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PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA SÃO PAULO

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

Juliana Daniel

DA PERSONAGEM MÁQUINA AO CIBORGUE EM: “ZOOM”, “O GRAVADOR” E “QUARTO SELO (FRAGMENTO)” DE RUBEM FONSECA.

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

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JULIANA DANIEL

Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Literatura e Crítica Literária à Comissão Julgadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação da Profª Dra. Maria Rosa Duarte de Oliveira.

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BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________

_____________________________________________________

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Dedicatória

Aos meus pais, Maria e Roberto, que sempre me incentivaram e apoiaram.

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora pela confiança, estímulo e valiosa orientação.

Aos meus professores Fernando Segolin, Biagio D’Angelo, Beatriz Berrini, Maria Aparecida Junqueira, Maria José Gordo Palo, Vera Bastazin pelos fundamentos teóricos.

Aos meus pais pelo aconchego familiar e meu irmão Roberto pelo incentivo.

Ao meu companheiro Neto pelo carinho e paciência.

Às minhas amigas Marilene e Natascha pela amizade, apoio e pelas conversas sobre Literatura.

À minha amiga Michele por me mostrar a beleza da arte literária.

À Ana Albertina pelo suporte acadêmico.

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“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou”.

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RESUMO

Esta dissertação propõe o estudo da personagem sob a perspectiva de sua relação de alteridade com os aparatos tecnológicos em três contos de Rubem Fonseca: “Zoom” (1965), “O gravador” (1965) e “O quarto selo (Fragmento)” (1967). Os contos selecionados apresentam estreita relação com as novas tecnologias de comunicação, de modo que a estrutura composicional e a personagem ganham, nesse contexto, uma nova abordagem. Questiona-se a construção da identidade da personagem e seu papel dentro da narrativa, uma vez que o outro é o sujeito-máquina. Partindo do conceito fundamental bakhtiniano - o princípio dialógico enquanto percepção da alteridade na construção da identidade – além da concepção de Lévy sobre as relações entre atual e virtual no universo das tecnologias, consideramos a relação da personagem com seu outro - os aparatos tecnológicos - numa gradação que vai da virtualização/simulação do olho e da voz por meio do zoom da câmera e do gravador, até o corpo híbrido de um verdadeiro

ciborgue, como ocorre com o Exterminador em “O quarto selo”. Entretanto, ao

mesmo tempo em que esse “outro” permite à personagem a possibilidade de se expandir, também pode aprisionar e destruir aquilo que é inerente ao homem. A tecnologia não anula as contradições das personagens, mas, ao contrário, acirra-as ainda mais. Objetivamos, desta forma, elaborar uma reflexão, ainda que inicial, sobre a função dos aparatos tecnológicos na caracterização das personagens fonsequianas, visando contribuir para uma reflexão mais ampla sobre o estatuto dos seres ficcionais na contemporaneidade.

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ABSTRACT

This dissertation propose to introduce the investigation of the character under the perspective of the relation alterity with the technology equipments in three short-stories by Ruben Fonseca: “Zoom” (1965); “O Gravador” (1965) and “O quarto selo (Fragmento)” (1967). The select short stories introduced an intimacy relation with the new communication technologies, in such a manner as the arrangement structure and the character gets, in this context, a new approach. It’s in question the identity construction of the character and this part inside the short story, once that the other is the machine-subject. Beginning from the fundamental bakhtiniano concept – the dialogue principle while alterity perception in the identity construction – beyond Lévy conception about the relations between actual and virtual in technology universe, we considered the relation of the character with it’s other – the technological equipments in gradation that goes from virtual/simulation of the eyes and the voice throughout the camera zoom and the recorder, until the hybrid body of the real cyborg, like happens with the Exterminator in “O quarto selo”. However, at the same time, this other allows the character a possibility to expand itself, and it also can capture and destroy what is inherent in the human being. The technology doesn’t cancel the contradictions, but, unlike, increase it them once more. We purpose, in this way, elaborate a reflection, although initial, about the function from the technological equipments to the characterization fonsequianas, aim at a reflection more wide open about the status creatures fiction in the contemporaneous period.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...11

CAPÍTULO I - A PERSONAGEM E SUAS TRANSFORMAÇÕES NA NARRATIVA CONTEMPORÂNEA...18

1. A personagem maquínica no campo dialógico: a máquina como sujeito atuante na construção da identidade......22

2. Tecnologia e identidades múltiplas: personagem e ação virtual...26

3. Corpos ciborguescos: hibridização entre homem e máquina...31

CAPÍTULO II – A personagem e seu olhar maquínico em “Zoom”

...34

CAPÍTULO III - Estereofonias Vocais: As vozes da personagem gravador...43

CAPÍTULO IV – O Exterminador-Ciborgue no conto “O Quarto Selo (Fragmento)”...56

CONSIDERAÇÕES FINAIS...69

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Introdução

O interesse na pesquisa sobre os contos contemporâneos de Rubem Fonseca, em especial o estudo da personagem, nasceu pelo fato de sua estrutura composicional apresentar novos recursos que caracterizam as interfaces com as tecnologias de comunicação.

A indagação foi inevitável, posto que sua produção está inserida num período marcado por experimentação e renovação do fazer literário, de modo que a instância narrativa e a personagem deveriam ganhar, também, nesse contexto uma nova abordagem.

Nas décadas de 60 e 70, período marcado pela repressão do Regime Militar e pelo desenvolvimento da cultura de massa, Rubem Fonseca por meio de uma linguagem “brutalista” produz textos críticos em relação ao momento vivido, no qual as novas tecnologias de comunicação estavam invadindo o mercado consumidor.

O crítico Antônio Cândido (1989) considera como um movimento de “desliterarização” esse período e afirma:

A posição politicamente radical de vários desses autores fazia-os procurar soluções antiacadêmicas e acolher os modos populares; mas ao mesmo tempo os tornavam mais conscientes da sua contribuição ideológica e menos conscientes daquilo que na verdade traziam como renovação formal. (p. 205).

Os contos de Rubem Fonseca emergem nesse contexto que também é caracterizado pelo “capitalismo selvagem”, no qual a sociedade de consumo mostra-se, ao mesmo tempo, sofisticada e bárbara e que o autor apresenta na criação dos seres ficcionais que povoam suas narrativas. As personagens fonsequianas, segundo Figueiredo (2003), podem ser caracterizadas como:

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de indivíduos que, diante da impossibilidade de levar a fundo as virtudes que a moral tradicional apregoa, transformam-se em figuras errantes e desconstrutoras ou em nostálgicos amargurados ou ainda em cínicos, que se movem, sem culpa, guiados pela moral mercantilista da troca. (p. 20-21).

Por meio da caracterização das personagens, cada vez mais complexas e fragmentadas que povoam as narrativas contemporâneas, a Literatura problematiza a subjetividade frente às novas tecnologias de informação para que possamos repensar sobre o humano.

E foi a partir da leitura dos contos contemporâneos “Zoom”(1965), “O quarto

selo (Fragmento)” (1967) e “O gravador” (1965), de Rubem Fonseca, que surgiu o

interesse em empreender um estudo literário que revelasse a personagem do ponto de vista de sua fragmentação e relação com a alteridade maquínica.

O conto “Zoom”, publicado pela primeira vez numa coletânea de contos intitulada, A coleira do cão, em 1965, apresenta-nos logo de início uma aproximação com a tecnologia, a partir do próprio título, que nos remete a uma espécie de olho mecânico capaz de potencializar o alcance visual de um olho humano.

A personagem protagonista relata sua inconstância nos relacionamentos amorosos por meio de uma narrativa fragmentada, em aparente desordem no relato dos fatos, como se fossem episódios soltos de suas lembranças, que são relatados simultaneamente em diferentes espaços e tempos e, assim, o ato de narrar assemelha-se muito ao processo de aproximação de uma imagem, como o “zoom” de uma câmera.

