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Corpos ciborguescos: hibridização entre homem e máquina

Integre-se, pois, à corrente. Pugle-se. Ligue-se. A uma tomada. Ou a uma máquina. Ou a outro humano. Ou a um ciborgue. Torne-se um: devir-

ciborgue. Eletrifique-se. O humano se dissolve como unidade. É só eletricidade. Ta ligado? (Tadeu da Silva)

“A subjetividade humana é, hoje mais do que nunca, uma construção em ruínas”, (SILVA, 2000, p. 11). Pensarmos a subjetividade humana na contemporaneidade é desenvolver uma reflexão que nos faz questionar radicalmente sobre a essência do homem.

É no confronto das imagens de clones, ciborgues e outros seres tecnonaturais que a nossa subjetividade passou a ser questionada diante de máquinas que nos completam ou até mesmo nos substituem.

Tadeu da Silva, em seu livro intitulado Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano (2000), apresenta-nos discussões acerca da temática homem e máquina, abrindo um leque de questões controversas sobre o chamado pós-humano:

Pois uma das mais importantes questões de nosso tempo é justamente: onde termina o humano e onde começa a máquina? Ou, dada a ubiqüidade das máquinas, a ordem não seria a inversa?: onde termina a máquina e onde começa o humano? Ou ainda, dada a geral promiscuidade entre o humano e a máquina, não seria o caso de se considerar ambas as perguntas simplesmente sem sentido? Mais do que a metáfora, é a realidade do ciborgue, sua inegável presença em nosso meio (“nosso”?), que põe em xeque a ontologia do humano. Ironicamente, a existência do ciborgue não nos intima a perguntar sobre a natureza das máquinas, mas, muito perigosamente, sobre a natureza do humano: quem somos nós? (p. 13).

A modernidade permitiu avanços tecnológicos que penetraram em nossos corpos, construindo uma hibridização entre o humano e a máquina. De um lado, seres humanos que se tornaram artificiais e, do outro lado, máquinas que potencializaram características humanas.

Variadas são as intervenções que as máquinas são capazes de fazer em nosso organismo e que problematizam a subjetividade humana. É na hibridização entre o orgânico e o maquínico que surge a imagem do ciborgue. Segundo Silva (2000):

Implantes, transplantes, enxertos, próteses. Seres portadores de órgãos “artificiais”. Seres geneticamente modificados. Anabolizantes, vacinas, psicofármacos. Estados “artificialmente” induzidos. Sentidos farmacologicamente intensificados: a percepção, a imaginação, a tensão. Superatletas. Supermodelos. Superguerreiros. Clones. Seres “artificiais” que superam, localizada e parcialmente (por enquanto), as limitadas qualidades e as evidentes fragilidades dos humanos. Máquinas de visão melhorada, de reações mais ágeis, de coordenação mais precisa. (...) Realidades virtuais. Clonagens que embaralham as distinções entre reprodução natural e reprodução artificial. Bits e bytes que circulam, indistintamente, entre corpos humanos e corpos elétricos, tornando- os igualmente indistintos: corpos humano-elétricos. (p. 14-15).

Surgem assim criaturas tecno-humanas que simulam o humano, agem e se comportam como tal, o que, consequentemente, nos faz indagar sobre a própria identidade pessoal, cuja singularidade fica ameaçada diante da imagem do ciborgue.

Contudo, é importante ressaltar que a idéia de ciborgue, apresentada pela maioria dos filmes, traz-nos uma idéia equivocada desses seres, uma vez que, enfatizam a dicotomia entre homem e máquina. Segundo Santaella (2003), o imaginário fílmico promoveu:

Ciborgs têm aparecido repetidamente nos filmes de ficção científica

dos últimos trinta anos. A maior parte desses filmes concebe o

ciborg como composto de partes orgânicas e próteses maquínicas.

