• Nenhum resultado encontrado

Como alternativa a um corpo biológico, com veias e vasos funcionais, órgãos com especificidades claras, o corpo proposto pela presente pesquisa é um corpo humano com materialidade vasta e que, por mais que possa ser considerado como unidade biológica, com certa autonomia, não deixa de se relacionar com o meio de uma forma materialmente efetiva, ou seja, as ressonâncias dos objetos externos sobre o corpo e as consequentes identificações trazem a necessidade de especular sobre concepções de corpo que se agreguem à concepção biológica.

Independentemente das descobertas científicas que elucidam os mecanismos do corpo proporcionando clareza, a poética teatral exige que o corpo se abra para além de uma concepção determinista e tal conhecimento do corpo passa pela prática de identificá-lo com outros corpos de personagens, de animais e por que não com objetos ou mesmo com outros materiais.

Fora do corpo humano vivo, a água toma consistências que não podem ser experienciadas pelo corpo sem que este tome prejuízo, ou seja, a água pode conviver pacificamente em contato com o corpo humano sem feri-lo. A geada amena, a garoa, o vapor da infusão ou os banhos são consistências compatíveis

com o corpo humano vivo. Por tal motivo, a água é líquida ao redor de Antígona em forma de tecido até que pela solidez que adquire em torno do pescoço causa a morte.

O corpo e o tecido podem ser vistos como tramados por camadas, estruturas, vasos, fibras, líquidos e sólidos entrelaçados. Corpos heterogêneos e compostos de elementos, matérias de densidades diversas.

O tecido como uma espécie de água mantém a variedade de funções em aberto e se é véu, instrumento de sedução ou instrumento de morte, conforme apresenta Loraux, é porque tem propriedades de indeterminação, de ambivalência. Tal indeterminação é análoga a uma ideia de que o tecido, maleável, escorregadio, fluido, se assemelha de certa forma à água. Água e tecido, em estado maleável, se adaptam às superfícies com as quais entra em contato, um véu que contorna o rosto ou a água que escorre pelas costas.

A água é um material que evapora e congela no ambiente natural. Análogo à água está o tecido que em contato com o corpo adquire e empresta qualidades a este. Análogo à água o tecido penetra no corpo humano pelo contato.

É pela atividade da água que começa o primeiro devaneio do operário que amassa. Assim, não é de admirar que a água seja então sonhada numa ambivalência ativa. Não há devaneio sem ambivalência, não há ambivalência sem devaneio. Ora, a água é sonhada sucessivamente em seu papel emoliente e em seu papel aglomerante. Ela desune e une (BACHELARD, 1997, p. 109).

O tecido se assemelha à água do lago em repouso, à água corrente, trançada em uma correnteza ou em seu aspecto volátil de véu e bruma. A cada um desses exemplos, é possível encontrar uma qualidade para o gesto que determina tal estado do tecido. Um gesto de espera e repouso, guarda a água do lago, como toalha estendida sobre o chão. O véu e a bruma se fazem com o gesto volátil junto ao tecido translúcido e a correnteza se configura pela tensão que liga a parte alta à parte baixa do rio.

São algumas hipóteses de relação entre corpo e tecido que, mesmo sabendo-se possíveis, ligam-se a um corpo específico, ao corpo de Antígona como corpo exemplar. A questão é: o que há de líquido no corpo de Antígona que deixa que o tecido seja um material indeterminado?

Dizer que o líquido está apenas no tecido não é suficiente, é uma relação tátil líquida, com características líquidas. A liquidez está também nos gestos de Antígona

que desvia o véu de ser apenas e somente um adereço. A instabilidade da água está também nos gestos que ignoram a ordem do rei. Há uma materialidade presente nos gestos onde as reivindicações de Antígona vão além das palavras, passam pelo gesto. Desse gesto de desobediência nascem as medidas bastante materiais da reclusão obrigatória. Assim, as leis e os avisos são palavras que fazem vislumbrar um horizonte completamente material, ou seja, no impedimento de não tocar o solo nem o corpo do irmão morto, estão explícitas as consequências corporais de tal ato.

Antígona experimenta a lei além das palavras como muitos corpos contemporâneos que estão reclusos em espaços de pedra e ferro. O ferro diz ao corpo seus limites, pois a palavra não basta.

O líquido sugere volatilidade, porém é apenas um de seus estados. Em locais onde há gelo, não há tal ideia sobre o líquido, o líquido ameno passa a ser invasivo, de doer os ossos.

Mas é ainda nesse estado maleável, em que o líquido e o tecido ainda podem ser análogos, que se dá a maior parte das relações de Antígona com seu véu. Antígona permanece viva enquanto há maleabilidade do tecido que a acompanha.

Antígona esboça uma ideia de corpo inconstante e “moralmente mutável”, que propõe o desvio dos objetos sendo exemplar para a presente pesquisa. Algo que se mostra como um grande impasse, é o fato de lidar com a indeterminação mesmo apesar de todas as determinações impostas pela materialidade que se apresenta.

