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A saúde como ethos, morada

No documento FERNANDO ALBERTO TADDEI CEMBRANELLI (páginas 58-63)

2. ASPECTOS SÓCIO-CULTURAIS DAS SITUAÇÕES DÚPLICES

2.5 A saúde como ethos, morada

As discussões sobre o lugar do corpo na atualidade e a ênfase concedida ao bioascetismo contemporâneo evidenciam a estreita relação que os discursos e práticas relativos à saúde mantém com a dimensão ética da existência humana. O próprio Foucault nos ensina que as éticas representam diferentes modos de subjetivação, participam da constituição das subjetividades. Como nos lembra Figueiredo (1995), a partir do próprio autor de História da Sexualidade: “éticas são dispositivos ensinantes de subjetivação; elas efetivamente sujeitam os indivíduos, ou seja, ensinam, orientam, modelam e exigem a conversão dos homens em sujeitos morais historicamente determinados” (FIGUEIREDO, 1995, p. 44).

Penso ser de grande valia nesse momento acompanhar as reflexões de Figueiredo (1992, 1995) a respeito da ética, sobre as formas históricas de subjetivação e a questão da saúde, que, na tentativa de iluminar os impasses do sujeito contemporâneo, esse mesmo sujeito que se apresenta nas situações dúplices de tratamento. Recorrerei basicamente a três textos do autor dedicados ao tema. No primeiro deles, Figueiredo oferece uma visão histórica da constituição de três pólos diferentes de “idéias, valores, práticas e formas de organização da vida individual e coletiva”, a saber, o pólo liberal, o romântico e o disciplinar (FIGUEIREDO, 1992). Florescendo com vigor a partir do século XIX, eles deram origem a

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Um novo exemplo extraído do universo dos auto-cuidados ofertados pela Internet. Um dos mais requisitados endereços de saúde da WEB é o da Sociedade Prospectiva Norte-americana de Saúde, que se dispõe a avaliar as condições de saúde do usuário mediante o preenchimento on-line de um questionário para avaliação dos riscos sobre ela incidem naquele momento. O portal é candidamente denominado www.youfirst.com, cuja página de recepção traz o seguinte texto: “Você está sob risco de morte precoce? Como o estresse, a falta de exercício, a nutrição deficiente, o alcoolismo, a hipertensão, o colesterol elevado, e a obesidade atingem seu bem-estar pessoal? Descubra como através de uma avaliação de saúde grátis...Manter-se saudável significa cuidar de si próprio. Em outras palavras, colocando você em primeiro lugar.

modos distintos de subjetivação na modernidade, por meio de estabelecer entre si “relações de hegemonia, mútua negação, alianças e conflitos” (op. cit.).

No espaço triangular desenhado entre estes três pólos, cujos vértices se atraem e se repelem, “já que as vidas vividas no interior desse espaço são vidas cindidas, sobre as quais pesam os véus da ignorância e do esquecimento”, formar-se-á um território novo, o “território da ignorância”, posteriormente identificado ao território das psicologias, no alvorecer do século XX (FIGUEIREDO, 1995, p.158).

Deste segundo texto que, a meu ver, trata magistralmente da gestação das idéias e seus determinantes histórico-sociais, mostrando inclusive as vinculações mais recônditas e surpreendentes entre elas, interessa-nos resgatar, apenas esquematicamente, o regime de valores associados a cada um dos pólos: no liberal, o “reinado do eu soberano com identidades nitidamente delimitadas, autocontidas, autodeterminadas e autoconhecidas, capazes de permanência e invariância ao longo do tempo e condições” (FIGUEIREDO, 1995, op. cit., p. 147); uma clara linha demarcatória entre o público e o privado; além da prevalência dos princípios da funcionalidade e da racionalidade, “o exercício da liberdade individual concebida como território livre da interferência alheia” (op. cit.); no pólo do romantismo, “os valores da espontaneidade impulsiva, com entidades debilmente delimitadas, porque atravessadas pelas forças da natureza, da coletividade e da história, que se fazem ouvir de dentro e não são impostas pelos hábitos e pelas conveniências externas”(op. cit., p. 148); havendo sempre a comandar os romantismos essa tendência restauradora do homem com suas origens, ainda que se faça às custas de crises e rupturas radicais, próximas do adoecimento, da loucura ou da morte”(op. cit.); e finalmente as tecnologias de poder no pólo disciplinar que se “abatem sobre as identidades segundo o princípio da razão calculadora, funcional e administrativa”, manipulando as identidades debilmente estruturadas mediante a evocação calculada de forças supra-pessoais, encarnadas em figuras carismáticas, mitos ou lendas saudosistas” (op. cit., p. 148).