Uma prótese é a parte ciber do corpo. Ela é sempre uma parte, um suplemento, uma parte artificial que suplementa alguma deficiência ou fragilidade do orgânico ou que aumenta o poder potencial do corpo. (...) No geral, a maior parte desses filmes, apesar da aparência futurista e progressista, longe de promover uma concepção dialética da interface entre o ser humano e a máquina, revela sua submissão a arraigadas oposições entre homem e máquina que fortalecem os velhos dualismos entre corpo e mente. (p. 187-189).

A presença das máquinas, da tecnologia em nossas vidas é, hoje, tão intensa e permanente que não há como definir fronteiras entre o que é orgânico e maquínico. Todos nós somos ciborgues, à medida que construímos constantemente

nossos corpos, remodelando-os por meio de medicamentos farmacêuticos e máquinas que potencializam nossas capacidades orgânicas.

De acordo com Silva (2000), o ciborgue, da feminista socialista e historiadora da biologia Donna Haraway, é um ser híbrido em que num mesmo corpo se misturam o mecânico e orgânico, o simulacro e o original:

O mundo de Haraway é um mundo de redes entrelaçadas – redes que são em parte humanas, em parte máquinas; complexos híbridos de carne e metal que jogam conceitos como “natural” e “artificial” para a lata do lixo. Essas redes híbridas são os ciborgues e eles não se limitam a estar à nossa volta – eles nos incorporam. Uma linha automatizada de produção em uma fábrica, uma rede de computadores em um escritório, os dançarinos em um clube, luzes, sistemas de som – todos são construções ciborguianas de pessoas e máquinas. (p. 26).

É essa imagem do ser ciborgue, própria dos anos 90, que já está prenunciada, de forma precursora, nos contos de Rubem Fonseca selecionados, nos quais é possível perceber uma gradação na relação de alteridade personagem- máquina, até a hibridização plena, materializada no próprio corpo-ciborgue da personagem, como ocorre em “O quarto selo (Fragmento)”.

Desta forma, o estudo do teórico russo Bakhtin, acerca da alteridade como elemento em permanente diálogo na construção da identidade, abre o caminho para o estudo da personagem na narrativa contemporânea, embora a interface com os seres tecnológicos necessite de outros estudos como os teóricos que forneçam subsídios sobre a relação máquina-máquina e máquina-homem no universo da tecnologia e da virtualização da ação.

CAPÍTULO II

A personagem e seu olhar maquínico: as lentes do “Zoom”.

Qualquer tentativa de estudo acerca da personagem esbarra necessariamente na questão do narrador. É ele que nos permite visualizar a personagem. No caso do conto “Zoom” (2004), temos uma narrativa em primeira pessoa. É a personagem quem narra seus pensamentos e suas lembranças.

A condução da narrativa por um narrador em primeira pessoa implica estarmos sob a perspectiva da personagem o que lhe confere a possibilidade de conhecer-se, presentificando-a no discurso em busca de sua identidade.

A personagem do conto “Zoom” constrói sua identidade por meio do relato de lembranças fragmentadas de seus relacionamentos amorosos inconstantes. Conhece Regina (a surda), relaciona-se com ela, mas sente uma paixão arrebatadora por Beatriz:

Frio, beijo novamente, no pescoço. A surda quer ouvir música. Na ponta dos dedos. Suéter marrom. Dança pela sala.

Sou surdo, enfio algodão nos ouvidos, Regina tapa minhas orelhas com força. Com a ponta dos dedos sinto a música. Sou ela. “Eu te amo.” “Eu tee adooooro.” Regina tem dificuldades com a minha camisa, afinal fico nu. Carrego Regina no colo pra cama. (...)

De repente, todo arrepiado: sem estrondo o mundo fica diferente. Beatriz atrás da grade, zoom entra pelos meus olhos. Nossas mãos se agarram. Estamos tontos, o amor chega a doer, combinamos encontro no Rio, (...). (FONSECA, 2004, p. 347-348).

