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3. TRANS (VIAR) – I AM WHAT I AM

3.6 DIVIRTAM-SE, EIS A PALAVRA DE ORDEM

Se utilizássemos o conceito apresentado pelo dicionário, “profanar” significaria insultar, afrontar, violar e desrespeitar. Porém, o entendimento de profanação observado em Escravagina está mais próximo daquele apontado por Giorgio Agamben (2007, p. 65), que relaciona o sagrado como sendo algo próximo das divindades, que separa do contato humano as coisas, enquanto a profanação retoma para a esfera humana o que estava longe, inalcançável. Podemos citar como

exemplo duas propostas artísticas para compreendermos o sentido de profanação proposto aqui51: o ready-made de Marcel Duchamp A fonte (1917) e a obra Merda

d’Artista (1961), de Piero Manzoni. O primeiro trabalho desloca um mictório, objeto

do cotidiano voltado ao consumo, para um espaço de exposição artística. A fonte descaracteriza a ideia de obra sagrada, sacralizada, feita para a eternidade, já que é objeto de consumo e passageiro, além de dessacralizar o espaço do museu, lugar de obras da tradição artística voltadas à apreciação contemplativa. A segunda obra também traz dupla profanação: o material utilizado e a forma de divulgação do trabalho. O material, como sugere o título, são as próprias fezes do artista enlatadas e a sua distribuição dá-se pela venda dessas latas, como se fosse um produto qualquer para consumo disponível no mercado. Então, não só o material é inusitado, já que se trata novamente de um deslocamento de algo para um lugar nada previsto, como também a forma de sua propagação é profanada, já que o trabalho é inserido em várias latas e vendido, ou seja, a obra não tem mais uma única réplica, não é intocável, não é inacessível e não é eterna. Agamben discorre sobre uma ideia de museificação de tudo, ou seja, uma intenção de separar determinadas instituições e objetos do uso comum, colocando-os em um lugar de difícil acesso:

A museificação do mundo é atualmente um dado de fato. Uma após outra, progressivamente, as potências espirituais que definiam a vida dos homens - a arte, a religião, a filosofia, a ideia de natureza, até mesmo a política - retiraram-se, uma a uma, docilmente, para o Museu. Museu não designa, nesse caso, um lugar ou espaço físico determinado, mas a dimensão separada para a qual se transfere o que há um tempo era percebido como verdadeiro e decisivo, e agora já não é. (AGAMBEN, 2007, p. 73).

Analisando Escravagina, vemos também que não apenas a temática faz profanação do conceito de uma obra tradicional (trata-se da história de transexualização da atriz), como também o texto teatral, a encenação, a interpretação e todos os elementos do espetáculo são profanadores. A própria montagem e seu processo de construção do espetáculo separam-se da ideia de composição sacra, pois não só uma pessoa contribui para a sua execução, mas diversos são os colaboradores via internet do seu financiamento, que é divulgado por meio de redes sociais on-line e oferece prêmios para os ganhadores, sendo o prêmio maior a oportunidade de ter o nome divulgado no site e em material gráfico,

51 Para saber mais sobre arte e profanação em Marcel Duchamp, ver:

além de ter o nome tatuado no corpo da atriz, caso o patrocinador doasse R$25.000,00. Ademais, Escravagina profana com a ideia de corpo intocável, sagrado e puro, que se mantém na sua natureza de origem, como mandam as normas religiosas cristãs. Sobre os símbolos religiosos também há a profanação, não tanto como forma de ofensa como o é de provocação, reflexão, paródia e jogo. Sobre o jogo, Agamben diz ser essa uma das maneiras de conseguirmos profanar, pois jogando e brincando com a seriedade da arte tradicional ocidental, que está posta como contemplativa e inatingível no museu, é que se faz a passagem do sagrado ao profano (esfera do uso comum). Ainda, para o autor, “profanar não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas fazer delas um uso novo, a brincar com elas” (AGAMBEM, 207, p. 75).