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Em “O quarto selo (Fragmento)”, por sua vez, que foi publicado pela primeira

vez em 1967, no livro intitulado Lúcia McCartney, as personagens relacionam-se

com uma infinidade de suportes eletrônicos como o IVE, (Identificador Vocal Eletrônico), e o CTCF, (Compartimento de Transmissão de Circuito Fechado semelhante à televisão e que possibilita a telepresença), o CONTROLE, um computador, e por fim o INTERCOM, (Intercomunicação direta), similar ao telefone. O protagonista não é identificado por um nome próprio, apenas por “o Exterminador”, que finge ser outra pessoa, camufla-se para atingir seus objetivos.

São narrativas que apresentam a violação permanente das fronteiras, uma vez que misturam tempo, espaços e remodelam continuamente identidades. Suas personagens apresentam identidades múltiplas, inclusive abrindo espaço para o diálogo com outros, que são seres tecnológicos como: o gravador, o telefone, a televisão, o recurso de filmagem (zoom) etc.

No intuito de compreender a interface homem e máquina e derivar as conseqüências dessa relação para o estudo da personagem colocamos o seguinte problema: a alteridade maquínica pode influenciar na construção da identidade da personagem e reestruturar seu papel dentro da narrativa?

Para isso, partimos de um conceito fundamental do pensamento bakhtiniano: o princípio dialógico enquanto percepção da alteridade na construção da identidade. Segundo Bakhtin (2000), é apenas na presença de um diálogo tenso entre o eu e o outro que construímos nossa identidade:

O excedente da minha visão contém em germe a forma acabada do outro, cujo desabrochar requer que eu lhe complete o horizonte sem lhe tirar a originalidade. Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento. (p. 91).

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alteridade, expandem-se os “outros” com os quais o sujeito relaciona-se. Esse

“outro” agora também é a máquina, que passa a ser extensão de nosso corpo, conforme observa McLuhan: “Com o telefone, temos a extensão do ouvido e da voz, uma espécie de percepção extrasensória”, (2003, p. 32).

Lévy (1996), no entanto, observa uma grande diferença na concepção de um ser maquínico enquanto extensão ou ação virtual:

De acordo com o que foi proposto por Marshall McLuhan e André Leroi-Gourham, diz-se às vezes que as ferramentas são continuações ou extensões do corpo. Essa teoria não me parece fazer justiça à especificidade do fenômeno técnico. (...) Mais que uma extensão do corpo, uma ferramenta é uma virtualização da ação. O martelo pode dar a ilusão de um prolongamento do braço; a roda, em troca, evidentemente não é um prolongamento da perna, mas sim a virtualização do andar. (p. 75. grifos nossos).

De acordo com Lévy, o homem ao utilizar uma ferramenta não tem a extensão de seu corpo, uma vez que, por exemplo, é impossível multiplicar suas unhas ou emprestá-las para outro. A utilização de uma ferramenta cristaliza o virtual, o qual deve ser compreendido não como ausência de existência, ou oposição ao real, mas sim oposição ao atual:

O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado no entanto à concretização efetiva ou formal. A árvore está virtualmente presente na semente. Em termos rigorosamente filosóficos, o virtual não se opõe ao real mas ao atual: virtualidade e atualidade são apenas duas maneiras de ser diferentes. (LÉVY, 1996, p. 15).

Se pensarmos nos modernos aparatos tecnológicos que cada vez mais oferecem diferentes graus de simulação, perceberemos que a tecnologia também traz a realidade dos simulacros, a qual simula ser “outro” e estar no “lugar de”.

As mediações oferecidas pelas máquinas de comunicação, cada vez mais intensas, propiciam questionamentos acerca das fronteiras estabelecidas entre o atual e o simulacro, este entendido enquanto realidade virtual.

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O telefone funciona como um dispositivo de telepresença, uma vez que não leva apenas uma imagem ou representação da voz: transporta a própria voz. O telefone separa a voz (ou o corpo sonoro) do corpo tangível e a transmite à distância. Meu corpo tangível está aqui, meu corpo sonoro, desdobrado, está aqui e lá. (LÉVY, 1996, p. 28).

Entretanto, ao mesmo tempo em que esse “outro” permite à personagem a possibilidade de se expandir, também pode aprisionar e destruir aquilo que é inerente ao homem. A tecnologia não anula as contradições das personagens, mas, ao contrário, acirra-as ainda mais.

A nossa hipótese é a de que há, entre os três contos selecionados, uma gradação na relação entre a personagem e sua alteridade tecnológica em termos de virtualização de suas ações: desde as do olho e da voz em “Zoom” e “O gravador”, até o “Quarto selo” onde o que temos é uma personagem-ciborgue, cujo corpo é um híbrido entre humano-máquina.

O “outro” máquina evidencia, assim, no projeto autoral de construção da identidade da personagem a crítica à tecnologia, a qual, ao mesmo tempo em que pode aprisionar o homem, transformando-o em um ser ciborguesco que age com a frieza das máquinas, pode, também, permitir às personagens a potencialização de suas capacidades.

Em cada conto, a alteridade maquínica multiplica diferentes corpos, atingindo uma gradação no processo de interface entre personagem e máquina.

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Já em “O gravador”, Jorge tem seu corpo expandido por meio do telefone, do gravador e da cadeira de rodas. Agora, é a voz que ganha corpo e presença multiplicados em outras tantas vozes num constante jogo entre atual e virtual.

Em “O Quarto selo (Fragmento)”, a duplicidade entre a personagem e seu outro máquina atinge o ápice, a ponto da personagem “O Exterminador” transformar-se, no decorrer da narrativa, num ser ciborgue.

A investigação dessa hipótese se fará ao longo dos quatro capítulos desta dissertação, assim organizados: O primeiro capítulo – “A personagem e suas transformações na narrativa contemporânea” – apresenta uma síntese da produção literária do escritor, inserindo-o no contexto literário e sócio-cultural da época e terá por foco a reflexão sobre o conceito de personagem maquínica no campo dialógico. Assim, evidenciará a máquina-personagem como sujeito atuante no contracampo “eu” - “outro”, à luz dos estudos bakhtinianos que prevêem a alteridade na construção do “eu”.

Refletiremos, também, acerca do conceito de ação virtual, por meio dos estudos de Lévy (1996), Baudrillard (1991) e Santaella (2003) que, dentre outros teóricos, oferecem-nos subsídios para a compreensão da interface homem - máquina na construção da subjetividade humana.

Finalmente, ainda nesse capítulo, atentaremos para a discussão sobre os corpos-ciborguescos, baseando-nos nas reflexões de Tadeu da Silva (2000) e sua

antropologia do ciborgue, isto é, corpos híbridos entre o orgânico e o maquínico.

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CAPÍTULO I

A PERSONAGEM E SUAS TRANSFORMAÇÕES NA NARRATIVA CONTEMPORÂNEA

O estudo da personagem na narrativa de Rubem Fonseca, em especial o que se configura nos três contos seus – “Zoom”, “O Gravador e “O quarto selo (Fragmento)” – sob a perspectiva de sua relação de alteridade com os aparatos tecnológicos, exige, antes de tudo, que observemos a obra do autor num contexto mais amplo: o do período dos anos 60 e 70.

Esse foi um momento marcado pela proliferação de novos contistas como: Nélida Piñon, João Antônio, Moacyr Scliar, Luís Vilela, Ivan Ângelo, além do próprio Rubem Fonseca, que contribuíram para a expansão do gênero conto. Como afirma Vidal (2000):

Vários desses nomes conheceram mais tarde uma considerável popularidade, através de um trabalho editorial mais amplo, bem como pela entrada de seus livros no currículo das escolas e universidades. (...) Um dos últimos autores estreou já num momento de maturidade intelectual, e pôde-se conhecer uma voz de timbres muito pessoais, vinda do Rio de Janeiro: trata-se de Rubem Fonseca,que chamou a atenção da crítica desde a estréia. (p. 13)

O conturbado período político teve como golpe mais duro sobre as artes e as produções artísticas o Ato Institucional nº 5. “(...) o controle sobre os meios de comunicação e sobre as manifestações artísticas em geral passou a ser extremamente severo, silenciando muitos artistas”, (OTSUKA, 2001, p. 15). O que resultou na restrição das liberdades individuais, intelectuais e artísticas.