É utilizando uma máquina fotográfica, que a personagem conhece Regina:

De repente a mulher coloca a máquina na minha mão. As fumaças de nossas bocas se encontram. “Aperte aqui”, mas não a a-per-te a- qui, austauí ou coisa parecida. Uma gringa. Aperto, pose, aperto, pose. Ridículo. Não olha nos meus olhos: fuinha, camisa de seda listrada de mangas compridas, abotoadura de homem, toupeira, calças, negras justas no corpo. (FONSECA, 2004, p. 344).

A personagem sente-se infeliz, “como estou infeliz”, insônia, “acordado a noite toda”, tenta ler um livro, mas suas lembranças o perseguem, “quero ler em paz”, e afirma não ser maluco, “Livro aberto em cima do peito. (Não sou maluco)”

(FONSECA, 2004, p 343). Há uma confusão nos sentimentos como também uma ruptura na ordenação do espaço-tempo.

A personagem está ao mesmo tempo numa estação de águas, num consultório médico e na sala de uma cartomante. No Palace, na piscina, no quarto 111 ou no parque e, desse modo, não segue uma linearidade de tempo e espaço:

Grande Hotel. (Ordem. Ordem) Na impossibilidade de deitar na banheira, que não existe, deito na cama. Uma cambada de velhos, velhas, crianças, todos muito comportados, falando em voz baixa, comendo com a boca fechada, deixando para palitar os dentes no quarto.

Às quatro horas estou no local do encontro. A minha namorada marcou um encontro comigo, chovia. Esperei horas e depois telefonei: “por que você não foi?”. “Chovia” Chovia, eu iria de maca. Ordem. Ordem, isso foi há muitos anos. (FONSECA, 2004, p. 345).

Cria-se, dessa forma, uma nova lógica de sentido. Palo (2007), em seu artigo sobre os contos de Rubem Fonseca, em especial uma análise do conto “Entrevista”, explica-nos: “São estes rumos temporais que promovem novas configurações do EU pela relação entre continuidade e descontinuidade, simetrias e assimetrias – elaboram uma outra lógica de sentido dado ao conto”. (p. 35).

É o próprio movimento do zoom que contamina a narração e re-configura a identidade da personagem. O discurso do conto apresenta uma descrição minuciosa de cada detalhe dos espaços, dos objetos, das sensações vivenciadas pelo narrador-personagem, focando o mínimo e não oferecendo a imagem do todo. São trechos curtos que misturam os discursos diretos das personagens, descrições detalhadas dos espaços sem uma ordem cronológica, simulando o movimento de aproximar, o olhar do zoom:

Duchas, águas, estetoscópio. Os punhos virados escondendo a sujeira. Toalhinhas de crochê, a sala de uma cartomante. “Vejamos o seu coração.” Estetoscópio no peito. “Sou um médico (que tem várias poltronas de couro vermelho. Esses furos parecem ânus, anos?, mas eu sou um) especialista.” Pago. (...) Grande Hotel. Um copo de plástico. Dizem que a comida é boa. (FONSECA, 2004, p. 343).

Considerando-se a valorização do visual no mundo contemporâneo, principalmente com o advento das novas tecnologias, percebemos no conto “Zoom”

a preocupação em evidenciar o “olhar”. Um olhar que é estimulado por um narrador dramatizado1 (a personagem) que não conta a história ao leitor, mas a mostra, por meio de um discurso feito acontecimento no aqui e agora da relação entre o escrito e o lido.

É o olhar da personagem que se torna maquínico como se fosse a lente de uma câmera que captura as imagens e as aproxima por meio do relato. A personagem tem sua função orgânica da visão expandida e potencializada pelo uso da máquina. Agora ela tem olhos de vidro:

O elevador está embaixo. Quinto. 501. Sala. Saleta. No sofá, de cabeça para a porta, Regina. Mesa, mesinha, livros, vitrola. “Melhorou?” “Naaaaão” (Na verdade um pouco.) Frio,beijo novamente, no pescoço. A surda quer ouvir música. Na ponta dos dedos. Suéter marrom. Dança pela sala. (...) 111. No lençol, no corpo, cheiro de outra pele, bafo de perfume azedo. Brinco de olho de vidro”, (FONSECA, 2004, p. 347).

