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presença de algemas, a superlotação de uma prisão ou instrumentos de tortura, podem efetivar a punição pelo contato. Ferro, madeira dura e pedras dão a medida da sutileza das leis. O inferno é um sistema prisional feito de materiais extremos, e tal imaginário infernal, por mais fantástico que possa parecer ou fazer parte de uma construção poética, não sobrevive apenas na ficção. É importante lembrar que o Inferno de Dante está povoado de punições possíveis ainda na terra dos vivos.

O ferro em brasa, a pedra do martelo carrasco, ou a madeira em chamas são ambientes infernais e objetos de tortura. Objetos para a ação do Estado, para que se corrijam corpos desviantes. O objeto de tortura é um objeto invasor, e tais objetos têm uma história extensa e de contato com o corpo humano. A conformação de tais objetos como forma, consistência, temperatura e textura, visam a disputa com o corpo em um embate intimo que expõe a fragilidade do corpo humano e as consistências de lei dos objetos. O corpo humano é retalhado no suplício e serve de exemplo, pois o contato com o ferro em brasa se instala no horizonte dos corpos desviantes como o de Antígona e como os corpos dos falsários que vão para o inferno.

A tortura eterna no inferno medieval ganha contornos mais eficientes na superfície terrestre com o passar dos séculos. É a passagem do tempo que anuncia a velocidade das execuções e a supressão da tortura, do espetáculo da tortura. Velocidade que desafia o tempo dos materiais, pois aparecem os engenhos que abreviam o espetáculo das execuções públicas. Michel Foucault considera que:

No fim do século XVIII e começo do XIX, a despeito de algumas grandes fogueiras, a melancólica festa de punição vai se extinguindo. Nessa transformação misturam-se dois processos. Não tiveram nem a mesma cronologia nem as mesmas razões de ser. De um lado, a supressão do espetáculo punitivo. O cerimonial da pena vai sendo obliterado e passa a ser apenas um novo ato de procedimento ou de administração (FOUCAULT, 2004, p. 12).

A punição com caráter administrativo se difere muito do espetáculo narrado por Dante, pois os materiais selvagens começam a dar lugar a objetos eficientes e mais velozes. Seria necessária a existência de uma técnica narrativa que dilatasse o tempo das execuções. O tempo de Dante é estendido, uma jornada em versos com descrições de corpos contorcidos, gritos e punições. A descrição de Dante se torna quase uma eternidade se comparada à eficiência da guilhotina e a sua rapidez. O espetáculo estendido se torna “melancólico”, se comparado às execuções da

máquina eficaz. Melancólica extensão do horror.

A eficiência da guilhotina iguala os corpos, nada de círculos infernais, nada de portais, cachorros com três cabeças, dragões, árvores que falam, serpentes, rios de sangue, corpos de barro ou imagens fantásticas. O ponto fraco, pescoço, foi identificado e, se mata Medusa, mata o ser comum. O espetáculo demorado da luta do corpo com os objetos de punição vai se extinguindo e dá lugar a uma punição ainda física mas mais rápida, a guilhotina mais incisiva, vai direto ao ponto de separar a cabeça do corpo. Segundo Foucault tal execução se tornava “menos infame para família do condenado” (FOUCAULT, 2004, p. 15).

A guilhotina utilizada a partir de março de 1792 é a mecânica adequada a tais princípios. A morte é então reduzida a um acontecimento visível. Entre a lei, ou aqueles que a executam, e o corpo do criminoso, o contato é reduzido à duração de um raio. Já não ocorrem as afrontas físicas; o carrasco só tem que se comportar como um relojoeiro meticuloso. (…) Quase sem tocar o corpo, a guilhotina suprime a vida, tal como a prisão suprime a liberdade, ou uma multa tira os bens. Ela aplica a lei não tanto a um corpo real e suscetível de dor quanto a um sujeito jurídico, detentor, entre outros, do direito de existir. Ela devia ter a abstração da própria lei. Sem dúvida algo dos suplícios prevaleceu, por algum tempo, na França, à sobriedade das execuções. Os parricidas - e os regicidas, a eles assemelhados - eram conduzidos ao cadafalso, cobertos por um véu negro, onde, até 1832, lhes cortavam as mãos. (...) O último vestígio dos grandes espetáculos de execução é a própria anulação: um pano para esconder um corpo (FOUCAULT, 2004, p. 16).

O imaginário do contato entre corpo e objeto ou consistências de lei, se altera com a eficiência do maquinário punitivo. Os objetos ganham eficiência e velocidade, com um contato mínimo e com a duração de um raio. Não há negociação entre pescoço e guilhotina, não há diálogo como há no Inferno.

Os objetos ganharam uma eficiência menos descritiva, dramática e espetacular por reduzirem o tempo e, com o mínimo contato com o corpo, mostram sua eficiência e objetividade. Não há embate capaz de constituir duração, o contato é mínimo tanto na superfície do corpo e do objeto quanto em relação ao tempo; qual é a superfície do fio da guilhotina? Tal execução que não é explícita refaz o caráter trágico do espetáculo, a morte é subentendida, fica escondida aos olhos dos espectadores. Um véu negro esconde o corpo.

A morte trágica retorna como narrativa de um fato oculto da visão dos espectadores. A execução tende a ser feita em lugar escondido dos olhares da população. Segundo Foucault, entra-se na sobriedade onde:

Em princípios do século XIX, o grande espetáculo da punição física: o corpo supliciado é escamoteado; exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade punitiva. Podemos considerar o desaparecimento dos suplícios como um objetivo mais ou menos alcançado, no período compreendido entre 1830 e 1848 (FOUCAULT, 2004, p. 16).

