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Teceremos algumas reflexões sobre a relevância das cartas como uma fonte de informação expressiva de pesquisa literária, histórica, biográfica e cultural.

Adna Evangelista Couta dos Santos e Sílvia La Regina (2012) afirmam que as cartas podem ser lidas como um material de relevância para análise do processo criativo em três perspectivas:

[...] a primeira é recuperar na carta a expressão testemunhal que define um perfil biográfico, confidências e impressões espalhadas pela correspondência de um artista, contam a trajetória de uma vida, delineando uma psicologia singular que ajuda a compreender os meandros da criação da obra. A segunda procura apreender a movimentação nos bastidores da vida artística de um determinado período. A terceira, por fim, é um viés interpretativo que vê o gênero epistolar como “arquivo da criação”, lugar onde se encontram fixadas a gênese e as diversas etapas de elaboração de uma obra artística, desde o embrião do projeto até o debate sobre a recepção crítica favorecendo a sua eventual reelaboração” (MORAES apud SANTOS e LA REGINA, 2012).

A carta constitui-se, pois, num documento que registra o processo de criação literária. Além disso, contém uma gama de diversos conhecimentos como aspectos biográficos, as confidências e impressões, o contexto histórico em que os poetas estão inseridos, a postura ideológica e estética de cada um. Não obstante, esta pesquisa não enveredou pela metodologia estabelecida pela Crítica Genética e, sim, pelo uso dos seus resultados, com fins didáticos. Recorremos às cartas como documentos já publicados e analisados por outros pesquisadores, com o objetivo de dar a tais missivas uma função específica: levar os alunos, como receptores do texto poético, a uma motivação que permitisse a geração do interesse pela leitura dos poemas dos autores correspondentes.

A partir das ponderações sobre a relevância das cartas como fonte de informação expressiva sobre o processo criativo do escritor, decidiu-se como elemento motivador e facilitador para a Unidade Temática dessa pesquisa uma sequência de cinco cartas de Carlos Drummond de Andrade para Zila Mamede; e duas cartas de Câmara Cascudo para Mário de Andrade.

Dentre as motivações, a escolha das cartas se deu pelo fato de promover um estudo pelos alunos do Ensino Fundamental II, de textos dos escritores envolvidos nas correspondências,

com o objetivo de chegar à leitura de poemas da poeta Zila Mamede – como se verá, foram selecionados uma quantidade maior de textos dessa autora, comparativamente a Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira.

Como já foi informado na introdução desta pesquisa, as cartas de Drummond endereçadas à Zila Mamede tratam de questões estéticas (sugestões, orientação quanto ao fazer poético), existenciais (os poetas falam de suas alegrias, dores, perdas, ausências) e sociopolíticas (os autores discutem sobre política, a seca no Nordeste); falam também sobre amigos e familiares que lhes são queridos. Já as missivas de Câmara Cascudo abordam sobre os elementos da cultura popular, os quais se encontram presentes nos poemas de Zila Mamede e Manuel Bandeira.

Nas correspondências trocadas entre Drummond e Zila, eles tratam tanto de questões estéticas quanto existenciais. Falam dos amigos e dos familiares que lhes são queridos. Na carta do dia 29 de junho de 1964, Drummond escreve para Zila1:

Não sou só um seu velho amigo, sou também uma pessoa com certa experiência de perda, e hoje vivo tanto de minhas perdas como de algumas presenças fiéis que tenho de me resignar a perder também [...]

Nunca senti tanto a companhia de meu pai junto de mim, perto, dentro, do que depois que não posso ir visitá-lo todas as tardes, como fazia em Belo Horizonte. E com minha mãe a mesma coisa. Fui fazendo deles uma imagem quase perfeita, de tão nítida, à medida que ia aprofundando o sentido da morte de ambos. De meu pai nem se fala, talvez, porque foi com ele que tive maiores problemas e precisei assim conhecê-lo melhor [...]. Com sua mãe então isso nem será aquisição do tempo, de tão amigas que vocês eram, que vocês são, e me lembro bem de tudo de bom que você me dizia dela. Sei que você ainda vai sofrer bastante e fará de seu sofrimento uma espécie de oferenda a sua mãe. [...] A verdadeira lembrança não é triste, é uma depuração da tristeza. Eu até brinco com meus pais pensando neles [...].

Nessa carta, por ocasião da morte da mãe de Zila, o poeta amigo tenta lhe consolar e fala da sua experiência pessoal ao perder seus pais, chegando até a revelar para a amiga poeta um conflito que ele tinha com o pai, enquanto que com a mãe a relação era harmoniosa. O relato dessas experiências é reiterado em outros poemas de Drummond, por exemplo, em “Viagem em família”, texto no qual ele expõe a relação conflituosa com o pai. Já nos poemas em que há a presença da mãe, percebe-se uma serenidade.

O conteúdo das correspondências selecionadas, cuja linguagem é bastante informal, contém, portanto, uma gama de diversos conhecimentos como o contexto histórico em que os poetas estão inseridos, a postura ideológica, estética e existencialista de cada um, o processo de criação, revelando as circunstâncias que geraram um poema e as diversas formas que os versos assumiram até a publicação, uma vez que eles discutem, tecem críticas e sugestões sobre suas produções poéticas. Assim, o estudo das missivas foi fundamental para que se percebesse a importância desses registros como fonte de pesquisa literária, histórica, biográfica e cultural.