Rubem Fonseca foi um dos artistas censurados pelo regime militar. Seu livro Feliz Ano Novo, (1975), foi proibido pela censura sob a acusação de “atentado à moral e aos bons costumes”, além de fazer apologia do crime.

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consolidar no Brasil o chamado “capitalismo tardio”, o que fortaleceu o mercado de bens culturais.

As regras do mercado bem como a atuação das editoras passaram a ser determinantes nessa relação. Ressaltar este fato é importante, posto que o próprio Rubem Fonseca, como outros escritores da época, utilizaram dessa temática para reflexão crítica em suas obras:

É exatamente Rubem Fonseca, um dos autores com livros de maior vendagem nos últimos anos, que vem tematizando de modo mais explícito o mercado. A todo momento em Bufo & Spallanzani o

narrador se refere à necessidade de entregar logo ao seu editor o romance pronto, pelo qual já recebera inclusive vários adiantamentos em dinheiro. Chega mesmo a criar um mote nesse sentido” A necessidade de dinheiro, aliás, é uma grande incentivadora das artes”. (SÜSSEKIND, 2003, p. 269).

A reflexão crítica sobre o papel do escritor e sua obra, diante da ampliação da indústria editorial, como componente ficcional, também está presente em seus contos como “Intestino Grosso”, publicado em Feliz Ano Novo.

"Última pergunta: você gosta de escrever?"

"Não. Nenhum escritor gosta realmente de escrever. Eu gosto de amar e de beber vinho: na minha idade eu não deveria perder tempo com outras coisas, mas não consigo parar de escrever. É uma doença."

"Acho que já temos bastante", eu disse desligando o gravador. Depois de transcrita a entrevista fui ao Editor.

"Esta entrevista parece um Dialogue des Morts do classicismo francês, de cabeça para baixo", eu disse.

"Vamos publicar assim mesmo", disse o Editor. Telefonei para o Autor.

"Você disse duas mil seiscentas e vinte e sete palavras e nós vamos lhe mandar o cheque respectivo."

O Autor nem agradeceu. Mais uma vez desligou o telefone na minha cara.

"Esses escritores pensam que sabem tudo", eu disse, irritado. "É por isso que são perigosos", disse o Editor. (FONSECA, 2004, p. 469).

É nesse cenário político e histórico que desponta o escritor mineiro, inovando a literatura brasileira ao tratar da violência urbana com uma brutalidade narrada meticulosamente.

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A coleira do cão. Em 1969, foi a vez de Lúcia McCartney, que confirma seu talento para experiências mais ousadas, como é o caso do conto de mesmo nome. O caso Morel (1973) marca sua primeira experiência no gênero romanesco e traz alguns dos procedimentos que marcarão seu estilo inconfundível. Com Feliz Ano Novo

fixa, definitivamente, sua reputação como um dos mais representativos escritores da literatura brasileira contemporânea.

Evitando mascarar a realidade, utiliza uma linguagem crua e naturalista para retratar o cotidiano das grandes cidades. Segundo Bosi (2002), o adjetivo “brutalista” é o que melhor caracteriza a linguagem de Rubem Fonseca:

O adjetivo caberia melhor a um modo de escrever recente, que se formou nos anos de 60, tempo em que o Brasil passou a viver uma nova explosão de capitalismo selvagem, tempo de massas, tempo de renovadas opressões, tudo bem argamassado com requintes de técnica e retornos deliciados a BabeI e a Bizâncio. A sociedade de consumo é, a um só tempo, sofisticada e bárbara. Imagem do caos e da agonia de valores que a tecnocracia produz num país do Terceiro Mundo é a narrativa brutalista de Rubem Fonseca que arranca a sua fala direta e indiretamente das experiências da burguesia carioca, da Zona Sul, onde, perdida de vez a inocência, os "inocentes do Leblon" continuam atulhando praias, apartamentos e boates e misturando no mesmo coquetel instinto e asfalto, objetos plásticos e expressões de uma libido sem saídas para um convívio de afeto e projeto. A dicção que se faz no interior desse mundo é rápida, às vezes compulsiva; impura, se não obscena; direta, tocando o gestual; dissonante, quase ruído. (p. 18).

O desenvolvimento de novos temas, técnicas e formas narrativas foram apontados pelo olhar da crítica e significaram uma busca pela renovação. Segundo Cândido (1989):

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justaposição de recortes, documentos, lembranças, reflexões de toda a sorte. (p. 209).

A crítica Vera Follain Figueiredo em seu livro Os crimes do texto (2003), assim analisa a obra de Rubem Fonseca:

No caso dos romances de Rubem Fonseca, as inúmeras citações levam a suspeitar que se está diante da costura de dados de um arquivo de computador: leitura e escritura se confundem, diluindo-se os limites entre ler e criar – em estilo próprio, o autor diluindo-segue, deste modo, a lição do mestre Jorge Luis Borges. Ultrapassam-se as barreiras da autoria, incorporam-se outros códigos, como o da semiótica, o da filosofia ou o da cultura de massa, e absorvem-se recursos de outras linguagens, como a da fotografia e a do cinema. (p. 12).

Márcia Denser (2003), em seu estudo sobre os fenômenos midiáticos do conto urbano brasileiro, analisa a obra de Rubem Fonseca e enfatiza sua interface com as diferentes linguagens midiáticas: Os programas de televisão, o cinema, os jornais-tablóides e até as fotonovelas, elementos da chamada “cultura de massa”, não só compuseram a temática da obra de Rubem Fonseca, como também dialogaram com o fazer literário.

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1- A personagem maquínica no campo dialógico: a máquina como sujeito atuante na construção da identidade.

Os contos de Rubem Fonseca “Zoom”, “O gravador” e “O quarto selo (Fragmento)” instigaram-nos a perceber a necessidade de novos caminhos para o estudo da personagem, uma vez que o “outro” com quem ela se relaciona também pode ser a máquina.

Segundo Lima (2006), com o advento das novas tecnologias de comunicação, a própria Literatura foi posta em xeque e se reestruturou:

O advento da mídia digital de massa e das recentes tecnologias de informação/comunicação colocou em xeque o papel tradicional da literatura e da arte como um todo, desencadeando um movimento de autoquestionamento a partir de seus próprios fundamentos. Estes questionamentos ocorrem sob diversos aspectos, dentre os quais podemos citar: a noção e concepção de autoria, a fragmentação da narrativa, as novas relações textuais – criadas a partir o conceito de hipertexto (matriz de textos potenciais), da relação texto/imagem, da interatividade, da virtualização do texto literário e da introdução do conceito de ciberliteratura. (...) obras que procuram redefinir e ampliar o estatuto do literário seja pelo diálogo intersemiótico do texto com imagens, sons e movimentos, seja pelo questionamento de conceitos sobre leitura, autoria, narrativa e representação. (p. 191 – 212)

Essa questão trouxe para a narrativa, especialmente para a construção dos seres ficcionais, uma nova perspectiva para a configuração de sua identidade, partilhada, a partir de agora, também, com as máquinas - sujeitos e não apenas como objetos dentro do campo dialogal.

Tais relações dialógicas foram estabelecidas pelos estudos de Bakhtin sobre a personagem enquanto campo de tensões entre o self e o outro:

Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar. (...) Esse excedente constante de minha visão e de meu

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Ao refletir sobre a visão de Bakhtin no tocante à construção do self, Clark e

Holquist (2004) afirmam que:

Bakhtin concebe a outridade como fundamento de toda a existência e o diálogo como a estrutura primacial de qualquer existência particular, representando uma constante troca entre o que já é e o que não é ainda. O registro e o plasmador dessas transformações é a consciência humana, que modula o intercâmbio contínuo entre as atividades “eu” e tudo o que é “não-eu-em-mim” (...) O self

bakhtiniano nunca é completo, uma vez que só pode existir dialogicamente. Não é uma substância ou essência por direito próprio, porém existe apenas num relacionamento tenso com tudo o que é outro e, isto é o mais importante, com outros selves. (p. 91).

