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A Sociedade Civil-Burguesa incorpora, na estrutura dialético-especulativa da Eticidade, a esfera da diferença e da mediação, que é, do ponto de vista histórico, a esfera do trabalho emancipado e da atividade econômica e social despolitizada; ou seja, da particularidade autônoma face à universalidade formal da mediação social e jurídica dos interesses privados. Isto é, a Sociedade Civil-Burguesa conseguiu mediar este aspecto anterior com, por contraposição histórica e conceitual, à esfera da sociedade política, que exprimia, em uma estrutura de dominação hegemônica, a unidade clássica entre sociedade civil (societas civilis) e o Estado (civitas), cuja unidade se opunha a esfera econômica da sociedade doméstica (oikos), baseada no trabalho doméstico, servil e escravo.

De acordo com Hegel, o Estado45 cedeu a uma das maiores reivindicações do século XIX, permitindo que a Corporação administre os seus próprios interesses internos, mesmo que sob a supervisão do Poder Público. Esta submissão de autonomia externa ao Poder Público é uma tentativa de assegurar e permitir aos indivíduos suprassumirem o seu fim egoísta de pessoa privada. Nesse sentido, “a administração concreta da vida social, em sua universalidade relativa”, provoca um processo de formação de uma cultura universal, “sem a qual a adesão subjetiva à universalidade real46, a saber, a atitude política, somente poderia ser

o efeito daqueles dos quais o universal é a especialidade: os funcionários” (KERVÉGAN, 2008, p. 264).

Assim sendo, segundo Kervégan, a cultura social, desenvolvida por essa instituição ética resulta na mediação do particular, a qual viabiliza formar “uma autêntica cultura política”, propiciando uma adesão inicial ao Estado, construindo, assim, uma base

45 Hegel foi profundamente marcado, segundo Lima Vaz, pelo Estado napoleônico e a construção do Código Civil, pois significou simbolicamente “o fim de um mundo simbolizado no sacro Império Romano-Germânico e a formação de um mundo novo” (LIMA VAZ, 1980, p. βγ).

46 A universalidade concreta deve ser lida como a universalidade efetiva da esfera do Estado, em que se encontra o estamento dos funcionários públicos. Ou seja, a universalidade concreta deve ser compreendida como um passo a mais em relação à universalidade relativa existente na Sociedade Civil-Burguesa.

institucional sólida do Estado. Nesse sentido particular, Hegel lembra e propõe de evitar o grave problema ocorrido na Inglaterra, onde se podia notar, de forma mais acentuada, a questão da pobreza47 e a proliferação do segmento da sociedade conhecida como a plebe, e é sugerido que, em grande parte, esse desmoronamento do sistema britânico se deve à supressão da Corporação.

A base sólida, proposta por Hegel, está diretamente ligada aos privilégios de autonomia concedidos à Corporação. Alguns desses privilégios são buscar e mediar os interesses de seus membros, aceitar novos membros, desde que sejam acolhidos pelo critério objetivo da habilidade e capacidade dos mesmos. Porém, este aceite deverá ser limitado, pois não deverá prejudicar a base sólida institucional, uma vez que a quantidade de membros não deve causar nenhum prejuízo, não só à ligação universal, que une esses membros, e estes ao Estado, mas também da sua continua qualificação e proteção contra as contingências, como salienta Hegel, na passagem:

A Corporação, segundo essa determinação, tem o direito, sob a fiscalização do poder público, de cuidar de seus próprios interesses contidos no seu interior, de aceitar membros segundo a qualidade objetiva de sua habilidade e retidão, em número que se determina pela conexão universal e de cuidar de seus integrantes frente às contingências particulares, assim como cuidar da cultura em vista da capacidade para ser integrado a ela (FD, § 252).

Portanto, como podemos notar acima, a Corporação possui uma característica toda especial: mediar tanto o particular quanto o universal, o qual, somado com a responsabilidade de cuidar de seus integrantes, constrói a possibilidade de não só ser a instância mediadora entre a família e o Estado, mas de assumir o papel de segunda família. Nas palavras de Hegel: “[...] de maneira geral, de intervir por eles enquanto segunda família, cuja posição permanece mais indeterminada para a Sociedade Civil-Burguesa universal, que está mais distante dos indivíduos e de sua situação de miséria particular” (FD, § β5β).

Um elemento central, nas Corporações, para Hegel, que torna alguém membro dessa instituição é o homem de ofício. Pois, são diferentes dos diaristas, os quais estão dispostos a fazer um “serviço contingente singular” (FD, § β5β A). Isto é, os diaristas não poderiam constituir uma associação cooperativa visto que, segundo Hegel, a grande diferença é o tipo de serviço a que cada um está disposto a se dedicar.

