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2. TRANS(FORMAR), TRANS(PASSAR) – VIVE LA DECADENCE

2.4 CORPO E TECNOLOGIA

2.4.1 O Pós-Humano

Dúvidas, anseios e expectativas permeiam o imaginário diante da interface humano-máquina, seja no sentido de euforia, de quem acredita que esta era – a do digital – seja a mais tecnológica e venha resolver todas as fragilidades humanas; seja no sentido oposto, daqueles que a veem de forma apenas negativa, uma era que é (ou será) dominada somente por máquinas e robôs. O termo pós-humano vem sendo utilizado especialmente por artistas ou teóricos da arte desde a década de 1990 para apontar as transformações “que as novas tecnologias da comunicação estão trazendo para tudo o que diz respeito à vida humana, tanto no nível psíquico quanto no social e no antropológico” (SANTAELLA, 2003b, p. 31). Citando Rose (2001), Santaella apresenta a ideia do humano como artificial desde o momento em que adquire a fala, afinal essa parece ser uma técnica desenvolvida ao longo do

tempo, “assim como o andar, o sorrir, o cavar e o nadar”. (ROSE apud SANTAELLA, 2004, p. 24)41.

De forma similar, a “Vida Artificial” (em inglês Artificial Life, ou abreviadamente, A-Life), conceito utilizado pela primeira vez em 1987 por Christopher Langton, caracteriza-se como uma vida criada e manipulada pelo ser humano ao invés de criada pela natureza. Porém, essa nova disciplina, que estuda a vida natural, procura “recriar o fenômeno biológico a partir da utilização de computadores e de outros meios ‘artificiais’” (LANGTON apud ARANTES, 2005, p. 138).

Nesse sentido, Lemos (2015) revela olhares positivos diante das hibridações do artificial-natural, apontando para a artificialidade como elemento presente desde a formação do homem e das sociedades, além de trazer a ciborgização (termo cunhado por Haraway) como processo natural da cultura contemporânea. Tornamo- nos ciborgues desde o momento em que tivemos que adaptar pedras em armas e instrumentos, por exemplo. Atualmente, somos transformados em seres híbridos com as nanotecnologias, com os piercings e tattoos, com a interação dos cibernautas da internet (LEMOS, 2015, p. 166), com as próteses que reconstroem os corpos, com as cirurgias plásticas. A lista é imensa e muito mais natural do que imaginam as mentes amedrontadas perante os feitos artificiais no corpo humano.

A seguir serão apresentados alguns fatores que elevaram o corpo ao termo de pós-humano e alguns termos utilizados para defini-lo.

2.4.2 Biocibernético, Ciborgue, Vida Artificial

Partindo de conceitos de Santaella (2003a; 2004) e Haraway (2009), esboçamos aqui as ideias sobre o biocibernético, ciborgue e protético, sendo que muitos deles se cruzam e/ou se complementam.

A palavra ciborgue nasce da junção da palavra cyb (ernetic) + org (anism) e foi proposta por Manfred Clynes e Nathan Kline, em 1960, após a discussão e escrita da introdução do livro Cyborg: evolution of the superman (1965), de D. S. Hallacy, na qual Clynes e Kline questionavam a ideia de um ser humano melhorado,

41Benveniste (1995, p. 285), que afirma ser a linguagem algo da natureza do homem e por isso não

pode ter sido “fabricada”, ou seja, a fala é espontânea, já a escrita é artificial, tal como a roda ou a flecha.

que melhor sobrevivesse no espaço sideral. A partir dos anos 1970, a figura do ciborgue é divulgada na ficção científica (cinema, televisão, literatura, brinquedos e HQ) e Haraway propõe então uma reflexão crítica em seus Manifesto ciborgue e O

ciborgue (RÜDIGER, 2013).

Já o biocibernético, segundo Santaella (2003a; 2004), seria um termo mais abrangente do que ciborgue (hibridização do biológico e do cibernético). Para a autora, esse corpo biocibernético está relacionado com o uso de celulares, computadores, telepresença, construção e modificação corporal, próteses, implantes, cirurgia plástica. Ou seja, todo corpo é ciborgue e biocibernético, já que não estamos isentos de interferências artificiais.

O que diferencia o biocibernético do ciborgue é a intenção de que essa nova vida criada artificialmente seja autônoma, embora anteriormente, no século XIX, com autores como Júlio Verne, que ainda tinham suas obras chamadas de “romance de emancipação” ou “protoficção”, antes da literatura de ficção científica, já se pensasse sobre novos organismos totalmente artificiais e com sentimentos.

Em 2010, um experimento realizado pelo bioquímico Craig Venter chegou perto dessa ambição científica. Venter sintetizou o genoma completo de uma bactéria e usou-o para criar uma célula. Ela é considerada a primeira bactéria a viver exclusivamente devido a um código genético sintetizado pelo homem. O trabalho, que durou mais de dez anos e a um custo aproximado de U$ 40 milhões, foi alvo de críticos, incluindo religiosos, que temem que criações artificiais como essas causem estragos ambientais (SAMPLE, 2010).

Essas interações de carbono-silício, vida natural-vida artificial, fazem-nos questionar se realmente é possível a capacidade de seres artificiais reproduzirem- se, evoluírem e de substituírem parcialmente ou por completo funções orgânicas humanas e animais. Essas reflexões acabam atingindo também o campo das artes e fazem com que, a partir do século XX, novas propostas sejam pensadas na integração entre arte, tecnologia e ciência.

Nesse sentido, é inevitável não citarmos a fotografia e o cinema como primeiros movimentos artísticos a discutir a relação corpo-tecnologia, que, para Benjamin (2013, p. 54), são novas tecnologias que aproximam o receptor da obra, permitem a reprodução massiva do produto artístico e aumentam a exponibilidade de uma obra de arte, retirando-a de um lugar sagrado e distante do público. Santaella (2003a, p. 52) aponta para a fotografia e para o cinema como o início das

artes tecnológicas. Mas é mais precisamente no início do século XX, com as vanguardas europeias, com escritos como o Manifesto Futurista e trabalhos dos futuristas italianos Giacomo Balla e Umberto Boccioni (ARANTES, 2005, p. 38), por exemplo, que se vê uma crescente centralidade do corpo nas artes.

E não é só nas artes que se iniciam discussões voltadas à corporalidade, mas também na literatura, ciências, filosofia, psicanálise, nas descobertas científicas e na imagem do corpo nas mídias. Atualmente o corpo vira alvo de preocupação no campo da moda, publicidade, na mídia televisiva e cinematográfica, que desfila uma série de produtos, cirurgias e exercícios para remodelá-lo a um padrão de beleza criado por determinados grupos. Em compensação, nadando contra essa corrente, vemos grupos artísticos desacelerando essa criação de padrões. Para Santaella, “quer os artistas trabalhem ou não com dispositivos tecnológicos, o corpo veio se tornando objeto nuclear das artes porque as mutações pelas quais ele vem passando produzem inquietações que se incorporam ao imaginário cultural” (2004, p. 67).

Nesse sentido, a arte cumpre importante papel ao problematizar as investidas da mídia para homogeneizar e padronizar os corpos, já que “são de fato, as representações nas mídias e publicidade que têm o mais profundo efeito sobre as experiências do corpo” (SANTAELLA, 2004, p. 126). Assim, a arte minimiza a construção de um ideal corporal, da padronização e da limitação, além de expandir nossa referência sobre “corpo feminino”, “corpo masculino” ou ainda “corpo perfeito”. Ironicamente, uma das falas de Maite Schneider na peça teatral faz referência a esse enquadramento corporal binário exigido socialmente:

Mas também não interessa, afinal de contas, graças ao meu bom Deus, eu já fiz minha cirurgia e tá enquadrada nesse maldito binarismo imposto pela sociedade de macho e fêmea, trocar meu documento, ser conhecida como a Maite Schneider Caldas de Miranda, sexo feminino [...] (ESCRAVAGINA, 46m21s, 2015).

A atriz reflete sobre sua condição de se enquadrar em um padrão feminino, usando das interferências corporais para ser aceita socialmente como mulher. Sua reflexão vale justamente por refletir sobre esses corpos ciborgues, pós-humanos, artificiais ou biocibernéticos, que utilizam as tecnologias a seu favor e que entendem que o corpo já não é mais natural, independentemente de qual seja sua transformação.