Para entendermos o mundo à nossa volta e construirmos nosso self, é

necessário considerarmos que a percepção humana possui um ponto cego, ditado pela lei do posicionamento. Podemos ver coisas que estão num campo de visão no qual o outro não pode ver. Mas, ao mesmo tempo, há coisas que não podemos ver às nossas costas, e que o outro pode ver. Desse modo, a alteridade é uma forma de diálogo permanente mantido na constituição do self e que contribui para que

possamos também olhar o mundo através dos olhos do outro.

A bem dizer, na vida, agimos assim, julgando-nos do ponto de vista dos outros, tentando compreender, levar em conta o que é transcendente à nossa própria consciência: assim, levamos em conta o valor conferido ao nosso aspecto em função da impressão que ele pode causar em outrem (...) em suma, estamos constantemente à espreita dos reflexos de nossa vida, tais como se manifestam na consciência dos outros (...) o que conhecemos e presumimos de nós mesmos através da visão do outro se torna totalmente imanente à nossa consciência. (BAKHTIN, 2000, p. 36).

É a partir desse campo dialogal entre o “eu” e o “outro” dos estudos bakhtinianos que devemos partir para a percepção da personagem na narrativa contemporânea, considerando-se nesse campo dialogal a presença da máquina como um sujeito personagem.

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Uma das dificuldades apresentadas por Bakhtin é como evitar que se pense, a partir da interioridade, uma simultaneidade difundida por toda a parte sem ao mesmo tempo cair no habito de reduzir tudo a séries de oposições binárias: não um dialético ou/ou, mas um dialógico ambos/e. No âmago de sua obra há um reconhecimento da existência como uma atividade incessante, uma enorme energia, que está constantemente no processo de ser produzida pelas próprias forças por ela impulsionadas. Tal energia pode ser concebida como um campo de força criado pelo embate ininterrupto entre forças centrífugas, que se empenham em manter as coisas variadas, separadas, apartadas, diferenciadas umas das outras, e centrípetas, que se empenham em manter as coisas juntas, unificadas, iguais. (BAKHTIN, 2000, p. 35)

A personagem, ao se relacionar com o “outro” máquina, estabelece com ela uma arena de confronto: a máquina tanto possibilita à personagem expandir-se e potencializar sua capacidade, quanto pode aprisioná-la, estabelecendo uma dependência que desumaniza a personagem.

O debate entre os estudiosos acerca da virtualização e do simulacro é bastante acirrado. Sob uma ótica otimista, as tecnologias de simulação são vistas como um instrumental enriquecedor das novas experiências e potencializadoras da capacidade humana. Por outra perspectiva, a simulação é vista de forma negativa.

Segundo o filósofo Baudrillard (1991), a simulação construída pelos aparatos tecnológicos, ao anular a referência externa, destrói o real, liquida os sentidos e cria um hiper-real:

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A contemporaneidade é caracterizada pela invasão da técnica, fazendo com que o patrimônio da informação esteja desvinculado da experiência direta do homem. A transmissão agora é de outra ordem: é da ordem da técnica e da mediação dos suportes da comunicação, que, segundo Baudrillard, acabam negando, em última instância, o real.

Lévy (1996), contrariamente a essa concepção, reconhece na realidade virtual a possibilidade de múltiplas formas do real, caracterizando-a como um modo fecundo e poderoso de interação entre o homem e a tecnologia.

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2- Tecnologia e identidades múltiplas: personagem e ação virtual.

Ter uma identidade fixa é hoje, nesse mundo fluído, uma decisão de certo modo suicida. (Zigmund Bauman)

Os novos aparatos tecnológicos de comunicação, cada vez mais sofisticados, nos proporcionam o fenômeno conhecido como “telepresença” ou “presença virtual”. Ao utilizar o telefone, podemos estar em diferentes lugares e numa fração de segundos, o que seria impossível para o nosso corpo biológico.

O telefone transporta minha voz como um corpo sonoro desdobrado aqui e lá ao mesmo tempo, ou seja, em tempo real. Sibilia (2002) explica-nos sobre a virtualização no contexto das novas tecnologias:

Nesses cenários, a virtualização do espaço se conjuga, também, com um desdobramento da dimensão temporal: para especificar a simultaneidade de duas presenças que prescindem da materialidade da dimensão espacial se faz necessário acrescentar o adjetivo “real” ao substantivo “tempo”. O tempo real passou a nomear, assim, a versão digitalizadora do “aqui e agora” da tradição analógica. Desse modo, as redes globais de telecomunicações e suas diversas aparelhagens de conexão oferecem acesso às novíssimas “experiências virtuais”, dispensando a organicidade do corpo, a materialidade do espaço e a linearidade do tempo. (p. 58).

As experiências virtuais vividas pelas personagens, por meio dos aparatos tecnológicos, possibilitam a elas a vivência da ubiqüidade, uma vez que as idéias de presença e ausência intercambiam-se, sobrepondo-se num mesmo espaço.

Quebra-se a linearidade de tempo e espaço e a personagem experimenta a sensação de estar em dois lugares distintos em tempo real. Sua corporeidade torna-se múltipla, fragmentada, desdobrada aqui e lá, o que contorna-sequentemente interfere na construção de sua identidade.

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informação. Essas novas tecnologias trouxeram a problematização do virtual. Segundo Lévy (1996):

As coisas só têm limites claros no real. A virtualização, passagem à problemática, deslocamento do ser para a questão, é algo que necessariamente põe em causa a identidade clássica, pensamento apoiado em definições, determinações, exclusões, inclusões e terceiros excluídos. Por isso a virtualização é sempre heterogênese devir outro, processo de acolhimento da alteridade. Convém evidentemente não confundir a heterogênese com seu contrário próximo e ameaçador, sua inimiga, a alienação, que eu caracterizaria como reificação, redução à coisa, ao “real”. (p. 25).

É esse conceito de deslocamento e problematização da identidade clássica por meio da virtualização das máquinas, que aproximamos do estudo dialógico da personagem. Se para Bakhtin é no diálogo tenso entre o “eu” e o “outro” que se constrói a identidade, agora, nesse contracampo, há também a metamorfose da corporeidade do sujeito ao incorporar no seu campo de ação os aparatos tecnológicos.

Não é possível pensarmos a subjetividade sem a imagem corporal, logo, não é possível entendermos a construção da identidade da personagem sem considerarmos as mutações de sua corporeidade em virtude do fenômeno da virtualidade. Segundo Santaella (2004):

(...) sob o efeito de uma crescente complexidade tecnológica, o corpo humano estava passando, tanto quanto as sociedades humanas, por indisfarçáveis transformações que, no tocante ao corpo estavam fadadas a afetar todas as suas dimensões, do físico-fisiológico ao sensório, afetivo e mental. (...) Uma crise do sujeito, do eu, da subjetividade que coloca em causa até mesmo ou, antes de tudo, nossa corporalidade e corporeidade. O corpo tornou-se, assim, um nó de múltiplos investimentos e inquietações. (p. 12-13)

Lévy (1996), em seu livro “O que é o virtual”, faz um importante estudo acerca dos efeitos das tecnologias de comunicação no mundo contemporâneo. Explica-nos sobre o conceito de virtualização e suas conseqüências nos corpos, na sensibilidade e na inteligência das pessoas.

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de ser. A virtualização mediada pelas novas tecnologias de comunicação não deve ser compreendida como oposição ao real, mas ao atual e por ser uma maneira apenas distinta do real, ela pode alterar nosso modo de ser, pensar e agir.

Segundo Lévy, o telefone, bem como outros sistemas de telecomunicações, são sistemas ditos de realidade virtual que nos permite experimentar, “uma integração dinâmica de diferentes modalidades perceptivas. Podemos quase reviver a experiência sensorial completa de outra pessoa.”. (LÉVY, 2003, p. 28).