47 Hegel reconhece o surgimento de uma camada da população chamada de Plebe, porém, como membro de uma Corporação específica, inserida na Sociedade Civil-Burguesa e devidamente reconhecida pelo Estado, o indivíduo ganha o direito de ser ajudado pelos outros membros dessa coletividade. Isto é, “na Corporação, a ajuda que a pobreza recebe perde seu caráter de contingente, assim como o seu caráter de ilícito humilhante” (FD, § 253 A). E, continua: “e a riqueza, na sua obrigação para com sua cooperativa, perde a arrogância que ela pode suscitar no seu possuidor, bem como a inveja nos outros, – a retidão obtém seu reconhecimento verdadeiro e sua honra” (FD, § 253 A).

Os mestres de ofício, e quem vier a ocupar tal posto, não procuraram ser indicados para essa posição de destaque, simplesmente para garantirem alguns benefícios singulares, mas a abarcar toda uma substancialidade universal da particularidade. Nas palavras de Hegel: “Aquele, o mestre, ou quem quer vir a sê-lo, é membro da cooperativa, não para um ganho contingente singular, porém para todo o âmbito, para o universal de sua subsistência particular” (FD, § β5β A). Portanto, esses homens, ao alcançarem essa totalidade universal, assumirão, também indiretamente, a responsabilidade de formar, mediar e até mesmo, pela sua posição de destaque, liderar a Corporação (tendo em vista que é devido a seus conhecimentos que essas instâncias poderiam qualificar os outros membros; ao mesmo tempo em que ajudariam a manter o elo de mediação e de ligação entre a Sociedade Civil-Burguesa e o Estado).

Hegel consegue conceber que, a partir do reconhecimento e da aceitação de indivíduos na Corporação, devidamente reconhecida pelo Estado, esses indivíduos, consequentemente, também terão direitos a determinados “privilégios”48 e deveres inerentes a tal segmento da

Sociedade Civil-Burguesa. Eles não seriam simples exceções à lei, obtidos por influência política ou status quo, mas amparados em uma estrutura legal construída junto ao advento da sociedade moderna. Sobre isso, Hegel afirma:

Privilégios, enquanto direitos de um ramo da Sociedade Civil-Burguesa constituído

numa Corporação, e privilégios propriamente ditos, no sentido etimológico, distinguem-se uns dos outros por serem estes últimos exceções à lei universal, feitas segundo a contingência, ao passo que aqueles são somente determinações tornadas legais, que residem na natureza da particularidade de um ramo essencial da própria sociedade (FD, § 252 A).

A Corporação, devido à sua natureza de instituição, é o terreno em que pode eclodir, no próprio seio do mundo da particularidade, uma subjetividade, uma disposição de espírito ético ordenada no universal, posto que, aqui, o propósito egoísta da ação com fins econômicos é doravante apreendido a partir da universalidade do seu fim. E, assim, permitindo à Corporação ser considerada “novamente” uma segunda família, uma vez que, ao formar os indivíduos na sua própria atividade egoísta, permiti a eles se mediarem, através de seus interesses, ao universal, ao que é coletivo. Todos os indivíduos reconhecem-se, então, como profissionais. E, consequentemente, vêem-se como membros da sociedade, afirmando-se uma nova solidariedade social. Contudo, conforme já foi enunciado, a Corporação deverá ser

48A palavra “privilégio”, segundo Allen Wood, é proveniente do século XIII, sendo um derivado da palavra latina privus (que significa: privado, especial, particular ou excepcional) e da palavra Lex (que significa: lei, estrutura legal). Portanto, devemos considerar privilégio com o significado, originalmente vinculado a uma estrutura legal, o qual confere um benefício ou direito especial a um determinado indivíduo ou grupo de indivíduos.

supervisionada pelo Estado, a fim de evitar a sua degeneração – como aconteceu na sociedade feudal e nos inícios da época moderna – em uma camada da população unicamente preocupada com seus privilégios. Cabe à prevenção do Poder Público, então, evitar um processo de possível degeneração ou desvio de conduta da Corporação, pois ele cuida dos direitos da particularidade e não da sua asfixia. Em suma, a particularidade tem o direito de administrar os seus próprios assuntos.

O Estado deve, portanto, favorecer uma gestão pela própria Sociedade Civil-Burguesa, estruturada pelas Corporações, de suas próprias atividades. Cedendo a uma das maiores reivindicações dirigidas na primeira metade do século XIX pela Sociedade Civil-Burguesa ao Estado, Hegel proclama o direito das Corporações e das comunas de administrar elas mesmas, ainda que sob o supervisão do Poder Público, seus interessem próprios, a saber, “os interesses particulares comunitários, que recaem na Sociedade Civil-Burguesa e residem fora do universal sendo em si e para si do Estado mesmo” (FD, § β88).

2.5 - CORPORAÇÃO E O RECONHECIMENTO NA SOCIEDADE CIVIL-