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CAPÍTULO 3 – O discurso da luta contra a pobreza no Brasil: de

3.2 O slogan País rico é país sem pobreza

3.2.2 Efeito de valor moral na composição do slogan

Como vimos anteriormente, na formulação designativa do slogan há um efeito de denegação de um saber e ao mesmo tempo, por efeito de indeterminação, um silenciamento de litígios. Diremos que esse enunciado, trabalhando no âmbito da evidência, opera uma gestão da polêmica de modo a substituir uma contradição por outra. Isto é, em torno do problema da pobreza são substituídos os pares soberania →← ingerência e igualdade →← exploração pelo par verdade →← desconhecimento, cujo objeto ainda configura a contradição simulada entre o desenvolvimento humano e o desenvolvimento exclusivamente econômico. No que segue, argumentamos que esse efeito é sustentado pela associação entre a memória de que a pobreza é problema de falta moral e aspectos composicionais do gênero de discurso.

A respeito do sentido de pobreza como problema moral, a própria narrativa de lançamento do slogan já produz alguns efeitos de virtude que o caracterizam. A logomarca do governo foi anunciada pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (http://blog.planalto.gov.br) como uma doação dos publicitários que a criaram. Inclusive, diversas notícias que reportaram o lançamento do slogan incluíram essa informação, com sintagmas como “sem custo ao erário”, “de graça para o governo”, “nada custou ao governo”, “foi uma doação” etc. Ao mesmo tempo em que se apaga imediatamente na informação que a substituição da marca do governo federal em todos os suportes e veículos midiáticos, papéis oficiais etc. tem, sim, um alto custo, a doação é sobrevalorada. De tal modo, a narrativa de seu “nascimento” já significa o slogan como símbolo de uma vontade comum, da identificação pela causa que defende, e da solidariedade. É relevante pensarmos que o slogan tenha já em sua origem, como produto material de uma atividade profissional especializada (e altamente renumerada), um valor moral. Isto é, há um deslocamento de produto da propaganda política para produto

da virtude cidadã. Se a pobreza é um problema de falta moral, a sua solução começa pelo exemplo e promoção de virtudes.

Associado a essa narrativa também podemos observar no enunciado um efeito moral naquilo que o identifica como gênero de discurso, por seu estilo e sua forma, e que também o coloca em relação ativa com outros gêneros. Especificamente, o slogan País rico é país sem pobreza comporta certos traços do gênero provérbio que, levando em conta o discurso que materializa e suas caraterísticas já assinaladas, produzem uma nuance moral sobre o efeito de verdade daquilo que enuncia. Em termos enunciativos, isto é, em que se leve em conta as condições de uso do enunciado, é possível dizer que todo slogan almeja um funcionamento proverbial. Maingueneau (2010), ao analisar como determinados tipos de enunciações captam as condições genéricas do provérbio que o tornam reconhecidamente verdadeiro por uma comunidade linguística de modo a produzir um efeito de autoridade, afirma que ser provérbio é o ideal do slogan.

De fato, o objetivo de todo slogan é passar do estatuto de “eu- verdade” (a verdade de uma firma, de um partido etc.) ao de “on- verdade” (uma verdade estável, universalmente conhecida, garantida por um enunciador de autoridade incontestável, que coincide com a própria comunidade linguística). Por pouco que as mídias cheguem a impor o slogan, a ficção que o funda torna-se realidade: pseudoprovérbio, ele acabará gerando efetivamente uma infinidade de ecos (id., p. 178).

Além disso, uma vez que funcione como provérbio, o slogan faz ecoar também o estatuto que possuem os provérbios de uma língua, aquilo que dizem como reconhecidamente verdadeiro sobre cada situação específica e entra para o rol dessas verdades universais. Contudo, para compreender melhor como o slogan de que tratamos pode apresentar um funcionamento proverbial é preciso exploramos com mais detalhes as características desse gênero.

