• Nenhum resultado encontrado

2.4 GREGÓRIO E AS INSTÂNCIAS DE PODER POLÍTICO

2.4.1 A CORTE IMPERIAL

Para Gregório, como para muitos de seus contemporâneos, o legado do passado continuava presente por intermédio do pensamento político, isto é, o ideal de um Império Romano Cristão (societas reipublicae Christianae) no qual a Igreja e o Governo completavam-se um ao outro, como se eles trabalhassem em uma recíproca regeneração persistia até os dias de Gregório I.

Tal concepção gregoriana é expressa, alegoricamente, na epístola endereçada a Leontius (Ep. VIII.33), quando se referiu ao relacionamento entre a Igreja e o mundo. De acordo com esse princípio, a Igreja era composta tanto pelos cidadãos da Babilônia (in angaria) como pelos cidadãos de Jerusalém (caelestis pátria). Obras realizadas no exílio da primeira colheriam recompensas na urbe sagrada de Jerusalém.

A imperial corte de Constantinopla era uma visível manifestação dessa realidade teológica, a divina corte do Paraíso. Assim, de acordo com esse preceito ideológico, seguir o imperador era uma manifestação política de uma harmoniosa unidade, sobre o qual o mundo dependia para uma melhor existência. Portanto, era dever clerical rezar por esse governante. Afinal, Deus todo poderoso permitiu que ele pisasse sobre as nações bárbaras, bem como lhe concedeu um reinado longo e feliz, para que a fé em Cristo pudesse governar todo o Império Cristão (Ep. VII.5). É a antiga justificativa hegemônica para o imperialismo romano, embora com uma nova aparência cristã. Os bárbaros eram naturalmente inferiores aos romanos, como os escravos eram para os homens livres (Ep. VII.5; XI.4; XIII.32).

Como temos visto, Gregório I sempre demonstrou especial consideração ao Império, que considerava universal por sua natureza e vocação. Em seu epistolário, em inúmeras oportunidades, nomeia-o de sancta Respublica ou christianissiumun Imperium. Para o pontífice, a universalidade, atributo da hegemonia, é característica da Igreja e do Império. Embora se confudam, eles atuam em áreas distintas, mas que se complementam para a completa realização do projeto divino de salvação. Desse modo, cabe ao papa nortear o rebanho e ao imperador garantir a paz à Igreja para que o “reino terrestre esteja a serviço do reino dos céus” (Ep.III.61)43. Tal

afirmação, segundo H-X. Arquillière (1956, p. 124), seria a base ideológica da “concepção ministerial do Império”.

Nesse sentido, se as “invasões bárbaras” podem ser vistas como uma diminuição da expansão do velho Império Romano, o mesmo não pode ser dito sobre o conceito de império que ele representava. Nesse sentido, Gregório vivia um conflito entre a identidade romana, representada pela fidelidade ao aparelho imperial, de um lado; e a tentativa de impor-se como autoridade espiritual hegemônicia, capaz de lidar com uma dimensão apocalíptica, da qual os “bárbaros”, aos quais era obrigado a se relacionar, eram apenas um sinal.

Sem dúvida, foi devido às necessidades de seu contexto histórico que o forçaram a se relacionar com as monarquias germânicas. Cada vez mais distante do Oriente, restava-lhe apenas voltar-se aos vários agrupamentos nacionais que ocupavam o Ocidente, entidades autônomas, que possuíam suas próprias Igrejas nacionais e seus próprios destinos religiosos e políticos.

Tão íntima era a aliança com o Império Romano que o papa dependia da concessão do imperador até mesmo para o apontamento de bispos. Essa regra continuou até 584, quando o imperador renunciou a seus direitos a esse respeito. Em troca do ato de retificação e em conformidade com a convenção bizantina, a Igreja romana foi obrigada a pagar uma grande soma à corte. Quando vistas nessa luz, as epístolas de Gregório (Ep. I.4 a I.7), remetidas para indivíduos da corte imperial lamentando-se do peso do episcopado, logo no início do seu pontificado, tornam-se muito significativas.