Sibilia (2002) como Lévy, acredita que a virtualização dos meios de comunicação permite novas experiências, potencializando e multiplicando a capacidade biológica do homem:

As tecnologias da virtualidade (...) costumam ser louvadas por sua capacidade de potencializar e multiplicar as possibilidades humanas: as novas soluções oferecidas pela teleinformática permitem ultrapassar os limites espaciais, anulando as distâncias geográficas sem a necessidade de se deslocar o corpo, inaugurando fenômenos tipicamente contemporâneos como a “telepresença” ou a “presença virtual”. (p. 56).

Outro ponto a ser considerado quando pensamos em tecnologias é qual o impacto que exercem sobre a voz. De modo geral, é claro que as mídias eletrônicas fixam a voz através do processo de gravação, retirando dela sua tactilidade, a sua presença enquanto performance.

Mas, para Paul Zumthor (1915 – 1995), se por um lado a tecnologia dos medias transforma a voz em algo abstrato, por outro, promove uma “ressurgência das energias vocais da humanidade, energias que foram reprimidas durante séculos no discurso social das sociedades ocidentais pelo curso hegemônico da escrita” (ZUMTHOR, 2007, p.15).

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Segundo o medievalista, escritor e estudioso Paul Zumthor, a voz é objeto central da cultura humana e da própria Literatura, pois possui qualidades simbólicas e materiais que a definem em termos de tom, timbre alcance, altura e registro o que a torna palpável, isto é, com presença e corpo:

(...) dentro da existência de uma sociedade humana, a voz é verdadeiramente um objeto central, um poder, representa um conjunto de valores que não são comparáveis verdadeiramente a nenhum outro, valores fundadores de uma cultura, criadores de inumeráveis formas de arte. (...) Creio ser razoável dizer que a voz é uma coisa, isto é, que ela possui (...) qualidades materiais não

menos significantes, e que se definem em termos de tom, timbre, alcance, altura, registro. (ZUMTHOR, 2005, p. 61, 62)

Ao ser questionado sobre a relação entre voz e linguagem, Zumthor afirma:

A língua é mediatizada, levada pela voz. Mas a voz ultrapassa a língua; é mais ampla do que ela, mais rica. É evidente, qualquer um constata em sua prática pessoal que, em alcance de registro, em envergadura sonora, a voz ultrapassa em muito a gama extremamente estreita dos efeitos gráficos que a língua utiliza. Assim, a voz, utilizando a linguagem para dizer alguma coisa, se diz a si própria, se coloca como uma presença. (2005, p. 63. grifo nosso)

É esse conceito de voz enquanto corpo presente que podemos aproximar das reflexões de Lévy acerca da relação entre a voz e os dispositivos de telepresença. A virtualização proporciona-nos quebrar as barreiras do tempo e espaço dos nossos corpos biológicos, multiplicando-os e expandindo-os, por meio da simulação, para diversos lugares ao mesmo tempo.

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3- Corpos ciborguescos: hibridização entre homem e máquina

Integre-se, pois, à corrente. Pugle-se. Ligue-se. A uma tomada. Ou a uma máquina. Ou a outro humano. Ou a um ciborgue. Torne-se um:

devir-ciborgue. Eletrifique-se. O humano se dissolve como unidade. É só eletricidade. Ta ligado? (Tadeu da Silva)

“A subjetividade humana é, hoje mais do que nunca, uma construção em ruínas”, (SILVA, 2000, p. 11). Pensarmos a subjetividade humana na contemporaneidade é desenvolver uma reflexão que nos faz questionar radicalmente sobre a essência do homem.

É no confronto das imagens de clones, ciborgues e outros seres tecnonaturais que a nossa subjetividade passou a ser questionada diante de máquinas que nos completam ou até mesmo nos substituem.

Tadeu da Silva, em seu livro intitulado Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano (2000), apresenta-nos discussões acerca da temática

homem e máquina, abrindo um leque de questões controversas sobre o chamado pós-humano:

Pois uma das mais importantes questões de nosso tempo é justamente: onde termina o humano e onde começa a máquina? Ou, dada a ubiqüidade das máquinas, a ordem não seria a inversa?: onde termina a máquina e onde começa o humano? Ou ainda, dada a geral promiscuidade entre o humano e a máquina, não seria o caso de se considerar ambas as perguntas simplesmente sem sentido? Mais do que a metáfora, é a realidade do ciborgue, sua inegável presença em nosso meio (“nosso”?), que põe em xeque a ontologia do humano. Ironicamente, a existência do ciborgue não nos intima a perguntar sobre a natureza das máquinas, mas, muito perigosamente, sobre a natureza do humano: quem somos nós? (p. 13).

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Variadas são as intervenções que as máquinas são capazes de fazer em nosso organismo e que problematizam a subjetividade humana. É na hibridização entre o orgânico e o maquínico que surge a imagem do ciborgue. Segundo Silva

(2000):

Implantes, transplantes, enxertos, próteses. Seres portadores de órgãos “artificiais”. Seres geneticamente modificados. Anabolizantes, vacinas, psicofármacos. Estados “artificialmente” induzidos. Sentidos farmacologicamente intensificados: a percepção, a imaginação, a tensão. Superatletas. Supermodelos. Superguerreiros. Clones. Seres “artificiais” que superam, localizada e parcialmente (por enquanto), as limitadas qualidades e as evidentes fragilidades dos humanos. Máquinas de visão melhorada, de reações mais ágeis, de coordenação mais precisa. (...) Realidades virtuais. Clonagens que embaralham as distinções entre reprodução natural e reprodução artificial. Bits e bytes que circulam, indistintamente, entre corpos humanos e corpos elétricos, tornando-os igualmente indistinttornando-os: corptornando-os humano-elétrictornando-os. (p. 14-15).

Surgem assim criaturas tecno-humanas que simulam o humano, agem e se comportam como tal, o que, consequentemente, nos faz indagar sobre a própria identidade pessoal, cuja singularidade fica ameaçada diante da imagem do ciborgue.

Contudo, é importante ressaltar que a idéia de ciborgue, apresentada pela

maioria dos filmes, traz-nos uma idéia equivocada desses seres, uma vez que, enfatizam a dicotomia entre homem e máquina. Segundo Santaella (2003), o imaginário fílmico promoveu:

Ciborgs têm aparecido repetidamente nos filmes de ficção científica dos últimos trinta anos. A maior parte desses filmes concebe o

ciborg como composto de partes orgânicas e próteses maquínicas.

Uma prótese é a parte ciber do corpo. Ela é sempre uma parte, um

suplemento, uma parte artificial que suplementa alguma deficiência ou fragilidade do orgânico ou que aumenta o poder potencial do corpo. (...) No geral, a maior parte desses filmes, apesar da aparência futurista e progressista, longe de promover uma concepção dialética da interface entre o ser humano e a máquina, revela sua submissão a arraigadas oposições entre homem e máquina que fortalecem os velhos dualismos entre corpo e mente. (p. 187-189).

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nossos corpos, remodelando-os por meio de medicamentos farmacêuticos e máquinas que potencializam nossas capacidades orgânicas.

De acordo com Silva (2000), o ciborgue, da feminista socialista e historiadora

da biologia Donna Haraway, é um ser híbrido em que num mesmo corpo se misturam o mecânico e orgânico, o simulacro e o original:

O mundo de Haraway é um mundo de redes entrelaçadas – redes que são em parte humanas, em parte máquinas; complexos híbridos de carne e metal que jogam conceitos como “natural” e “artificial” para a lata do lixo. Essas redes híbridas são os ciborgues e eles não se limitam a estar à nossa volta – eles nos incorporam. Uma linha automatizada de produção em uma fábrica, uma rede de computadores em um escritório, os dançarinos em um clube, luzes, sistemas de som – todos são construções ciborguianas de pessoas e máquinas. (p. 26).

É essa imagem do ser ciborgue, própria dos anos 90, que já está

prenunciada, de forma precursora, nos contos de Rubem Fonseca selecionados, nos quais é possível perceber uma gradação na relação de alteridade personagem-máquina, até a hibridização plena, materializada no próprio corpo-ciborgue da

personagem, como ocorre em “O quarto selo (Fragmento)”.