No artigo Proverbes et formes proverbiales: valeur évidentielle et argumentative, Anscombre (1994) examina tanto a natureza do provérbio quanto o uso contemporâneo do que ele chama de formas proverbiais. Ao abordar em obras clássicas e dicionários as definições que permitiriam reconhecer um provérbio como tal, observa que apesar de as mesmas serem de pouca ajuda, uma vez que não estabelecem uma distinção precisa entre diferentes termos como ditado, preceito,

máxima, aforismo, sentença, no entanto, dessas definições é possível depreender três características comuns: um aspecto de fórmula sentencial (ou forma sentenciosa), uma propriedade prescritiva e um alcance geral ou universal.

Considerando principalmente a forma sentenciosa como elemento identificador ou propriedade característica, o autor aponta que, especificamente em relação ao provérbio, tais obras apresentam comumente a definição de ser uma fórmula elíptica geralmente metafórica e estilizada. A partir dessa definição, observa que, por um lado, os provérbios são frases completas, suficientes em si mesmas e, por outro, apresentam um recurso sistemático a figuras de linguagem como assonância, simetria rítmica, anacoluto etc. Observadas essas características, Anscombre examina a tendência do uso de formas proverbiais na imprensa, por exemplo, como modo de enunciar “verdades gerais” ou então o uso de formas quase proverbiais na literatura contemporânea para imprimir certo lirismo; e examina também o argumento de que haveria no emprego dessas formas sentenciosas um aspecto arcaizante, uma vez que seus contornos sintáticos seriam incomuns em outros usos da língua. O autor refuta esse argumento ao comparar o registro medieval e sublinha que os provérbios em uso atualmente foram constantemente reatualizados. Pelo mesmo motivo também se contrapõe à hipótese de que as formas sentenciosas se caracterizariam por um processo de cristalização como no caso das expressões idiomáticas (por exemplo: “Abrir o coração”, “Arregaçar as mangas”). No entanto, considera que as formas sentenciosas e as expressões idiomáticas têm por característica comum serem unidades codificadas que designam um conceito geral. Para Anscombre é essa uma característica importante da forma sentenciosa. Uma vez que o conceito geral, representado por convenção, faça parte do código linguístico comum, a fixidez referencial vai de par com uma fixidez da forma. Por esse motivo seria possível reconhecer nas formas sentenciosas uma quase fixidez e certa identificação com expressões idiomáticas, mas também sua distinção. Anscombre conclui, portanto, que não é porque seja fixa que uma sentença seja identificada como tal, mas que a fixidez permite identificar traços sintáticos e semânticos que a caracterizam. A partir dessas considerações, o autor define dois critérios para uma classificação das formas sentenciosas: a) se se trata ou não de uma designação e de qual tipo é; b) quais mecanismos linguísticos específicos revelam a fixidez da forma.

A partir do primeiro critério Anscombre analisa e refuta aquela que é tida por principal característica do provérbio, sua propriedade metafórica ou figurada. Assinalando o traço ‘metafórico’ como M e como H um outro traço comum das formas sentenciosas, o traço ‘relativo às condutas humanas’, observa, por exemplo, que o provérbio Un homme averti en vaut deux (Homem prevenido vale por dois) apresenta -M e +H. Já uma forma sentenciosa como Petite pluie abat grand vent (Chuva miúda o vento muda) será um ditado se apresentar -H e provérbio se apresentar +H. Considerando exemplos como esses, o autor assinala que o que realmente caracteriza os provérbios como designação de um conceito é que eles são julgamentos morais sobre os comportamentos humanos. Comparando diversos provérbios o autor demonstra que o caráter metafórico sempre implica um traço relativo ao comportamento humano, mas que o contrário não ocorre, havendo provérbios não figurados, como é o caso do exemplo acima: Homem prevenido vale por dois.

A partir do segundo critério, isto é, o que revela a fixidez da forma, considerando as características linguísticas dos provérbios, Anscombre aponta que:

- as formas proverbiais sempre enunciam uma generalidade intemporal, de modo que na sua forma habitual não podem servir à enunciação de um evento, o que é marcado frequentemente pelo tempo verbal no presente indicativo (por exemplo: Amanhã, quem chegar atrasado perderá o lugar para quem chegar primeiro”, “Amanhã, quem vai à roça, perde a carroça”, “Amanhã, quem for à roça, perderá a carroça”);

- sendo o provérbio proveniente da sabedoria popular, seu autor assemelha-se a uma consciência linguística coletiva, de modo que o locutor não é o enunciador do princípio ligado ao provérbio, mas aquele que declara ou afirma tal princípio. Mais do que apresentar uma sabedoria popular, o provérbio apresenta um julgamento de valor coletivo;

- os provérbios são frases genéricas, pois exprimem uma relação independente de situações específicas, apresentando deduções padronizadas ou plausíveis sobre situações particulares as quais eles qualificam. Assim os provérbios são argumentos de universalidade, plausíveis, mas não necessários. Ao mesmo tempo, não se apresentam como qualificando uma situação particular, mas a

colocam como uma ocorrência particular da situação genérica denotada no provérbio.

Após considerar, então, o provérbio a partir dos dois critérios de classificação das formas sentenciosas, Anscombre o caracteriza como um marcador de evidencialidade e examina sua função argumentativa. Conforme demonstra, dada sua característica intemporal, o provérbio apresenta um saber que não provém nem da percepção nem da inferência do locutor que o utiliza. Representando um saber comum e pertencente ao patrimônio linguístico, o provérbio está ligado à categoria evidencial do empréstimo, porém apresenta um saber emprestado a uma fonte que não é especificamente conhecida, diferentemente do que ocorre com outras formas sentenciosas como as máximas, por exemplo, das quais o autor é sempre indicado. O provérbio, como marcador de evidencialidade ligado ao empréstimo, distingue-se, contudo, de outros marcadores de empréstimo tradicionais tais como “ouvi dizer”, “parece que”, “dizem”. Isso ocorre tanto porque a fonte do saber emprestado não é especificamente identificada quanto porque essa origem indeterminada é uma característica da própria forma proverbial, isto é, os recursos linguísticos da forma proverbial caracterizam uma origem popular ou folclórica do saber enunciado, de modo que o locutor não precisa assinalar o empréstimo. Isso faz com que o provérbio seja por si mesmo um marcador de evidência.

Quanto ao aspecto argumentativo, esse não se encontra na informação que o provérbio comporta, pois essa não pode servir de resposta completa a uma demanda. O provérbio não se destina a fornecer referencialmente uma informação, ele serve antes como quadro e garantia a um raciocínio, de modo que permite apenas uma inferência de natureza discursiva, sendo implícita ou não. Por exemplo: numa dada ocasião, um grupo de manifestantes é flanqueado pela polícia e um deles pergunta para a pessoa que está ao lado se ela está com medo e ouve como resposta: “Cão que ladra não morde”. Na condição de informação esse provérbio não responde diretamente à demanda, mas como princípio serve de garantia ao raciocínio de que não seria preciso ter medo; ou “Não se faz uma omelete sem quebrar alguns ovos”. Na condição de informação esse provérbio não responde diretamente à demanda, mas enquanto princípio serve de garantia ao raciocínio de que seria preciso assumir o risco da situação.

Em resumo, o provérbio qualifica uma situação sem parecer qualificá- la, apresentando um julgamento de valor coletivo sobre comportamentos humanos, de validade universal, na forma de um saber evidente que garante um raciocínio, nisto reside sua força argumentativa.

No slogan País rico é país sem pobreza podemos identificar como características proverbiais, conforme as vimos em Anscombre: a designação de um conceito geral sobre comportamentos humanos, isto é, um traço +H se considerarmos que pobreza e riqueza são condições e atributos da vida humana; uma generalidade intemporal marcada no presente indicativo genérico do verbo ser; a simulação de um saber comum e evidente caracterizado por certa lógica segundo a qual a afirmação de x equivale à negação de y, que é seu oposto, o que nesse caso corresponde à oposição semântica entre riqueza e pobreza; a entonação asseverativa como argumentação de universalidade, decorrente desse aspecto de evidência; o aspecto genérico pela qualificação de uma situação particular, a do Brasil, como sendo ocorrência de uma situação universal, uma vez que faz referência a uma classe genérica com o uso da nominalização país; a seleção lexical simples; e, por fim, podemos ainda observar uma figuração pela simetria rítmica da estrutura binária e pelo contorno sintático do assíndeto. Consideradas essas características, observamos que o slogan aqui analisado, sendo um slogan político devido as suas condições de produção e circulação, caracteriza-se como o tipo de sentença que Anscombre denomina forma quase-proverbial. Assim, observadas as características sintáticas e semânticas do slogan que o identificam com a forma proverbial, podemos compreender como são produzidos alguns efeitos que o associam à condição moral do problema da pobreza e que permitiriam uma gestão da polêmica a que nos referimos acima.

