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CAPÍTULO 1 – Quadro teórico, delimitações conceituais, corpus de

1.3 Corpus de análise e procedimentos metodológicos

A questão da definição do objeto de pesquisa em Análise do discurso como problema de constituição e fechamento do corpus remonta à própria emergência desse campo de saber. De certa maneira, pode-se dizer que esta questão e os problemas metodológicos e teóricos que a ela se ligam coincidem com a história do desenvolvimento da disciplina. Já na proposta de uma análise automática do discurso Pêcheux (1969) faz menção aos problemas de definição do corpus quando critica os métodos de análise de conteúdo e aqueles centrados no texto. O autor aponta para o risco de o objeto de análise permanecer um objeto de

desejo do analista se o mesmo não for definido conceitualmente como elemento de um processo do qual é preciso construir a estrutura. Trata-se então de considerar o processo de produção como um conjunto de mecanismos formais que produzem um dado discurso em dadas condições de produção. A partir dessa definição conceitual o autor afirma a impossibilidade de analisar um discurso como texto (entendido como sequência linguística fechada em si mesma) e indica a necessidade de referi- lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido de condições de produção. Assim, ao propor essas orientações conceituais, definindo como objeto de estudo o processo discursivo, Pêcheux também indica que a definição do corpus levaria igualmente em conta as condições de produção.

Em Fuchs-Pêcheux (1975) a questão da construção do corpus é considerada em função das condições de produção dominantes, mas há nesse texto uma abordagem crítica dos problemas metodológicos concernentes ao corpus e a proposta de duas formas de tratamento, a experimental e a de arquivos; essa perspectiva crítica é marcada nos termos construção e condições de fechamento de um corpus. Nessa perspectiva, os autores tornam mais precisas certas noções conceituais como condições de produção e discurso, fazem ainda uma série de distinções terminológicas e respondem a críticas feitas a problemas metodológicos, como a seleção de frases contendo uma palavra-pivô. Além disso, os autores explicitam a necessidade de considerar a diferença de responsabilidade teórica que implicam a construção do corpus e o procedimento de análise da AAD, apontando o risco de que, sem essa distinção, os resultados da análise possam ser tomados como reflexo direto do conteúdo organizado em função das responsabilidades tomadas no nível extra-discursivo (diferentes hipóteses sociológicas, históricas, etc.) que orientam a organização do corpus.

Já em Courtine (2009) o tratamento da questão do corpus em AD é ampliado e abrange tanto aspectos teóricos e metodológicos quanto epistemológicos. O autor faz um levantamento sistemático das formas dominantes de constituição do corpus que caracterizaram os trabalhos em AD até aquele momento. A partir disso acrescenta a noção de forma-corpus para a análise do discurso político e a necessidade de redefinir conceitos como condições de produção e formação discursiva, apresentando ainda alguns elementos determinantes para a construção e categorização do corpus discursivo, bem como

procedimentos de tratamento do corpus. Se Courtine atribui tal importância ao modo e aos critérios de constituição do corpus, é porque, conforme argumenta,

além de um simples dispositivo material, uma forma de corpus determinada em AD política constitui uma representação das contradições entre posições ideológicas de classe, sob a espécie de uma “teoria” das relações entre conjuntos de discursos (poder-se-ia aqui falar também em “formação discursiva”) produzidos a partir de tais posições (id., p. 62).

A partir da categorização empreendida por Courtine (id., p. 59) para uma definição do corpus discursivo, podemos definir a forma do corpus de nossa pesquisa segundo o critério de corpus de dimensão complexa. Isso significa que o corpus não é definido por oposição de restrições homogeneizantes, mas que combina diversas dimensões de definição. Quanto ao aspecto de definição temporal da forma-corpus, assinalamos que o fato de partirmos da observação do discurso da luta contra a pobreza tal como é enunciado pelo governo federal brasileiro no ano de 2011 em sua correlação com enunciados midiáticos, a princípio demarca um plano sincrônico de definição. No entanto, o discurso da luta contra a pobreza, como apontamos, já teria emergido sistematicamente no Brasil nos anos de 1990, logo seu estudo implica observar também um plano diacrônico desse discurso. Principalmente, somos atentos aos seguintes apontamentos de Courtine (2009, p. 60):

1) Se afirmamos que todo discurso produzido se insere em um processo discursivo que o determina, sob a forma dos elementos pré-construídos – isto é, produzidos em outros discursos anteriores a ele e independentes dele –, que se reproduzem por ele sob a determinação de seu interdiscurso, pode-se predizer que a constituição de um corpus discursivo, em referência a um plano sincrônico de definição das CP do discurso, produzirá um esquecimento do interdiscurso, sob a modalidade do apagamento do caráter pré-construído de certos elementos (sintagmas nominalizados, por exemplo) que todo discurso engloba. Esquecimento de que sempre-já há discurso...

2) Em consequência, pode-se prever, em tal caso, um risco de apagamento das condições propriamente históricas de produção do discurso em benefício da definição de CP que se confunde com as características de uma situação de comunicação [...].