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CAPÍTULO II

A personagem e seu olhar maquínico: as lentes do “Zoom”.

Qualquer tentativa de estudo acerca da personagem esbarra necessariamente na questão do narrador. É ele que nos permite visualizar a personagem. No caso do conto “Zoom” (2004), temos uma narrativa em primeira

pessoa. É a personagem quem narra seus pensamentos e suas lembranças.

A condução da narrativa por um narrador em primeira pessoa implica estarmos sob a perspectiva da personagem o que lhe confere a possibilidade de conhecer-se, presentificando-a no discurso em busca de sua identidade.

A personagem do conto “Zoom” constrói sua identidade por meio do relato

de lembranças fragmentadas de seus relacionamentos amorosos inconstantes. Conhece Regina (a surda), relaciona-se com ela, mas sente uma paixão arrebatadora por Beatriz:

Frio, beijo novamente, no pescoço. A surda quer ouvir música. Na ponta dos dedos. Suéter marrom. Dança pela sala.

Sou surdo, enfio algodão nos ouvidos, Regina tapa minhas orelhas com força. Com a ponta dos dedos sinto a música. Sou ela. “Eu te amo.” “Eu tee adooooro.” Regina tem dificuldades com a minha camisa, afinal fico nu. Carrego Regina no colo pra cama. (...)

De repente, todo arrepiado: sem estrondo o mundo fica diferente. Beatriz atrás da grade, zoom entra pelos meus olhos. Nossas mãos se agarram. Estamos tontos, o amor chega a doer, combinamos encontro no Rio, (...). (FONSECA, 2004, p. 347-348).

É utilizando uma máquina fotográfica, que a personagem conhece Regina:

De repente a mulher coloca a máquina na minha mão. As fumaças de nossas bocas se encontram. “Aperte aqui”, mas não a per-te a-qui, austauí ou coisa parecida. Uma gringa. Aperto, pose, aperto, pose. Ridículo. Não olha nos meus olhos: fuinha, camisa de seda listrada de mangas compridas, abotoadura de homem, toupeira, calças, negras justas no corpo. (FONSECA, 2004, p. 344).

A personagem sente-se infeliz, “como estou infeliz, insônia, “acordado a

noite toda”, tenta ler um livro, mas suas lembranças o perseguem, “quero ler em

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(FONSECA, 2004, p 343). Há uma confusão nos sentimentos como também uma ruptura na ordenação do espaço-tempo.

A personagem está ao mesmo tempo numa estação de águas, num consultório médico e na sala de uma cartomante. No Palace, na piscina, no quarto 111 ou no parque e, desse modo, não segue uma linearidade de tempo e espaço:

Grande Hotel. (Ordem. Ordem) Na impossibilidade de deitar na banheira, que não existe, deito na cama. Uma cambada de velhos, velhas, crianças, todos muito comportados, falando em voz baixa, comendo com a boca fechada, deixando para palitar os dentes no quarto.

Às quatro horas estou no local do encontro. A minha namorada marcou um encontro comigo, chovia. Esperei horas e depois telefonei: “por que você não foi?”. “Chovia” Chovia, eu iria de maca. Ordem. Ordem, isso foi há muitos anos. (FONSECA, 2004, p. 345).

Cria-se, dessa forma, uma nova lógica de sentido. Palo (2007), em seu artigo sobre os contos de Rubem Fonseca, em especial uma análise do conto “Entrevista”, explica-nos: “São estes rumos temporais que promovem novas configurações do EU pela relação entre continuidade e descontinuidade, simetrias e assimetrias – elaboram uma outra lógica de sentido dado ao conto”. (p. 35).

É o próprio movimento do zoom que contamina a narração e re-configura a

identidade da personagem. O discurso do conto apresenta uma descrição minuciosa de cada detalhe dos espaços, dos objetos, das sensações vivenciadas pelo narrador-personagem, focando o mínimo e não oferecendo a imagem do todo. São trechos curtos que misturam os discursos diretos das personagens, descrições detalhadas dos espaços sem uma ordem cronológica, simulando o movimento de aproximar, o olhar do zoom:

Duchas, águas, estetoscópio. Os punhos virados escondendo a sujeira. Toalhinhas de crochê, a sala de uma cartomante. “Vejamos o seu coração.” Estetoscópio no peito. “Sou um médico (que tem várias poltronas de couro vermelho. Esses furos parecem ânus, anos?, mas eu sou um) especialista.” Pago. (...) Grande Hotel. Um copo de plástico. Dizem que a comida é boa. (FONSECA, 2004, p. 343).

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a preocupação em evidenciar o “olhar”. Um olhar que é estimulado por um narrador dramatizado1 (a personagem) que não conta a história ao leitor, mas a mostra, por meio de um discurso feito acontecimento no aqui e agora da relação entre o escrito e o lido.

É o olhar da personagem que se torna maquínico como se fosse a lente de uma câmera que captura as imagens e as aproxima por meio do relato. A personagem tem sua função orgânica da visão expandida e potencializada pelo uso da máquina. Agora ela tem olhos de vidro:

O elevador está embaixo. Quinto. 501. Sala. Saleta. No sofá, de cabeça para a porta, Regina. Mesa, mesinha, livros, vitrola. “Melhorou?” “Naaaaão” (Na verdade um pouco.) Frio,beijo novamente, no pescoço. A surda quer ouvir música. Na ponta dos dedos. Suéter marrom. Dança pela sala. (...) 111. No lençol, no corpo, cheiro de outra pele, bafo de perfume azedo. Brinco de olho de vidro”, (FONSECA, 2004, p. 347).

Inicia-se o conto como se a personagem estivesse na cama, sem dormir e com um livro aberto em cima do peito. Já, no parágrafo seguinte, está no ônibus e simultaneamente bate à porta de um consultório médico. Tudo acontece quase que ao mesmo tempo sem uma lógica linear de tempo- espaço:

Acordado a noite toda. Livro aberto em cima do peito. (Não sou maluco). As mãos fechadas, o polegar levantado. Vigiado mais de meia hora, o livro aberto em cima do peito. Olho arregalado.

No ônibus.

Sinto logo um cheiro forte de estrume. Bato na porta. Sol forte e negras sombras. Apartamento 111. Mas isso foi antes de bater na porta. Duas camas de solteiro, duas mesinhas de cabeceira, um box, bidê. (Antes, antes, antes, vamos!, antes.) Bati na porta. Bato na porta. Vamos: bato na porta.

“Às suas ordens, às suas ordens.” MÉDICO – uma cruz vermelha. “Eu sou médico, mostre a língua.” (FONSECA, 2004, p. 343).

No excerto: “(Antes, antes, antes, vamos! Antes.) Bati na porta. Bato na porta. Vamos: bato na porta” (FONSECA, 2004, p. 343), percebemos que há uma necessidade da personagem em tentar organizar as lembranças, como se estivesse na cama, sem dormir e mergulhada em suas reminiscências. Em muitos parágrafos

1

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encontramos: “(Ordem, ordem, o progresso nada vale, mas a ordem é necessária), (Ordem. Ordem)”, (Fonseca, 2004, p. 343).

Essas recordações são descritas como imagens confusas, semelhantes ao próprio processo do nosso pensamento: fragmentado. Os períodos são curtos e, muitas vezes, compostos apenas por uma classe gramatical: substantivos, adjetivos, numerais, verbos etc.:

Duchas, águas, estetoscópio. (...) Toalhinhas de crochê, a sala de uma cartomante. (...) Pago. “Depois o senhor volta.” Escreve. (...) Feia princesa Leopoldina. Sete e trinta, novamente Saxe, cento e quarenta centímetros. (...) Grande Hotel. Um copo de plástico. (...). (FONSECA, 2004, p. 343).