Ao problematizar os dispositivos que organizam, ordenam e rotulam a ordem da vida social, Escravagina profana. A ideia de dispositivo é apresentada por Agamben, que a retoma de Michel Foucault, para pensar nos mecanismos que regularizam, normatizam, asseguram, orientam, modelam a sociedade, seja com relação ao corpo, à sexualidade, à profissão, à religião, etc., e também para tentar romper com eles pela profanação. Ela seria a responsável por repensar esses dispositivos que conduzem os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres, sendo a linguagem a mais antiga desses dispositivos. No espetáculo estudado, percebemos que o discurso trazido pela atriz é o da não normatização, da não padronização, seja de corpos, de orientação sexual, de desejo ou de identificação de gênero. Escravagina profana ideias, discursos, gêneros artísticos (ao combinar diferentes referências), relação entre atriz e plateia (ao aproximar as duas e inverter papéis), imagens, símbolos e ações religiosas, a política (nesse caso também ligada à religião) e profana a linguagem artística, pois faz um novo uso de cada elemento desses, ou seja, brinca, joga e parodia. Para Marcia Tiburi (2007), “é a profanação da linguagem que cria a literatura, a profanação da forma que cria a arte, a profanação da moral que cria a ética. A profanação dos conceitos cria a filosofia.” (2007, p. 2).

Este capítulo buscou levantar alguns elementos que contrapõem o conceito aristotélico de belo, repensando a ideia do feio e belo, do sexual, do gay, do profano, do exagerado, do estranho e do incômodo, a partir de excertos do texto teatral

Escravagina, do cartaz do mesmo espetáculo (ambos do ano de 2014) e de trechos

pertencem ao ficcional e à vida da atriz Maite Schneider, já que o espetáculo aqui estudado é um monólogo biográfico, questionando as relações de belo, bom e normal no corpo. A partir de categorias, compreendemos que o material de divulgação e o paratexto publicitário do espetáculo Escravagina, bem como alguns trechos da peça, revelaram elementos do híbrido, paradoxal, kitsch, grotesco, carnavalização, profanação, ironia, paródia, intertexto e art business, que, juntos, contestaram as dicotomias do belo-feio, normal-anormal, bem como questionaram o ideal de beleza corporal.

CATEGORIAS ELEMENTOS PROCEDIMENTOS EFEITO

Profanação (Religiosa, artística, corporal, sexual, de gênero). - Texto teatral (utilização de trechos bíblicos, nomes de religiosos, processo transexualizador, mescla de gêneros artísticos, ações e fatos ligados à sexualidade); - Mídias digitais do espetáculo (projeção audiovisual de programa de televisão, cenas de filmes, clipes, etc.); - Voz (mescla de feminino e masculino; revela o texto); - Corpo (símbolos religiosos por meio de gestos e ações corporais; corpo modificado; masturbação, toques); - Objetos de cena (vibrador, corrente, óleo lubrificante, etc.); - Figurino (mescla de feminino e masculino, desnudamento; figurino sensual, etc.); - Maquiagem (mescla de feminino e masculino, profanação de personagens religiosos); - Iluminação (completa e enfatiza cenas); - Cenário (profana gêneros teatrais); - Sonoplastia (músicas com letras eróticas,

- Gêneros textuais e artísticos (narrativo / representativo; cinema / teatro / documentário / televisão / performance / stand- up); - Gêneros- sexualidade (masculino e feminino); - Técnicas de representação da atriz (performance / stand- up / drama / comédia / burlesco); - Técnicas de caracterização de personagem; - Técnicas vocais e de expressão corporal; - Técnicas de modificação corporal; - Relação entre palco e plateia, atriz e público; - Encenação; - Metalinguagem. - Fragmentação textual; - Sequência textual não linear; - Subversão da tecnologia (com microfone); - Conversas, interferências entre atriz, plateia e direção; - Técnica de design, digitalização,

modificações digitais do material

que ironizam religião, etc.);

- Material publicitário (revela corpo seminu, posições provocantes; distorce imagens, criando outras figuras da atriz);

- Microfone (usado para outros fins); - Espaço teatral (não separa em alguns momentos palco de plateia. Atriz vai para a plateia, assim como espectador para o palco). publicitário; - Forma de venda do espetáculo e divulgação. Quadro 9 – Profanação. Fonte: Autoria própria.

Figura 16 – Aquarela 5 Fonte: (MARQUES, 2015e).