Percebemos que Gregório sempre esteve balançado entre o desejo de ser fiel à antiga ordem das coisas e o reconhecimento da realidade de que um novo mundo

estava emergindo. Essa tensão pode ser vista nos eventos que marcaram sua vida pessoal. Afinal, como um homem do Ocidente, viveu em um Império que se tornava cada vez mais oriental. Um homem que sonhava em se tornar um missionário dos bárbaros do norte e que foi enviado como um emissário papal à corte de Constantinopla. Um homem que retornou do Oriente como um amigo e confidente do imperador Maurício, mas que enviou Agostinho na missão de converter os anglo- saxões.

Gregório foi apresentado a Maurício quando esse ainda não ocupava o posto de imperador, no período em que era o representante da sé romana em Constantinopla. Naquela época, devido aos papéis exercidos por ambos no Estado Ampliado, que lhes impunham um vínculo mais estrito, acabaram tornando-se amigos. Porém, tal amizade não perdurou por muito tempo. As razões dos desacertos são muitas. Segundo M. Reydellet (1981, p. 447), algumas decisões tomadas por Maurício resultaram no obscurecerimento da representação do imperador no espírito de Gregório (REYDELETT, 1981, p. 447). Abalizado ideologicamente nos preceitos antigos, o pontífice apoia a tese de que o bispo de Roma é o guardião da fé e o responsável pela doutrina. Boa parte das discórdias com o governante Maurício relaciona-se com essa concepção papal (RIBEIRO, 2002, p. 161).

Todavia, em suas epístolas sempre se referia ao imperador com as costumeiras expressões tópicas e adulatórias do ritual de corte, tais como: serenissimi domini (Ep. I.7; III.61; V.36), pietas and sanctitas vestra (Ep. III.61; V.36; VI.16; VI.64; VII.6; VII.30) ou clementia (Ep. V.30). Ele entendia que o imperador ocupava uma especial posição na hegemonia do Estado ampliado, ordenado diretamente pelo próprio Deus (Ep. V.37). Em outros termos, Gregório I reconhecia no imperador uma pessoa encarregada de zelar pela paz da Igreja e que, portanto, tinha o direito de intervir nos assuntos eclesiásticos (Ep. VII.6; Moralia 23.13.24).

Porém, Gregório acreditava que era seu dever, como papa, expressar a sua opinião quando considerava que o imperador tinha, de algum modo, tornado-se um problema ou abusado de sua autoridade. E evidente que ele o fazia de modo privado, de maneira que preservava a posição pública do imperador. Um exemplo desta abordagem pode ser percebido em sua resposta a uma ordem imperial, no qual se proibia que funcionários imperiais se tornassem monges. Em sua epístola,

afirmava que a responsabilidade do imperador não se limita ao bem-estar material, pois tem o dever de cuidar do bem espiritual dos governados. Avisava Maurício que na economia do mundo o reino terrestre está a serviço do celeste, sob o encargo pessoal de quem governa. Gregório protestou, acrescentando, como justificativa, que não poderia permanecer em silêncio enquanto os decretos de Deus estivessem sendo violados (Ep. III.61).

A maneira na qual ele fez essa objeção é significativa. Ele a enviou, não através de seu representante oficial na corte, mas via Teodoro, o médico imperial. Gregório tomou todos os cuidados para que a correspondência fosse apresentada em segredo para o imperador, em um momento apropriado (Ep. III.64). Essa abordagem diplomática resultou em uma modificação do decreto original, pois se substituiu a proibição total pela proibição de um período de três anos de serviços (MARTYN, 2004, p. 19-20).

Esse não foi o único caso em que o papa chamou a atenção do imperador. Como vimos anteriormente, Gregório I incitou Maurício a pressionar João, o Jejuador, patriarca de Constantinopla, para abandonar o título de patriarca ecumênico. Para tal, o papa argumentava que apenas Cristo era o mestre universal e que não havia em toda a Igreja quem pudesse nomear-se ecumênico (Ep. V.37). A revolta papal contra o posicionamento da sé oriental explica-se pela sua concepção de hegemonia, no qual existem dois princípios de universalidade: a Igreja e o imperador (RIBEIRO, 2002, p. 162). Portanto, segundo Gregório I, a universalidade era um predicado da Igreja, o que não autorizava nenhum patriarca a atribuir-se desse princípio ideológico, pois gozar desse título o tornaria diferente dos outros, colocando-se, inclusive, acima do Império (Ep. V.39). Para invalidar a aspiração de Constantinopla, o pontífice evoca, como antigamente o fizera Leão I, o fundamento dogmático do primado papal, isto é, “Tu es Petrus et super hac petram...”.