A “personagem-máquina” tem a função de narrar suas lembranças como um olhar de uma câmera. Semelhante ao movimento do zoom, ela cria um discurso

alinear, focando os detalhes, pois seus olhos agora são de vidro:

Finjo que o meu olho direito é de vidro, tento fazer com que o olho olhe em cima da penteadeira uma galinha que não existe dentro de um prato nas mesmas condições (...) No 111. Aguardo nu, no espelho grande. Brinco de olho de vidro. (...) Com o olho de vidro de brinquedo acompanho o ponteiro grande, perco aposta. 21.25. (FONSECA, 2004, p. 344 – 347).

Esse olhar maquínico simplesmente ajusta as lentes que lhe permitem alcançar os vários graus de grandeza sem a mínima preocupação de orientar o leitor neste jogo com lentes e focos, espaço e tempo.

O movimento de aproximar é tão intenso que o olhar fulminante da personagem vê nos “outros” seus órgãos internos, detalhes da pele, partes do corpo como que decomposto em suas partes:

Descubro uma berruga no rosto de Regina. (...) Os velhos têm rins, fígado, artérias. Nós temos pênis, músculos, ossos, vagina, amamos o corpo. Ordem. Descubro uma berruga, uma mancha, mole, no rosto de Regina. (FONSECA, 2004, p. 347).

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por pedaços que devem ser organizados por meio da leitura, como um quebra-cabeça e, talvez assim, obter a visão do todo.

Vidal (2000), em seu livro intitulado Roteiro para um Narrador, faz uma leitura dos contos de Rubem Fonseca e nos explica acerca do questionamento da linguagem e da mudança de perspectiva do narrador. Ele identifica em alguns contos, como o “Zoom”:

Há contos como “***(Asteriscos)”, “O Quarto Selo, “Zoom”, “Corrente”, “Âmbar Gris”, “Os Inocentes”, “Correndo Atrás de Godfrey” e “Manhã de Sol” que demonstram a desarticulação entre linguagem e mundo, sofrendo por dentro o estranhamento da realidade e da palavra, como se ao ser apreendida a realidade explodisse frases, e o conto fosse a colagem dos pedacinhos. (p. 124).

A narração em primeira pessoa é como um jorrar de imagens num fluxo de consciência, que se constrói a partir de pequenos fragmentos como se fossem capturados pelo zoom de uma câmera, por meio de um ritmo contínuo e simultâneo.

Não há a mediação de um narrador relatando os fatos, eles são apresentados no aqui e agora do próprio ato narrativo como se o leitor estivesse vendo a cena ou as imagens acontecerem diante de seus olhos.

Wayne Booth (1983), no seu livro A retórica da ficção, discute as inúmeras maneiras de contar uma história, observando a complexa questão entre narrar e mostrar. Para o teórico, o modo de narração pode ser a retórica direta e autoritária com a intervenção do narrador, ou a narração impessoal (modo dramático) onde o narrador “renunciou ao privilégio de intervenção direta, retirou-se para os bastidores e deixou os personagens no palco resolvendo os seus próprios destinos”. (BOOTH, 1983, p. 25).

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É importante ressaltar que não há o desaparecimento da voz autoral, mas sim um mascarar-se constante através da voz narrativa, da personagem que narra os fatos. Segundo Booth (1983):

(...) o juízo do autor está sempre presente, é sempre evidente a quem saiba procurá-lo. Se a forma particular que assume vem prejudicar ou auxiliar é uma questão complexa, uma questão que não pode resolver-se por fáceis referências a regras abstractas. Agora que vamos começar a entrar nesta questão,é preciso não esquecer que, embora o autor possa, em certa medida, escolher os seus disfarces, não pode nunca optar por desaparecer. (p. 38).

É essa narração impessoal, em que os acontecimentos são mostrados ao leitor, diretamente, sem a intervenção do narrador, que observamos no conto “Zoom”. Essa escolha do autor pelo modo dramático de narrar busca um efeito: construir, por meio do relato, o olhar direto e minucioso do zoom.

Desse modo, o zoom consegue potencializar o olhar da personagem, seu

foco de visão, mas ao mesmo tempo impede a visão do todo, podendo distorcer as imagens. Essa capacidade busca provocar com a escrita o mesmo efeito de aproximação ou distanciamento próprio da lente da máquina fotográfica.

A sintaxe narrativa ganha o dinamismo do olhar do narrador, mostrando ora um foco que se aproxima, permitindo visualizar os detalhes: “Descubro uma berruga, uma mancha, mole, no rosto de Regina” (FONSECA, 2004, p. 347), ora se distância, oferecendo uma visão panorâmica: “ No salão de jantar. As pessoas, paletós, gravatas, anéis, pulseiras, sussurram, se entreolham”, (FONSECA, 2004, p. 344).

É a tensão estabelecida na relação entre o “eu” (narrador personagem) e a “câmera-zoom”. A alteridade tecnológica potencializa o olhar da personagem, focalizando os detalhes, porém, reduz a visão do todo. Estabelece-se, assim, na interface com a personagem-máquina, um contracampo entre diferentes forças: ampliação da capacidade de olhar do zoom e destruição de referências na

impossibilidade da visão geral.

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vale, mas a ordem é necessária.)”. (FONSECA, 2004, p. 343). A narração dos fatos é apresentada como imagens simultâneas e distorcidas, o que causa tanto na personagem como no leitor a necessidade de organização, de linearidade.

Buscando uma compreensão mais ampla, o vocábulo zoom nos remete ao

verbo no inglês to zoom que significa afastamento ou aproximação de uma imagem

em cinema e televisão de maneira repentina, mas, também, tem o sentido de zumbir, zunir. Quanto ao significado da palavra zumbir, está associado a ruídos surdos perceptíveis pelo ouvido.

Desse modo, além da visualidade criada pelo ritmo vertiginoso da narrativa, o texto também explora as outras percepções sensoriais, como, por exemplo, a auditiva. A personagem Regina é surda e o narrador-personagem, além do olho de vidro, lê sons: “Ela lê lábios. Eu leio sons. (...) Tento explicar para ela o que é o silêncio, o som entra pela ponta dos dedos. (...)” (FONSECA, 2004, p. 345-346).

Outros exemplos de sonoridade estão nas inúmeras onomatopéias e na fala de Regina em que a palavra busca representar sua gagueira: “De Milano?” “Siimmmilaaano”, “Minnnhatiiiiiia”, Chap, Chap, Chap, Vupt, Zandvoort-zuum!, Rooarr! etc.

Há um híbrido das percepções sensoriais. Ao descrever Beatriz, o narrador fixa uma imagem, mas, ao mesmo tempo nos sugere sonoridade:

Surge Beatriz. Música. Estou preso ao ritmo do seu corpo. Uma toalha vermelha. Um arrepio de frio. Surge Beatriz, seu olhar atravessa a piscina, pássaro, raio laser: é longe, nem o branco nem o preto do olho: ela me olha com o rosto todo, nariz, testa, queixo, órbitas. Uma coisa fulminante entre nós dois. (FONSECA, 2004, p. 346-347).

Fica evidente, assim, que a narrativa do conto e as personagens, buscam diluir as fronteiras entre as diferentes linguagens das mídias de comunicação aproximando a escrita dos recursos visuais e sonoros.

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(...) o cinema na literatura de Rubem Fonseca está intimamente associado à sua prática narrativa e abre possibilidades para que se desenvolva toda uma reflexão sobre o ato de narrar. Para representar um mundo onde tudo se tornou visível, tudo se resume a pura exterioridade, o autor busca a dimensão da simultaneidade própria da imagem visual, pois esta parece mais compatível com o sentimento do tempo na vida contemporânea do que a sucessividade do discurso verbal. Opta, então, por uma sintaxe narrativa que sugere a platitude da imagem, como se quisesse apenas oferecer ao leitor uma seqüência de quadros, que pode ser contemplada de diferentes ângulos. (FIGUEIREDO, 2003, p. 147).