O primeiro ponto a ser destacado é o valor de verdade universal como virtude emprestada ao locutor. A partir do efeito de se impor como uma verdade universal, construída sob um julgamento de valor coletivo e um saber evidente, o provérbio preenche a circunstância de sua enunciação de uma moral (pela virtude do ser verdadeiro) que legitima a própria enunciação e aquele que enuncia. Assim, funcionando como provérbio, o slogan apresenta o que diz como uma verdade reconhecida sustentada por um saber evidente. A isso é preciso acrescentar outro aspecto do provérbio destacado por Anscombre, qual seja, o de que esse gênero

não se presta a informar referencialmente, mas que serve como quadro e garantia a um raciocínio que se volta sempre para os comportamentos humanos. Isso pode ser percebido discursivamente no slogan, conforme já analisamos no tópico anterior, da seguinte forma: a predicação incide por efeito de negação sobre o adjunto adnominal rico (o adjetivo que caracteriza o nome genérico País), de modo que um valor de definição suplanta o valor de qualidade ou de caracterização, no sentido de que o predicado não é um acréscimo, mas uma restrição. Assim, considerando essa restrição dada como evidência, podemos produzir a seguinte paráfrase: Só é um país rico, e unicamente rico, aquele onde não há pobreza, pois onde as pessoas são ricas elas não são pobres. Mas acrescentado o fator comportamento humano a essa evidência, podemos reformular sua paráfrase da seguinte maneira: Só é um país rico, e unicamente rico, aquele onde as pessoas não sofrem com a pobreza.

Esse funcionamento discursivo proverbial ainda produz por efeito que o slogan se caracterize como uma asseveração que acentua o valor de autoridade do Estado ou da presidência (com o que há de memória institucionalizada como posição-sujeito-presidente do Brasil), pois há uma fusão de duas instâncias da entonação asseverativa, aquela como espécie de última palavra a ser dita sobre um tema fundada no contrato social e aquela que precede o objeto ou situação referencial fundada num saber universal e admitido como verdadeiro. A autoridade que se depreende desse tipo particular de asseveração que apresenta o slogan considerado funcionaria, portanto, duplamente garantida.

Recapitulando, o slogan País rico é país sem pobreza acrescenta ao valor de imperativo categórico da luta contra a pobreza a nuance de ser um produto da virtude cidadã, conforme a narrativa de seu aparecimento. E, a partir de seu funcionamento proverbial, congrega a virtude de dizer uma verdade reconhecida e um julgamento de valor coletivo sobre o comportamento humano a respeito da pobreza. Considerando ainda que esse slogan seja enunciado pela presidente, acrescentam-se os efeitos de sentido do progresso moral e da autoridade fundada no contrato social produzidos pela posição-sujeito.

A autoridade duplamente garantida, a virtude de verdade universal, o julgamento de valor coletivo e o valor de imperativo categórico da luta contra a pobreza seriam, portanto, mais que suficientes para uma identificação consensual capaz de fazer convergir posições antagônicas. Mas se teoricamente isso procede,

por que na prática a presidente Rousseff teria tantas vezes tomado o slogan como objeto de sua fala para explicá-lo e para reacentuá-lo ou mesmo como síntese de seus argumentos? No capítulo seguinte vamos analisar algumas dessas ocorrências enunciativas de modo a compreender que efeitos de sentidos são ali produzidos. No tópico seguinte vamos analisar alguns efeitos de sentido produzidos pela circulação do slogan em réplicas e comentários.