Uma vez que definimos como objetivo de investigação contemplarmos os aspectos de constituição, formulação e circulação (ORLANDI, 2001) do discurso

político da luta contra pobreza no Brasil, valer-nos-emos principalmente do conceito de condições de produção heterogêneas para a identificar em seu processo discursivo os efeitos da contradição que o constitui, as filiações ideológicas que as formulações desse discurso apresentam e como o funcionamento discursivo dessas formulações ao mesmo tempo dissimula a contradição e produz um apagamento das distintas e antagônicas posições. Em outras palavras, em nossa análise pretendemos considerar três instâncias discursivas do discurso político da luta contra pobreza no Brasil: as condições de formação sob a determinação do interdiscurso, as condições de formulação sob as especificidades do intradiscurso e as condições e os efeitos de sua circulação, especialmente acerca de sua recepção.

Como apresentamos na introdução, o pressuposto a partir do qual desenvolvemos nosso estudo incide sobre o fato de que no ano de 2011 a luta contra a pobreza tenha passado de uma política de Estado a uma política de governo, isto é, que tenha constituído o próprio fundamento do governo de Dilma Rousseff, tornando-o um governo contra a pobreza. De tal modo, observamos que os objetos do DLCP apareceram recorrentemente na fala presidencial por um processo de recitação ou de incitação ao discurso e para analisar esses fenômenos e seus efeitos propusemos investigar, reiteramos, as instâncias de constituição, formulação e circulação do DLCP. Assim, a partir do pressuposto inicial e do objetivo de pesquisa, compusemos o corpus de referência da investigação com um conjunto de 22 textos, além do próprio slogan País rico é país sem pobreza, nos quais identificamos a recorrência do slogan como objeto temático e o DLCP como dominante.

Justificamos essa opção por considerarmos que não se trata de uma simples delimitação de objeto, mas de uma hipótese prévia, ou, no termos de Pêcheux, de uma determinada responsabilidade. Isto é, se em uma república presidencialista um determinado discurso ocupa o frontispício, o lugar principal de identificação do projeto político de um presidente e de seu governo (desdobrando-se em tema da enunciação e em princípio da atividade do locutor agente político), avaliamos que tal fenômeno seja relevante pelo próprio efeito social que pretende. Em segundo lugar, a relevância do corpus de referência delimitado se baseia na hipótese de que o efeito de recitação simula a própria instância de circulação do

discurso, seja por antecipação ou réplica de um domínio associado de formulações ou como atualização de memórias distintas que fazem significar o objeto discursivo.

Assim, com base nesses critérios, o corpus de nossa pesquisa se caracteriza por ser constituído por um corpus de referência que integra o slogan País rico é país sem pobreza e pronunciamentos presidenciais em que o slogan emerge como objeto temático e um corpus aberto e auxiliar caracterizado como domínio associado do corpus de referência e que integra textos publicitários e informativos do governo federal; textos da internet que fazem referência ao slogan País rico é país sem pobreza; e textos jornalísticos veiculados nos suportes impresso e eletrônico.

Como procedimentos de análise, uma vez que tomamos a categoria da contradição como princípio e objeto de investigação, pretendemos a partir dos procedimentos gerais delimitados por Courtine, apresentados no tópico anterior, considerar a contradição entre os aspectos gerais e particulares do DLCP bem como as contradições internas dos aspectos particulares de sua enunciação. Isto é, analisaremos suas contradições constitutivas que o inscrevem na disputa de sentidos sobre as desigualdades sociais, e, de fato, principalmente econômica, bem como analisaremos a forma material que assumem essas contradições em seu funcionamento discursivo. Esse aspecto da análise, contudo, não se confunde com a própria investigação, mas se caracteriza como momento, embora principal, da compreensão das instâncias do processo discursivo do DLCP, cuja análise realizaremos a partir do estabelecimento de relações entre os enunciados, sob a forma de cadeias parafrásticas no interior das formações discursivas e nas relações que elas instauram entre si, articulando-as às condições de produção do discurso e às posições de seus enunciadores. Pelo fato de as formações discursivas serem instâncias que determinam o dizer e que se configuram como matrizes da produção do sentido, assim procedendo, será possível apreender o que o DLCP “determina que se pode e se deve dizer” e os sentidos que produz. Em suma, a polissemia constitutiva da linguagem é passível de ser interpretada a partir da identificação das paráfrases empreendidas pelo discurso em meio a relações sociais de força e de sentido (ORLANDI, 1996). Quanto à descrição das formas sintáticas e das relações semântico-lexicais nos enunciados, reconhecendo que essa descrição se instala sobre um real específico, o linguístico (PÊCHEUX, 2011), a análise consiste em

considerar o funcionamento discursivo de categorias ou operadores como atividade estruturante do discurso, por um falante determinado, para um interlocutor determinado, com finalidades específicas (ORLANDI, 1996).

CAPÍTULO 2 – A pobreza como problema social no discurso: