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A cosmologia dos Wassu evangélicos

CAPÍTULO III – Ervas, pajelança e cura: entre os Wassu católicos-Ouricuri e

3.3 A cosmologia dos Wassu evangélicos

Já os Wassu evangélicos, acreditam no Deus trino: Pai-Filho-Espírito Santo, e obviamente, não acreditam que Maria, mãe de Jesus, ou que os santos católicos tenham poder, muito menos que possam influenciar na vida dos homens ou interceder por eles através de uma oração.

Tive informações entre os Wassu evangélicos que provavelmente não teria entre o Wassu católicos-Ouricuri. Disseram-me que quando estavam para levantar o Ouricuri, vieram índios de outras aldeias e que ficaram juntamente com os Wassu em reclusão para “descobrir quem era o dono daqui”, então questionei: “dono em que sentido?”, me respondeu que “espiritual, entidade espiritual” e este seria um dos motivos para os

evangélicos rejeitarem a participar daqueles rituais, pois a Bíblia manda adorar um só Deus. Alguns evangélicos afirmaram ter vontade de frequentar o Ouricuri, mas, como “a Bíblia ela é muito específica [...], hoje eu vejo os dois lados da moeda e eu optei por um, entendeu?”.

Perguntei mais enfaticamente: “O que é que o Ouricuri tem que a bíblia não permite?”. O meu interlocutor fez uma pausa reflexiva, respirou e então respondeu:

Aí é interessante, olhe, o que eu sei de lá é, quem convive lá não sabe que eu sei, entendeu? Quando eu digo que o Ouricuri tem um dono, uma entidade e que essa entidade elas são apresentadas em oferendas, em rituais, sacrifícios, porque essa entidade ela já entra em contradição

com o que a Bíblia diz, a Bíblia diz: “ adorai a um único senhor, o vosso

Deus, abaixo dele nem um outro”, então aí, com isso entra em contradição; você ter uma festa, a qual a pessoa que está na festa, os doze homens que são selecionados para a festa, cada um está vestido com uma roupa a qual eu não sei quem está vestido naquela roupa [praiá] dozes pessoas com doze praiás e eu não sei... entrou José, Antônio e Pedro e eu não sei em que praiá está José, que praiá está Pedro e que praiá está Antônio, porque cada praiá daquele representa uma subentidade. Aí isso a Bíblia condena, até a Bíblia católica condena a adoração a ídolos, a Bíblia católica, mas, porém, hoje o pessoal [católicos] não adora, eles respeitam, eles consideram. Mas hoje lá em cima [em alusão ao ritual do Ouricuri que acontece na Serra Pedra do Ouricuri] há adoração, há o culto à entidade, exemplo: o mesmo daqui é o de Kariri, o mesmo dono daqui é o de Kariri, se os Wassu quisessem participar do Ouricuri dos Kariri eles poderiam.

Essas informações não puderam ser checadas, inclusive sobre o “dono daqui”, devido o segredo que estáem torno do ritual do Ouricuri. Por diversas vezes, mas sempre de forma cautelosa, tentei buscar mais informações sobre o funcionamento do ritual, mas como já era esperado, não obtive as respostas necessárias. Pergunto se os Kariri a que se refere são os Xucuru-Kariri de Palmeira dos Índios, responde-me que são os de Porto Real do Colégio, os Kariri-Xocó.

Dessa forma, sendo tal, uma informação verídica, seria possível associar essas informações adquiridas às da obra de Mota (2007). Porém, mesmo sendo o “mesmo dono”, existe uma distância gigantesca de descontinuidade e depois de recriação do universo cosmológico e ritualístico dos Wassu católicos-Ouricuri, fato que transforma

este povo e seu ritual em um acontecimento particular, mesmo que bebendo da fonte Kariri-Xocó. Pois, o composto humano-geográfico é outro, as experiências das pessoas são outras, a construção e seus significados são particulares ao povo sobre o qual estou a falar.

Os evangélicos, de uma forma geral, têm como principal base a Bíblia, com os evangélicos Wassu não seria diferente. Como se vê, suas justificativas de oposição ao Ouricuri se dãoa partir da interpretação que fazem da Bíblia. Assim também entre os Palikur evangélicos, para os quais a “Bíblia possui um poder simbólico incomensurável”, isto é retratado, também entre os Wassu, a cada vez que um evangélico fala da Bíblia como “a verdade”. Para os Palikur, “A Bíblia, por ser o meio fundamental de transmissão do conhecimento da ‘verdade”, deve ser frequentemente lida [...] Aos olhos Palikur, a Bíblia sagrada é fonte de toda e qualquer explicação” (CAPIBERIBE, 2007).

