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5 Vagão geminado: os corpos históricos e os corpos cênicos

5.1 Os corpos históricos

Território tanto biológico quanto simbólico, processador de virtualidades infindáveis, campo de forças que não cessa de inquietar e confortar, o corpo talvez seja o mais belo traço da memória da vida. Verdadeiro arquivo vivo, inesgotável fonte de desassossego e de prazeres, o corpo de um indivíduo pode revelar diversos traços de sua subjetividade e de sua fisiologia mas, ao mesmo tempo, escondê-los. Pesquisar seus segredos é perceber o quanto é vão separar a obra da natureza daquela realizada pelos homens: na verdade, um corpo é sempre “biocultural”, tanto em seu nível genético, quanto em sua expressão oral e gestual.

(SANT’ANNA, 2001,p. 3)

Existem várias formas de se abordar o corpo humano: da medicina à arte, passando pela antropologia, filosofia, estética. Historicamente, as concepções de corpo sofreram grandes transformações, principalmente após a instalação do capitalismo, quando o corpo passou a ser encarado a partir de uma visão utilitarista, que privilegia as noções de economia, aproveitamento e rendimento. Nessa sociedade, o corpo é sinônimo de mercadoria, de força de trabalho.

Não somente no século XIX, mas principalmente nesta época, o corpo expressivo, artístico, apresentado pelos funâmbulos e acrobatas, era temido pelas autoridades, pois saía da função de utilidade e economia e deflagrava seus “excessos”. Imperava no pensamento europeu os princípios

da Ginástica Científica71, que insistia na busca desse corpo adestrado pelo caráter científico, sendo-lhe negado outra forma de existência que não a ditada pela mecânica do movimento. “Afirma-se, por exemplo, que enquanto na Ginástica se aprendia a adquirir forças, no circo, os artistas faziam o uso desmedido de suas forças e gastavam inutilmente suas energias” (SOARES, 1998, p. 26 – grifo meu).

No intuito de promover e regenerar a saúde de uma sociedade marcada pelo alto índice de mortalidade e de doenças, a Ginástica, a partir da revelação de seu caráter científico, torna-se um grande instrumento para o desenvolvimento “do caráter, da moral e da virtude” (SOARES, 1998, p. 21), além de treinar o gesto de forma harmônica e econômica.

De certa forma, o teatro foi “contaminado” por essa lógica utilitarista do século XIX, cabendo-lhe o papel de “escola viva de costumes”, ditando propostas que o remeteriam a idéia de “espelho da sociedade”.

O mesmo não aconteceria com o circo, ao propor aos espectadores uma ruptura com os comportamentos civilizados, estimulando

[...] o riso, a gritaria, a contaminação dos assistentes pelo entusiasmo do espetáculo[...]. Universo glorificador da ilusão e do simulacro, o circo não assume nenhuma função social, nem lhe é atribuída qualquer missão civilizadora. Ninguém lhe assina ‘um papel, uma função, um sentido’, restando-lhe a licença de ‘não ser nada mais que um jogo insensato’. Contrastando com um mundo utilitário e prático em que tudo possui ‘um valor de uso ou de troca’, a entrada do palhaço abre, ‘na plenitude sufocante das significações aceitas’, uma brecha através da qual poderá ‘correr um vento de inquietude e de vida’. Desde sua chegada e em cada momento do espetáculo, os

71 A Ginástica Científica “expressou, na primeira metade do século XIX, a visão da mecânica

predominante, então nos meios científicos. O corpo deveria ser moldado, inclusive, pelo uso de tipos especiais de aparelhos que se destinavam a corrigir e melhorar posturas consideradas inadequadas do ponto de vista médico, ortopédico e estético. [...] Já na segunda metade do século XIX, predomina nos estudos do corpo o chamado modelo energético proposto pela termodinâmica. [...] O que se destaca, então, é o adestramento do corpo” (SOARES, 1998, p.29).

circenses tinham, como únicas propostas, cultuar o riso, o sonho, a fluidez e a mutação constante de homens e animais, numa criatividade intensa e cativante. Numa ininterrupta pulsação de desejos e de criações surpreendentes, começava o espetáculo, com a simples intenção do gozo do ‘respeitável público’. Ali, este poderia abandonar ou afrouxar os comportamentos exigidos de senhoras e senhores educadamente civilizados’ (DUARTE, 1995, p. 184-185).

Resistentes a se tornarem corpos “úteis” e “civilizados”, os artistas cênicos utilizam seus instrumentos de expressividade artística como veículo/suporte e são, ao mesmo tempo, criadores e a própria obra de criação, marcando o diferencial entre o corpo “em função artística” e o corpo em conduta para fazer algo “outro” que não a arte.

Esse “corpo artístico” assume posturas diferenciadas de acordo com o contexto proposto. Para Carrera (2000), encontra-se “no papel do ator a função de veículo dos acontecimentos cênicos” (CARRERA, 2000, p. 42) sendo o ator “aquele que é responsável por concretizar o desejo de vinculação entre os indivíduos comprometidos no espetáculo, na cerimônia” (CARRERA, 2000, p. 42). No contexto circense, ocorre a transgressão do natural e a realização do quase “impossível” através da “adoção do corpo como elemento fundamental de um espetáculo” (BOLOGNESI, 2003, p. 190), assumindo-se o corpo como a “matriz” do circo e sua ação corporal o sentido do espetáculo circense.

Para Bolognesi (2003), a diferença entre o corpo do circense e o corpo do ator está na relação de que os artistas circenses “não estão ali ‘representando papéis’, tal como ocorre nos palcos, nos espetáculos teatrais” (BOLOGNESI, 2003, p.192), embora considere que “admitir as especificidades do circo não implica separá-lo do teatro, a ponto de

colocar ambas as especialidades em terrenos díspares” (BOLOGNESI, 2003, p.185).

Encontro aí, uma aproximação do corpo do circense com o corpo performático, no momento em que

[...] no espetáculo circense o desempenho artístico não se dá por metáforas ou símbolos. Os artistas não estão ali ‘representando papéis’, tal como ocorre nos palcos, nos espetáculos teatrais. O sentido, portanto, é oriundo do corpo e é encontrado na performance em si mesma, no exclusivo tempo e momento de sua duração. Ele não extrapola esse limite. O artista não representa: ele vive seu próprio

tempo, com seu ritmo e pulsação próprios; ou melhor, ele ‘representa’

porque está inserido em um espetáculo, mas é uma representação de si mesmo ao demonstrar e vivenciar, em público, as suas habilidades. Representação e vida fundem-se em um mesmo ato. No circo, os corpos dos atletas e acrobatas não simbolizam, não são figurativos, não são presença na ausência. Eles são aquilo que fazem. Como espetáculo, representam aquilo que são (BOLOGNESI, 2003, p. 192, grifos meus).

Enfim, a adoção do corpo performático como elemento fundamental do espetáculo não é uma afirmativa pertencente somente ao artista circense. O que se sente, principalmente com o “aparecimento” da arte da performance72, nos anos de 1960, é que a

[...] performance associa, sem preconceber idéias, artes visuais, teatro, dança, música, vídeo, poesia e cinema. É apresentada não em teatros, mas em museus ou galerias de arte. [...] O performer não tem que ser um ator desempenhando um papel, mas sucessivamente recitante, pintor, dançarino e, em razão da insistência sobre sua presença física, um autobiógrafo cênico que possui uma relação direta com os objetos e com a situação de enunciação (PAVIS, 1999, p. 284).

Assim o performer aqui se assemelha ao artista circense, a partir do momento em que o considero, assim como Pavis (1999), como aquele que “realiza uma encenação de seu próprio eu” (PAVIS, 1999, p. 285),

diferenciando-o do ator que “ faz o papel de outro” (PAVIS, 1999, p. 285). No entanto, não custa lembrar que, nos tempos atuais, esses limites são cada vez mais tênues, mais flexibilizados.

Sem a intenção de traçar o histórico dos movimentos de vanguarda, torna-se importante a consideração que Cohen (2004) faz a respeito dos conceitos das artes plásticas na cena contemporânea na qual “o artista vai se preocupar com a utilização de seu corpo instrumento, a sua interação com a relação espaço-tempo e a sua ligação com o público” (COHEN, 2004, p. 44), independentemente de uma personagem ou de um papel.

Embora os limites entre as formas teatrais contemporâneas e as artes circenses se tornem cada vez mais difusos, no decorrer desta dissertação traçarei os possíveis paralelos entre o corpo em movimento e o corpo “em função artística” no circo e no teatro. Tratarei a seguir, de termos e conceitos referentes ao treinamento que compõem o trabalho corporal de um artista cênico e que são fundamentais para a preservação de um corpo saudável e disponível para a aprendizagem.

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