Inicia-se o conto como se a personagem estivesse na cama, sem dormir e com um livro aberto em cima do peito. Já, no parágrafo seguinte, está no ônibus e simultaneamente bate à porta de um consultório médico. Tudo acontece quase que ao mesmo tempo sem uma lógica linear de tempo- espaço:

Acordado a noite toda. Livro aberto em cima do peito. (Não sou maluco). As mãos fechadas, o polegar levantado. Vigiado mais de meia hora, o livro aberto em cima do peito. Olho arregalado.

No ônibus.

Sinto logo um cheiro forte de estrume. Bato na porta. Sol forte e negras sombras. Apartamento 111. Mas isso foi antes de bater na porta. Duas camas de solteiro, duas mesinhas de cabeceira, um box, bidê. (Antes, antes, antes, vamos!, antes.) Bati na porta. Bato na porta. Vamos: bato na porta.

“Às suas ordens, às suas ordens.” MÉDICO – uma cruz vermelha. “Eu sou médico, mostre a língua.” (FONSECA, 2004, p. 343).

No excerto: “(Antes, antes, antes, vamos! Antes.) Bati na porta. Bato na porta. Vamos: bato na porta” (FONSECA, 2004, p. 343), percebemos que há uma necessidade da personagem em tentar organizar as lembranças, como se estivesse na cama, sem dormir e mergulhada em suas reminiscências. Em muitos parágrafos

1

O conceito de narrador dramatizado é de Wayne Booth em A Retórica da Ficção (1983) e implica a exposição da cena diretamente ao leitor, sem a mediação de uma narração propriamente dita; ao invés disso, exibe-se e mostra-se aquilo que se deseja narrar.

encontramos: “(Ordem, ordem, o progresso nada vale, mas a ordem é necessária), (Ordem. Ordem)”, (Fonseca, 2004, p. 343).

Essas recordações são descritas como imagens confusas, semelhantes ao próprio processo do nosso pensamento: fragmentado. Os períodos são curtos e, muitas vezes, compostos apenas por uma classe gramatical: substantivos, adjetivos, numerais, verbos etc.:

Duchas, águas, estetoscópio. (...) Toalhinhas de crochê, a sala de uma cartomante. (...) Pago. “Depois o senhor volta.” Escreve. (...) Feia princesa Leopoldina. Sete e trinta, novamente Saxe, cento e quarenta centímetros. (...) Grande Hotel. Um copo de plástico. (...). (FONSECA, 2004, p. 343).

A “personagem-máquina” tem a função de narrar suas lembranças como um olhar de uma câmera. Semelhante ao movimento do zoom, ela cria um discurso alinear, focando os detalhes, pois seus olhos agora são de vidro:

Finjo que o meu olho direito é de vidro, tento fazer com que o olho olhe em cima da penteadeira uma galinha que não existe dentro de um prato nas mesmas condições (...) No 111. Aguardo nu, no espelho grande. Brinco de olho de vidro. (...) Com o olho de vidro de brinquedo acompanho o ponteiro grande, perco aposta. 21.25. (FONSECA, 2004, p. 344 – 347).

Esse olhar maquínico simplesmente ajusta as lentes que lhe permitem alcançar os vários graus de grandeza sem a mínima preocupação de orientar o leitor neste jogo com lentes e focos, espaço e tempo.

O movimento de aproximar é tão intenso que o olhar fulminante da personagem vê nos “outros” seus órgãos internos, detalhes da pele, partes do corpo como que decomposto em suas partes:

Descubro uma berruga no rosto de Regina. (...) Os velhos têm rins, fígado, artérias. Nós temos pênis, músculos, ossos, vagina, amamos o corpo. Ordem. Descubro uma berruga, uma mancha, mole, no rosto de Regina. (FONSECA, 2004, p. 347).

