, 1975, p. 44). Desse modo, suas tentativas de interpretação “são tratadas pelo paciente como sua loucura” (do analista).

Algo da mesma magnitude se passa com os estados de somatização, e com as adições ou soluções aditivas que se apresentam na clínica: elas trazem dificuldades e desafios de toda

ordem, mas, sobretudo, no que tange á transferência e ao processo de cura. Poderíamos considerá-los, grosso modo, (em contraste com a “exclusão objetal” característica dos normopatas), como estados caracterizados por uma tendência à regressão fusional e forte dependência objetal? Como estados que exigem do analista um rol de papéis e funções que deveriam suprir, muitas vezes, as estruturas de simbolização que estão ausentes no paciente? Tomando como medida o do que ocorre na clínica dos estados fronteiriços, não haveria nestes casos uma convocação superlativa às “reservas” do analista?

Convido, porém, que deixemos esta discussão para mais tarde. Pois as questões transferenciais, contratransferenciais e de manejo, nestes casos, serão apreciadas com mais vagar na parte seguinte da dissertação, quando da apresentação das narrativas clínicas. Elas nos darão a oportunidade e o ensejo de repor a questão: quando se adiciona ao cadinho da clínica psicanalítica a “substância-médico”, por meio de medicamentos e prescrições, que efeitos este novo “ingrediente” pode trazer para a situação analítica?

No documento FERNANDO ALBERTO TADDEI CEMBRANELLI (páginas 86-89)