Em outra oportunidade, Figueiredo (1995) dedicou-se a uma articulação entre a idéia de ética (enquanto modos de subjetivação, como já dito) e as práticas de saúde, promovendo uma abordagem das diferentes éticas do ponto de vista histórico-antropológico, tomando por referência os eixos axiológicos acima mencionados. A partir da noção heideggeriana do habitar sereno e confiado, o autor nos oferece uma definição de ética como ethos (casa ou morada), condição para o “usofruto pleno das possibilidades do corpo e da mente”, que se confunde com a definição de saúde no sentido mais amplo, “para além dos critérios formais médicos ou psicológicos” (op. cit.) Sem esse “espaço privilegiado” de morada ética não seria

possível “despertar no corpo e na mente toda a sua capacidade de fruir, trabalhar e pensar” (op. cit., p. 46). Não seria tampouco, possível, ao sujeito abrir-se para as experiências de encontro com a alteridade, que são “acontecimentos potencialmente desalojadores” ( op. cit., p. 48).

O que se revela ao longo do texto é de grande relevo para a compreensão, primeiramente, das práticas ascéticas, que foram descritas no bojo das éticas de excelência na antiguidade clássica; mas, se naquele contexto histórico, os hábitos, esforços e provações que recaiam sobre o corpo podiam ser compreendidos como tentativa de criação de uma morada individual (no sentido de um domínio de si e condição de independência), estavam ainda muito longe do quadro de valores do ‘individualismo”.

O moderno individualismo, por sua vez, nos trouxe o duplo regime da ética de eficácia (voltada para a dimensão pública) e ética de excelência (caracterizada pela boa assunção dos papéis no ambiente familiar, da casa); sendo a morada da família, aquilo que por certo tempo nos assegurou o lugar do acolhimento, do enraizamento (não mais possível de vir da comunidade). As éticas de eficácia, desde então entronizadas pelo liberalismo, como diz Figueiredo, “carregam a tendência latente, mas freqüentemente manifesta, de pensar a conduta segundo o modelo da técnica, mais precisamente, da técnica de controle dos fenômenos naturais: como se a escolha ética dependesse cada vez mais de uma opção pelo que dá certo” (FIGUEIREDO, 1995b, op. cit., p. 56, grifo do autor).

Pode-se entender o surgimento da ética romântica, desde o pólo de subjetivação do romantismo, como uma reação ao movimento desertificante das práticas disciplinares que, em dado momento histórico, desabaram sobre a velha ordem, disseminando uma miríade de técnicas e estratégias de controle, invadindo não apenas as instituições, mas o “âmbito da vida privada, a sexualidade e a vida sentimental”. Como nos lembra o autor, “as disciplinas, para além do que trazem de mais óbvio – um arsenal de técnicas de controle – são, mais que tudo, modalidades éticas: elas contêm um padrão explícito de ideais, normas e posturas em que ressaltam, por exemplo, as noções de unidade, ordem racional, economia, controle, eficiência, obediência, etc.” (op. cit., p. 59, grifos do autor).

Assim é que no plano da sociedade atual ─ é o que interessa especialmente ressaltar ─ o homem contemporâneo tornou-se inexoravelmente repartido entre estes três eixos, entre três casas ou ethos: o liberal, o disciplinar e o romântico. As tentativas imaginárias ou arbitrárias de enraizamento só logram produzir soluções bastante precárias. Reproduzo as palavras do autor nesse ponto:

“A questão contemporânea já não é a de cada um habitar uma casa própria, faltando a todos uma morada coletiva. O que se passa é que cada um está disperso entre estas três casas e, a rigor, não habita integralmente nenhuma. Nisso reside a mais radical e verdadeira experiência de desterritorialização. É dessa experiência que se alimenta a cultura do narcisismo. A Ética do mínimo eu é o fruto mais espontâneo desta configuração. Não se trata, enfim, de faltarem as condições de confiança

intersubjetiva, tão precariamente assegurada pela ética liberal e hoje tão fracamente

defendida pela ética da excelência familiar, em rápido processo de extinção. A confiança que falta é a de cada um em relação a si mesmo, em relação à própria existência e continuidade, à própria capacidade de assumir uma história e fazer promessas. Um maciço investimento de si no si mesmo (sem passado nem futuro), um investimento concentrado e excludente, parece, então, ser a condição indispensável à sobrevivência física e psíquica do indivíduo. Já não lhe parece bastar uma casa fixa que o abrigue e defenda, por mais singular que seja, mas precisa de um casulo que ele, sem solo e verdadeira morada, possa carregar nas costas, como o personagem do

Turista Acidental” (FIGUEIREDO, 1995b, op. cit., p. 62, grifos do autor).

Buscarei aproveitar as palavras de Figueiredo no sentido de endereçar derradeiras questões à hipótese biopolítica (é claro que todo o questionamento é de minha responsabilidade, e espero que não se confunda com a posições do autor).