Em “Zoom” a narração dos fatos, as frases não se sucedem obedecendo a uma ordem conceitual, elas se submetem às leis da imagem e de um ritmo. É uma estrutura multilinear que abre várias possibilidades de leitura e de organização dos episódios. É nessa direção que Murray (2003) analisa o conto, “O jardim dos caminhos que se bifurcam”, de Borges e o considera uma antecipação dos prazeres do mundo multivariável que se intensificou a partir do surgimento do computador e de seu ambiente digital. Nessa narrativa, a justaposição de duas experiências diferentes de uma mesma batalha vitoriosa, instiga o leitor a refletir sobre a simultaneidade da própria vida. Ainda, segundo a autora, essas narrativas de estrutura multilinear podem ser representadas pela metáfora do caleidoscópio:

Essa estrutura caleidoscópica traz inúmeras possibilidades para a narrativa. Uma das mais atraentes é a capacidade de apresentar ações simultâneas de múltiplas formas. Em um romance, ações simultâneas são apresentadas sequencialmente. Quando somos levados a acampamentos opostos num campo de batalha ou para o interior de mentes diversas ao redor de uma mesa de jantar, os eventos simultâneos são frequentemente descritos através de sobreposições – e não de segmentos de tempo completamente paralelos; a ação da história continua movendo-se para frente enquanto nosso ponto de vista se altera. (MURRAY, 2003, p. 155).

O mesmo ocorre no conto “Zoom”. É a alteridade maquínica modificando o

olhar do narrador em seu funcionamento orgânico e escritural. Sua visão agora é simultânea, o que consequentemente atinge o plano da narrativa, construindo uma estrutura caleidoscópica. Simultaneamente são narrados fatos presentes alternados com lembranças passadas:

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comendo com a boca fechada, deixando para palitar os dentes no quarto. Às quatro horas estou no local do encontro. A minha namorada marcou um encontro comigo, chovia. Esperei horas e depois telefonei: “por que você não foi?”. “Chovia.” Chovia, eu iria de maca. Ordem. Ordem, isso foi há muitos anos. São quatro e trinta, hidro-tera-peutas-pistas-picos.” (FONSECA, 2004, p. 345).

Identificamos assim uma justaposição de imagens, em que o enredo não nos apresenta uma seqüência linear, contrapondo-se à idéia de seqüências lógicas.

A personagem narra suas lembranças, por meio de um discurso que modifica a voz do autor e a do narrador, limitando-se apenas às informações que as personagens falam ou fazem como num roteiro fílmico. O texto faz-se por uma sucessão de cenas e a distância entre a história e o leitor é mínima.

O mesmo ocorre com a identidade da personagem, a qual se caracteriza por incertezas e confluência de sentimentos:

Beatriz atrás da grade, zoom entre pelos meus olhos. Nossas mãos se agarram. Estamos tontos, o amor chega a doer, combinamos encontro no Rio, ela embarca hoje, sigo amanhã, e viveremos felizes para sempre. Na copa, tomo sopa com a surda. Amanhã embarco.” (FONSECA, 2004. p. 348).

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CAPÍTULO III

Estereofonias Vocais: As diferentes vozes da personagem Gravador

É evidente, qualquer um constata em sua prática pessoal que, em alcance de registro, em envergadura sonora, a voz ultrapassa em muito a gama extremamente estreita dos efeitos gráficos que a língua utiliza. Assim, a voz, utilizando a linguagem para dizer alguma coisa, se diz a si própria, se coloca como uma presença. (Paul Zumthor)

O conto “O Gravador” inicia-se a partir de um diálogo, uma conversa

telefônica entre a personagem Jorge Vale, que solicita ao seu interlocutor o conserto de um dos seus gravadores.

Após a palavra, stop, começa novamente um outro diálogo. Agora, Jorge

Vale simula ser um pesquisador do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e explica à senhora, com quem conversa, que gostaria de saber qual é a opinião dela a respeito da eutanásia.

A partir dessa conversa telefônica, Jorge mantém uma relação mediada pelo telefone com essa senhora, que, a princípio, identifica-se por Alice, uma mulher bem casada e feliz. Porém, depois de alguns encontros virtuais com Jorge, afirma que seu nome verdadeiro é Alda e confessa ser infeliz no casamento. Percebe-se apaixonada por ele e declara seu amor.

Alice, encontrando-se enamorada pela imagem de homem sensível e amoroso que Jorge transmitiu pelo telefone, decide largar o casamento infeliz e marca um encontro com seu novo amor, Jorge.

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por duas horas, mas não encontra Jorge esperando-a. Entretanto, a única pessoa que vê é um paralítico numa cadeira de rodas.

Tanto Alda como Jorge simulam ser pessoas que realmente não são. Alda mente seu nome, utiliza o pseudônimo Alice, e finge ser uma mulher casada e muito feliz na vida conjugal. Procura esconder sua aparência, sua idade, com excessos de cremes e maquiagem:

Eu estava com o rosto todo cheio de creme quando o telefone tocou. (...) Nunca demorei tanto a me vestir! E a me pintar também. Fiz uma pintura moderna no meu rosto, como dessas mocinhas que encontro em Copacabana, quando vou fazer compras” (FONSECA, 2004, p. 103 – 115)

Jorge passa por um pesquisador de opinião do Instituto Brasileiro de Opinião, enfatizando características opostas a alguém que vive preso a uma cadeira de rodas:

“O que o senhor faz?” “Minha profissão?” “É”

“Sou pesquisador de opinião pública. (...) “Eu gosto de ler.”

“Isso também gosto. Mas sou um homem de ação. Não posso ficar sentado muito tempo.

(...)

“Mas gosto de coisas que me ocupem, que me dêem trabalho físico, o que a leitura evidentemente não dá”. (FONSECA, 2004, p. 106).

O desdobramento das vozes virtuais da personagem Jorge está presente no momento em que Jorge simula, para dona de casa, ser um pesquisador de opinião pública e utiliza em seu discurso o discurso de outrem, no caso, o do entrevistador:

“Boa tarde. Aqui é do Instituto Brasileiro de Opinião”. “O quê?”

“A senhora quer fazer o favor de chamar a dona da casa.” “Aqui é do instituto Brasileiro de Opinião Pública.”

“Sim senhor.”

“Nós estamos fazendo uma pesquisa de opinião para saber o que pensa o povo brasileiro da eutanásia.” (FONSECA, 2004, p. 100).

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virtual, apropria-se da linguagem do “outro” e a toma sua, metamorfoseando-se num corpo diferente.

A possibilidade de simulação de ambos se dá por meio da mediação de uma máquina - o telefone - que permite às personagens criarem corpos sonoros e imagéticos virtuais. Lévy acredita que este aparelho de comunicação funciona como um dispositivo de telepresença, de modo que não apenas representa a voz, mas a transporta para espaços diferentes. Essa voz ganha uma presença, um corpo sonoro desdobrado aqui e lá ao mesmo tempo.

Através da voz de Jorge pelo telefone, Alda acredita que ele é um homem jovem, sensível, educado e romântico:

“O senhor deve ser muito moço. A sua voz é de um homem muito moço. Cheio de vitalidade. (...) Jorge me telefonou. Não creio mais que seja alguém mandado pelo meu marido. Sua voz é tão honesta, séria.

Tem trinta anos. Nessa idade o homem não é mais romântico, mas ele parece ser: sempre tão respeitador, me chamando de senhora o tempo todo. Vive sozinho e faz sua própria comida; pelo menos é o ele diz e não creio que seja mentira. (FONSECA, 2004, p. 107 – 108).

A personagem Jorge, ao utilizar o telefone, um dispositivo de telepresença, tem sua voz como corpo sonoro desdobrado, presente em sua casa e na casa de Alda, ou seja, a voz multiplica-se em corpos virtuais. Esse desdobramento da personagem indica que ela está em dois espaços simultaneamente, num constante movimento de atual e virtual que só é possível por meio da mediação oferecida pelas máquinas.

Além dessa voz transmitida pelo telefone, que permite à personagem Jorge expandir-se em outros corpos, toda conversa ao telefone, mesmo com sua mãe, é gravada, pois um aparelho gravador está conectado ao fio telefônico.

Depois de gravadas, Jorge reproduz as conversas para analisar meticulosamente as falas de Alda ou de sua mãe:

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