É esse olhar máquinico que possibilita a visão dos detalhes, mas impossibilita a visão do todo. O leitor tem a sensação de que a narrativa é composta

por pedaços que devem ser organizados por meio da leitura, como um quebra- cabeça e, talvez assim, obter a visão do todo.

Vidal (2000), em seu livro intitulado Roteiro para um Narrador, faz uma leitura dos contos de Rubem Fonseca e nos explica acerca do questionamento da linguagem e da mudança de perspectiva do narrador. Ele identifica em alguns contos, como o “Zoom”:

Há contos como “***(Asteriscos)”, “O Quarto Selo, “Zoom”, “Corrente”, “Âmbar Gris”, “Os Inocentes”, “Correndo Atrás de Godfrey” e “Manhã de Sol” que demonstram a desarticulação entre linguagem e mundo, sofrendo por dentro o estranhamento da realidade e da palavra, como se ao ser apreendida a realidade explodisse frases, e o conto fosse a colagem dos pedacinhos. (p. 124).

A narração em primeira pessoa é como um jorrar de imagens num fluxo de consciência, que se constrói a partir de pequenos fragmentos como se fossem capturados pelo zoom de uma câmera, por meio de um ritmo contínuo e simultâneo.

Não há a mediação de um narrador relatando os fatos, eles são apresentados no aqui e agora do próprio ato narrativo como se o leitor estivesse vendo a cena ou as imagens acontecerem diante de seus olhos.

Wayne Booth (1983), no seu livro A retórica da ficção, discute as inúmeras maneiras de contar uma história, observando a complexa questão entre narrar e mostrar. Para o teórico, o modo de narração pode ser a retórica direta e autoritária com a intervenção do narrador, ou a narração impessoal (modo dramático) onde o narrador “renunciou ao privilégio de intervenção direta, retirou-se para os bastidores e deixou os personagens no palco resolvendo os seus próprios destinos”. (BOOTH, 1983, p. 25).

No modo dramático, evidencia-se o mostrar, ou seja, há uma estratégia autoral de ocultar-se da história que é “apresentada sem comentários na qual o leitor é privado da orientação dada por uma avaliação explícita”. (BOOTH, 1983, p. 25).

É importante ressaltar que não há o desaparecimento da voz autoral, mas sim um mascarar-se constante através da voz narrativa, da personagem que narra os fatos. Segundo Booth (1983):

(...) o juízo do autor está sempre presente, é sempre evidente a quem saiba procurá-lo. Se a forma particular que assume vem prejudicar ou auxiliar é uma questão complexa, uma questão que não pode resolver-se por fáceis referências a regras abstractas. Agora que vamos começar a entrar nesta questão,é preciso não esquecer que, embora o autor possa, em certa medida, escolher os seus disfarces, não pode nunca optar por desaparecer. (p. 38).

É essa narração impessoal, em que os acontecimentos são mostrados ao leitor, diretamente, sem a intervenção do narrador, que observamos no conto “Zoom”. Essa escolha do autor pelo modo dramático de narrar busca um efeito: construir, por meio do relato, o olhar direto e minucioso do zoom.

Desse modo, o zoom consegue potencializar o olhar da personagem, seu foco de visão, mas ao mesmo tempo impede a visão do todo, podendo distorcer as imagens. Essa capacidade busca provocar com a escrita o mesmo efeito de aproximação ou distanciamento próprio da lente da máquina fotográfica.

A sintaxe narrativa ganha o dinamismo do olhar do narrador, mostrando ora um foco que se aproxima, permitindo visualizar os detalhes: “Descubro uma berruga, uma mancha, mole, no rosto de Regina” (FONSECA, 2004, p. 347), ora se distância, oferecendo uma visão panorâmica: “ No salão de jantar. As pessoas, paletós, gravatas, anéis, pulseiras, sussurram, se entreolham”, (FONSECA, 2004, p. 344).