Há muitos comentários dos evangélicos sobre as práticas do Ouricuri não seren de Deus. Mas, como estavam cientes de que minha pesquisa toca justamente no ponto de conflito entre os evangélicos e católicos-Ouricuri, faziam-se cautelosos ao falar comigo sobre alguns pontos, e sempre que falavam algo que considerassem mais “forte”, pediam para não revelar a origem da fala, então,

[...] o que provém de um lado e o que provém do outro. Minha resposta é muito crítica em relação a isso, mas eu tô tentando suavizar. O que é de Deus e o que não é; como é que eu posso dizer que “fulano” tem poder de curar? Certo? Olhe, eu sei que no ritual lá em cima tanto eles

fazem pra cura, fazem rituais pra dinheiro, eles também fazem rituais pra morte, pra desgraçar com a vida das pessoas. Entendeu? Aí, a

Bíblia diz que o diabo veio para matar, roubar e destruir e ele tem por

traz dele uma legião de demônio para fazer isso. Em um dado momento,

eu enquanto evangélico, eu vejo isso, sobrenaturalmente, eu vejo.

Como se observa, os Wassu evangélicos acreditam que o ritual do Ouricuri é realizado para cura, obtenção de dinheiro, e também para desgraça e morte das pessoas, uma visão um tanto difundida entre a categoria analisada neste tópico. Alguns não indígenas habitantes da cidade acreditam que os Kariri-Xocó fazem sacrifícios com morte; insinuam até que algumas pessoas não voltam de lá. Isto denota um medo que

ajuda a manter distantes os que não compreendem aquele universo xamanístico (MOTA, 2007).

Chama a atenção também o fato de acreditarem que no Ouricuri atua uma “legião de demônios”. Este termo é muito difundido entre os evangélicos, parece que todo e qualquer ser sobrenatural que não se encaixe na trindade divina são considerados demônios e devem ser combatidos.

Para confirmar a recorrência desse pensamento, vejamos a fala de Júnior, filho do pajé:

[...] alguns evangélicos, e já ouvimos muito de alguns, né, não todos porque tem uns que não se pronunciam dizendo que aquilo não é de Deus, que é satânico, eles não se pronunciam, mas já existe muito. Inclusive esse, essa história que eu te falei lá dos alunos que tava lá na escola e que o pai dele disse que não era pra dançar o toré, porque aquilo ali era do cão, ele simplesmente falou assim pra professora dessa forma, ele disse: ‘Ói minha mãe disse que não era pra dançar o toré, porque o toré era do cão, que não é de Deus’. E vários outros casos que aconteceram por aí também o pessoal criticaram o Ouricuri, criticam as práticas tradicionais dentro da comunidade já existiu muito. E são coisas que a gente fica tentando quebrar, né, aos poucos.

Porém, é obvio que, mesmo com tais pensamentos, as coisas não são sempre ditas às claras, principalmente na frente de lideranças tribais católicas-Ouricuri. Tais pensamentos e comentários acontecem tanto quando se refere ao Ouricuri, quanto a outros aspectos da cultura, como o Toré. Mas é claro que existem, entre os evangélicos, raras exceções: aqueles que, por uma questão de função/profissão, pintam-se e entram numa roda de Toré festivo ou aqueles que possuem uma visão mais ampla da cultura indígena, mas geralmente estas poucas exceções acontecem entre os profissionais da educação.

As igrejas evangélicas, de um modo mais geral, seguem um modelo de crença na Trindade Santa e geram uma negação/oposição a tudo que foge deste padrão. O que não está contido nisto é considerado “demoníaco ou diabólico”, pensamento que entra em total contraposição com as crenças tradicionais dos povos indígenas.

Entre os Wassu, as igrejas evangélicas, com exceção de uma54, não têm particularidades ou especificidades por estarem inseridas dentro de uma Comunidade Indígena. As lideranças são compostas pelos mesmos pastores da cidade de Joaquim Gomes, porém alguns líderes locais da Assembleia afirmam que, de uns dois anos para cá, “ as coisas estão mudando mais”, “ ficando menos conservadoras”.

O pajé ou xamã ou ainda os curandeiros são as pessoas mais visadas nessas práticas religiosas tradicionais, sendo vistos como os ícones das atuações xamânicas despovoadas no meio evangélico. Personificam aspectos das identidades tradicionais indígenas, que são incompatíveis com o modelo de crença pentecostal (CAPIBERIBE, 2007, p. 220).

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