Como vimos, o conceito de biopolítica forjado por Foucault representa uma tentativa de explicação ampla dos processos que se apoderam da questão da vida nas sociedades ocidentais a partir da modernidade (controle e regulação dos corpos, normalização individual e coletiva, produção da riqueza, etc.), em cujo interior a medicina (e seus novos parceiros, a família das tecno-biociências) ocupariam lugar central e estratégico. Trata-se de uma explicação compreensiva, saturada, ou, parafraseando André Green, a expressão de um pensamento “sem inconsciente e sem resto” (GREEN, 1995b, p.269).

As práticas e os comportamentos que incidem sobre o corpo, quando remetem à busca da saúde perfeita ou quando buscam contornar a dor e o sofrimento, são um leque de acontecimentos muito amplo para que possam ser organizados de modo unívoco sob categorias do “hedonismo consumista”, da “sociedade do espetáculo” ou dentro do escopo da biopolítica.

Pensemos mais detidamente nesta última. Será possível que nenhuma destas “práticas de si” tão heterogêneas (das ginásticas orientais ao SPA, dos suplementos vitamínicos as droga psicotrópicas, bem como o naturismo, o orientalismo, as terapias exóticas, as infinitas

formas de cobrir de cuidados com o corpo, etc.), nada, enfim, escape ao processo social de medicalização iniciado no século XIX? E nenhuma oposição fundamental haveria entre elas?

O esforço pelo qual cada indivíduo é levado a transformar-se no gestor de seu próprio corpo em busca de um domínio laborioso e coercitivo é condizente com as técnicas disciplinares, mas apenas estas? Não podemos enxergar na capacidade plenamente exercida de escolher seu próprio modus vivendi, seu estilo de biossociabilizar-se, seus projetos de viver o corpo um traço característico da ética liberal? E na idéia de transformação, metamorfose, regeneração, o bônus que só se obtém mediante a entrega compulsiva a um vício, não se pode ver o parentesco com os valores românticos? Pensemos no neo-tribalismo, nas comunidades que se formam para gozar os esportes de risco; pensemos nas práticas corporais orientais; O que há em comum entre o yoga e a cultura do músculo (o body building típico da cultura americana)? Seriam todas, indistintamente, expressões da biopolítica?

Faço estas ponderações, sem enveredar pelo caminho de discutir mais detidamente o conceito de biopolítica, o que fugiria ao escopo desta dissertação. Trata-se de uma tese que, mais do que qualquer outra, mereceria ser rotulada “pós-estruturalista”, como observou Marshall Sahlins (2004)25. Lembro, contudo, que o pano de fundo biopolítico que nos permitiu reunir conjuntamente todos estes exemplos ─ a noção foucauldiana de biopoder como um poder que passa a tomar por objeto a própria vida (não mais compreendida como aquilo que o poder reprime, e sim, como aquilo de que ele se encarrega e gerencia, mediante expedientes disciplinares diversos) ─ parece sugerir que não é o poder que se apropria da subjetividade, mas que a subjetividade que é tomada, ela mesma, enquanto capital biopolítico. Mais uma vez, trata-se de retirar da subjetividade produzida por técnicas de adestramento, modelagem, fomento, docilização, toda e qualquer possível agência ─ uma subjetividade sem agência é o que resulta da tese biopolítica; reafirma-se aqui o conhecido enunciado de Foucault do sujeito como efeito do poder (FOUCAULT, 1974, 1976). Cabe, então, o registro de que a hipótese biopolítica, como muitas outras, ignora a alternativa pulsional freudiana enquanto uma alternativa válida para a compreensão de fenômenos que se dão no plano social, algo que foi observado por André Green em mais de uma ocasião (GREEN, 1995b, 1997, 2001).

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Segundo Sahlins, “Foucault nega corretamente ser estruturalista pois tudo o que resta do estruturalismo em sua problemática é a evitação da agência humana. Sua posição seria, de fato, pós-estruturalista , na medida em que dissolve teoricamente as estruturas ─ família, escola, hospital, filantropia, tecnologias, etc. ─ em seus efeitos instrumentais de disciplina e controle” (SAHLINS, 2004, p. 87).

Afinal, a idéia de saúde e a percepção dela podemos ter, seja como superação dos limites, como produto de uma autodisciplina ascética, passa a ser de algo que nos atravessa, e não nos pertence de modo algum, enquanto sujeitos.

Nem mesmo nossos corpos nos pertencem (não no sentido material, obviamente, mas no sentido de que nenhum corpo humano “autêntico” poderia subsistir fora do discurso médico, diferentemente do que vimos ser proposto por Canguilhem ainda há pouco). A idéia de um processo de medicalização que se “confunde” com a própria “modernização no Ocidente” (BIRMAN, 2006, p. 256) é de tal modo compreensiva que os indivíduos e os corpos passam a ser constituídos pelas práticas e discursos da medicina. Um saber-poder que opera não coercitivamente, mas como força que produz realidades e subjetividade; que produz comportamentos, modos de viver, pensar e sentir.

No documento FERNANDO ALBERTO TADDEI CEMBRANELLI (páginas 58-63)