A sobriedade isola o corpo punido dos olhares e este está sozinho com os objetos de lei, com as amarras, com os espaços diminutos. O contato mínimo e incisivo da guilhotina deixa de ser espetáculo e passa a ser experiência solitária. O contato entre corpo e objeto é o lugar de violência capital da execução com o corpo sendo aos poucos destroçado e, no caso da punição que se torna sóbria, essa violência deixa de ser explícita. O instrumento tecnológico, no caso a guilhotina, salvo os momentos em que não funciona eficientemente, reduz a nada o contato entre corpo e objeto.

A solução medieval para prorrogar o suplício é alterar a conformação dos corpos nos ambientes infernais. Os corpos, no inferno, ganham conformações que se diferenciam do comum. Carne e osso se transformam em madeira e essa pode ser queimada de um modo diferente, ou como árvore, as folhas podem ser arrancadas aos poucos e o corpo meio árvore sofre uma pena de acordo com a composição desse novo corpo. Não interessa a Dante que os instrumentos punitivos sejam eficientes como uma guilhotina, pois ele necessita do tempo de contato narrado para dar a carga dramática necessária. De certa forma, quanto menos eficiente for a punição, mais se demora no contato, mais facilmente o corpo punido se contamina pelas matérias fétidas.

Se o fogo infernal fosse como uma guilhotina a alma não expiaria, sumiria, se tornaria um fato mínimo e não um diálogo. Há uma grande diferença temporal entre execução e tortura ou punição.

Uma outra alternativa à eficiência dos objetos de execução pode ser encontrada nos mitos, onde o tempo se repete e a cada dia, por exemplo, o fígado de Prometeu é devorado por uma ave e depois o fígado se regenera e torna a ser devorado pela ave no dia seguinte.

Duas soluções para prorrogar o contato entre corpo e ambiente. Uma medieval e outra clássica, a exemplo de Prometeu.

De modo geral, as práticas punitivas se tornaram pudicas. Não tocar mais o corpo, ou o mínimo possível, e para atingir nele algo que não é o corpo propriamente. Dir-se-á; a prisão, a reclusão, os trabalhos forçados, a servidão de forçados, a interdição de domicílio, a deportação – que parte tão importante tiveram nos sistemas penais modernos – são penas “físicas”: com exceção da multa, se referem diretamente ao corpo (FOUCAULT, 2004, p. 14).

Modernas ou medievais, tortura e execução se efetivam no contato e a relação de objetos punitivos é extensa. Foucault chama a atenção para o caráter físico das penas e os materiais infernais dão lugar a objetos eficientes que abreviam o tempo de contato. Pelo menos como espetáculo público, pois no horizonte do corpo desviante, a tortura, os métodos ditos medievais são uma possibilidade que não se anula com o passar do tempo.

De certa forma permanece, mesmo contemporaneamente, o ambiente infernal como possibilidade dos objetos e materiais que entram em contato com o corpo humano pois, há pouco tempo, um ditador foi enforcado no oriente próximo.

Quando Foucault apresenta a ineficiência e brutalidade das execuções em praça aberta como evento que passa a indignar a população, é interessante notar que a indignação popular quanto à figura do carrasco aparece justamente porque esse corpo/carrasco não pode passar por máquina, sempre tem um caráter humano que ainda lembra o embate entre corpo e objeto, nem que seja o embate de decisão do próprio carrasco com o machado em mãos.

O corpo humano, no caso o do carrasco, como atuante no objeto de execução, determina o grau de eficiência do mesmo objeto pois, a força humana na execução é passível de falhas, de desistências, de certa forma a vontade de se desviar de suas obrigações pode tomar o carrasco. A máquina é mais eficiente, conta com a gravidade para que a lâmina toque o pescoço do condenado. A lâmina é largada a seu próprio peso e não conduzida, seguem-se, então, segundos de autonomia da materialidade onde não se tem mais volta, não se pode mais hesitar, pois o humano é retirado do material de execução, é submetido à materialidade do objeto de execução. Aqui surge a hesitação como mais um campo de abertura e momento de escolha dos possíveis rumos do diálogo entre corpo e objeto.

O ferro, a madeira e a pedra são elementos impregnados de possibilidades de contato. Mesmo um toque contemporâneo com tais materiais não pode abolir por completo, o imaginário de contato com o corpo humano que se condensa nesses elementos. Seja pelas vias do testemunho histórico, por um imaginário fantástico

proposto pela literatura medieval, ou mesmo pelos conteúdos que emergem do universo onírico, os materiais e objetos passam a aludir a uma grande diversidade de relações entre corpo e objeto. O objeto possui um histórico de contato que se comunica com o corpo humano. O histórico de contato de um determinado objeto como a guilhotina, contém muitos corpos de funções variadas.

O imaginário do contato entre corpo e objeto se expande por contribuição de fatos reais, boatos, ficções ou sonhos. Se é na intenção de desvio que o corpo age sobre objetos e materiais no Teatro de Animação, é necessário que se dê às imagens táteis a importância devida. Dar a importância devida em relação ao Teatro de Animação, é possibilitar possíveis desdobramentos poéticos que considerem materialidades e imagens de contato, como as imagens que povoam o mundo de Antígona, de Dante, da pedagogia de Lecoq e das observações de Kleist.