Quando se está diante de determinado material, suas características podem determinar um modo de contato a priori, onde, uma caneta relaciona-se às mãos, um sapato aos pés, os óculos ao rosto, um chapéu à cabeça, etc.

É justamente com relação a tais determinações que se apresenta o desvio já citado no primeiro capítulo. O corpo capaz de desvio e de questionar as determinações dos objetos, interessa ao Teatro de Animação como alternativa.

No caso do véu, a consistência e forma são pouco determinadas; porém, parte dessa indeterminação está na atitude de Antígona. É nesse ponto em que a relação entre corpo e objeto alcança um situação de diálogo e de abertura. Pois há também o diálogo entre gestos e objetos bastante definidos, ou já definidos numa poética teatral, por exemplo, que compreenda a experimentação, a escolha e a determinação dos gestos e partituras.

Porém, é o grau de indefinição, de abertura ao variável que caracteriza o diálogo entre corpo e objeto na presente pesquisa. De onde provêm os estímulos de indefinição? Como se mantém a indefinição antes que se cristalizem as escolhas que definem?

A sugestão é de que a indeterminação possa surgir de diálogos entre corpo e objeto que habitem outros imaginários, que não são exclusivamente humanos, contemporâneos onde a função dos objetos tem certa clareza. Em um imaginário onírico, fantástico, ou mineral, por exemplo, são outras as dinâmicas de relação entre corpo e objeto.

A leveza de um corpo que voa durante um sonho, a força descomunal de um super-herói ou mesmo o silêncio das pedras, propõem dinâmicas de desvio com relação ao cotidiano objetivo.

Estabelece-se, então, um dilema que em parte é abordado por Lecoq quando se volta para a observação dos materiais e animais. No cerne dessa variedade e indeterminações está o desvio do que é humano. Como o humano se desvia de ser humano? Ingressando no diálogo com materiais.

É sobre o equilibrado, sedimentado e prático que acaba se formando o imaginário do equilíbrio humano culturalmente aceito, e é com relação a esse imaginário comum que se propõe o desvio.

Como já citado anteriormente, o texto de Kleist Sobre o teatro de marionetes traz um olhar para o que não é humano, porém extremamente material e tangível. De certa forma, voltar-se para o que não é humano e também ao chamado “inanimado”, une Lecoq a Kleist.

Se para Kleist a marionete possui movimentos que interessam ao bailarino, para Lecoq os materiais, os elementos e os animais são alternativos ao corpo humano como universos exploráveis pelas Artes Cênicas. O corpo de Antígona aparece sob o viés de um corpo já contaminado pelo tecido, pelo véu e que o toca de maneira criativa, de maneira a multiplicar suas funções, aspectos e densidades.

Tal contaminação traz para o corpo um elemento estranho mas decisivo na desumanização ou mesmo nas propostas de desvio do que é, pretensamente, puramente humano. Tal foco do olhar propõe uma concepção de corpo sensível a outras substâncias não apenas as relacionadas à psicologia humana.

É importante salientar que tal aproximação com outros universos se dá de forma concreta, ligada à observação, ao toque, à convivência, à permanência do

contato. A referência é externa ao corpo, e necessita de certo engajamento do gesto na exploração de outros imaginários.

O véu e o corpo de Antígona aparecem aqui como materiais indeterminados e que, por suas características mutáveis, estão relacionado à água e seus estados.

A água cotidiana, aquela que se deve ter para que o corpo de Antígona sobreviva, é vencida pela água sólida do véu. A solidez do véu é feita de gesto, de gravidade, do peso de Antígona, da fraqueza do colo e da estabilidade da pedra que empresta solidez ao véu amarrado. São consistências que se comunicam ligando corpo e ambiente.

Aquilo que dá vida à Antígona é separado de seu corpo, num processo radical de separação. Depois do enforcamento vê-se que o corpo perde parte de seu composto. Tal processo de separação se dá com materiais também. Para Carl Jung:

A água é aquele humidum radicale que representa a anima media natura ou

anima mundi presa na matéria, uma alma de pedra ou metal, uma anima

aquina, como também é chamada. Essa anima não só é liberta do “ovo” mediante o “cozimento”, mas também pela espada, ou é produzida através do separatio, ou seja, na dissolução nas quatro radices, isto é, os elementos. Por seu lado, a separatio também é não raro representada pelo desmembramento de um corpo humano. Diz-se também da água

permanens que ela dissolve os corpos nos (quatro) elementos. A água

divina possui uma capacidade de transmutação em geral (JUNG, 2011, p. 71).

Que seja uma alma que se aparta do corpo quando este morre, o que se desprende é também anima que se nota pela ausência. Anima que se liberta mediante o toque, anima que se liberta sem morte.

A animação de determinado corpo, para o teatro, talvez seja semelhante ao processo de separatio, que acompanha a ideia de um corpo composto, passível de ser desmembrado. Por cozimento, queima, torção ou deformações o material trabalhado tocado pelo corpo libera uma espécie “alma”.

Descobrir as variadas “almas” que compõem corpo humano é também especular sobre as inúmeras almas que habitam os materiais.