Maurício relutou em agir de forma tão drástica, sobre o que, na visão imperial, não passava de um título essencialmente frívolo (appellatione frivoli nomini). Mas Gregório reafirmou sua posição, enfatizando a necessidade do imperador ser mais agudo em seu julgamento. Ele declarou que o que poderia parecer inofensivo e fútil em determinadas condições poderia ser como veneno mortal em outras (Ep. VII.30). Segundo Dagens (1991, p. 39), para Gregório todo indivíduo que aspirasse ser condecorado com a universalis deseja também um poder temporal. E mais: para

Ribeiro (2002, p. 163), “qualquer contestação ao seu poder espiritual parecia a Gregório atentado contra sua posição política na Itália”.

Isso explica o elevado empenho de Gregório I no seu exercício pastoral, a ponto de chegar a pedir a intervenção da augusta Constantina, a quem conhecia pessoalmente desde o período em que fora apocrisiário em Constantinopla. Na epístola de junho de 595, reitera a imperatriz o pedido realizado à corte bizantina, isto é, cobra uma atitude mais rigorosa contra o bispo oriental, ao qual via como um perigo à primazia hegemônica da sé romana, e expõe a razão que o impedia de ser clemente com o inadmissível comportamento do patriarca de Constantinopla (Ep. V.37).

Tais divergências com o poder imperial não foram capazes de influenciar a confiança do papa neste sistema de governo. Nem mesmo a crítica epistolar à figura imperial (Ep. V.36), no qual ele descreveu o governante como ingênuo (fatuus), muito menos a brutal derrota de Maurício por Phocas, poderia abalar tal convicção. Suas experiências junto à sociedade política, primeiro como um poderoso chefe magistrado de Roma e, posteriormente, como o representante do Papa em Constantinopla, ensinou-lhe o valor da lei romana, no qual se assenta a base do poder imperial.

Aqui vale lembrar que, conforme consta nas definições de Gramsci sobre a sociedade política, cabe a esse setor do Estado ampliado realizar o exercício da coerção, isto é, a conservação pela força da ordem instituída. Contudo, ela não se restringe apenas ao simples comando militar, mas também ao governo jurídico, ou seja da força “legal”, uma vez que “o direito é o aspecto repressivo e negativo de qualquer atividade positiva de civilização realizada pelo Estado” (PORTELLI, 1977, p. 36).

De fato, Gregório I tinha um grande interesse e competência pela magistratura romana que poucos de seus contemporâneos ocidentais poderiam igualar. Tanto que Giuseppe Damazia (1949, p. 220-226) identificou aproximadamente vinte passagens do Corpus Iuris Civilis nas epístolas de Gregório I, junto com setenta e quatro explícitas e cinquenta e quatro implícitas referências às leis romanas. E, assim, o pontífice continuou a defender a hegemonia do cargo imperial, orando pelo imperador em exercício e sua família e exortando os outros a fazerem também.

Em síntese, Gregório I, como súdito leal ao imperador e romano de nascimento, acreditava que o Império representava ideologicamente a expressão ideal do universalismo cristão. Esse pontífice, portanto, vincula-se a uma tradição especificamente latina. Em outros termos, ele enxerga o Império com os mesmos olhos idealizados pelo escol romano, reflexo do quadro desenhado, em seu período, pelos meios intelectuais tradicionais de Roma, isto é, sobre o período do Principado. Assim, os pedidos de proteção divina para o soberano oriental, constantes no Registrum Epistolarum, demonstram a concepção gregoriana de que o Império é garantia de liberdade (RIBEIRO, 2002, p. 160).