É a tensão estabelecida na relação entre o “eu” (narrador personagem) e a “câmera-zoom”. A alteridade tecnológica potencializa o olhar da personagem, focalizando os detalhes, porém, reduz a visão do todo. Estabelece-se, assim, na interface com a personagem-máquina, um contracampo entre diferentes forças: ampliação da capacidade de olhar do zoom e destruição de referências na impossibilidade da visão geral.

A personagem, em certos momentos do relato, afirma a necessidade de tentar compreender o todo, enfatizando a ordem: “(Ordem, ordem, o progresso nada

vale, mas a ordem é necessária.)”. (FONSECA, 2004, p. 343). A narração dos fatos é apresentada como imagens simultâneas e distorcidas, o que causa tanto na personagem como no leitor a necessidade de organização, de linearidade.

Buscando uma compreensão mais ampla, o vocábulo zoom nos remete ao verbo no inglês to zoom que significa afastamento ou aproximação de uma imagem em cinema e televisão de maneira repentina, mas, também, tem o sentido de zumbir, zunir. Quanto ao significado da palavra zumbir, está associado a ruídos surdos perceptíveis pelo ouvido.

Desse modo, além da visualidade criada pelo ritmo vertiginoso da narrativa, o texto também explora as outras percepções sensoriais, como, por exemplo, a auditiva. A personagem Regina é surda e o narrador-personagem, além do olho de vidro, lê sons: “Ela lê lábios. Eu leio sons. (...) Tento explicar para ela o que é o silêncio, o som entra pela ponta dos dedos. (...)” (FONSECA, 2004, p. 345-346).

Outros exemplos de sonoridade estão nas inúmeras onomatopéias e na fala de Regina em que a palavra busca representar sua gagueira: “De Milano?” “Siimmmilaaano”, “Minnnhatiiiiiia”, Chap, Chap, Chap, Vupt, Zandvoort-zuum!, Rooarr! etc.

Há um híbrido das percepções sensoriais. Ao descrever Beatriz, o narrador fixa uma imagem, mas, ao mesmo tempo nos sugere sonoridade:

Surge Beatriz. Música. Estou preso ao ritmo do seu corpo. Uma toalha vermelha. Um arrepio de frio. Surge Beatriz, seu olhar atravessa a piscina, pássaro, raio laser: é longe, nem o branco nem o preto do olho: ela me olha com o rosto todo, nariz, testa, queixo, órbitas. Uma coisa fulminante entre nós dois. (FONSECA, 2004, p. 346-347).

Fica evidente, assim, que a narrativa do conto e as personagens, buscam diluir as fronteiras entre as diferentes linguagens das mídias de comunicação aproximando a escrita dos recursos visuais e sonoros.

Figueiredo (2003) comenta sobre a íntima relação da obra de Rubem Fonseca com as diferentes linguagens das mídias tecnológicas e afirma:

(...) o cinema na literatura de Rubem Fonseca está intimamente associado à sua prática narrativa e abre possibilidades para que se desenvolva toda uma reflexão sobre o ato de narrar. Para representar um mundo onde tudo se tornou visível, tudo se resume a pura exterioridade, o autor busca a dimensão da simultaneidade própria da imagem visual, pois esta parece mais compatível com o sentimento do tempo na vida contemporânea do que a sucessividade do discurso verbal. Opta, então, por uma sintaxe narrativa que sugere a platitude da imagem, como se quisesse apenas oferecer ao leitor uma seqüência de quadros, que pode ser contemplada de diferentes ângulos. (FIGUEIREDO, 2003, p. 147).

Em “Zoom” a narração dos fatos, as frases não se sucedem obedecendo a uma ordem conceitual, elas se submetem às leis da imagem e de um ritmo. É uma estrutura multilinear que abre várias possibilidades de leitura e de organização dos episódios. É nessa direção que Murray (2003) analisa o conto, “O jardim dos caminhos que se bifurcam”, de Borges e o considera uma antecipação dos prazeres do mundo multivariável que se intensificou a partir do surgimento do computador e

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