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Identidade religiosa de Dona Côca

CAPÍTULO III – Ervas, pajelança e cura: entre os Wassu católicos-Ouricuri e

3.6 Infância

3.6.2 Identidade religiosa de Dona Côca

Em um dado momento da entrevista, perguntei qual seria sua religião e a deixei livre para responder ou não.

C.: É a católica.

A.: Certo. Aí, a senhora católica...

C.: católica e tenho a nossa religião, a nossa religião que é do próprio índio.

A.: Mas além de ser católica e frequentar o Ouricuri, participar dos rituais indígenas, a senhora frequenta alguma outra igreja ou religião ou já frequentou?

C.: Eu, depois que eu tô no Ouricuri eu já frequentei já a Igreja Mundial, mas eu não participo direto, mas de vez em quando eu gosto de ir. A.: a senhora visita, né?

Pergunto se na Igreja Mundial ela recebeu algum convite para se converter efetivamente e, assim, afastar-se do Ouricuri. Responde-me dizendo que recebeu conselhos, de alguém que frenquenta o ritual do Ouricuri, para que ficasse apenas na igreja católica: “Côca, fique só pra igreja, igreja católica e o Deus da igreja, e o Deus de nós aqui, é o mesmo”. Seria o mesmo que dizer: é preferível que, se não quiser ir ao Ouricuri, que frenquente a igreja católica do que uma evangélica.

Tassinari, quando analisa a relação entre o Xamanismo e catolicismo entre os Karipuna no Amapá, remete-nos à ideia/crença de que “unindo esses dois universos há somente uma explicação que os engloba e que remete a uma divindade única e criadora: ‘toda força do mundo vem de Deus’” (TASSINARI, 1999, p. 450). Esse Deus pregado pelo Catolicismo parece ser mais condizente com as manifestações de crenças indígenas.

Insisto em perguntar sobre se os membros da denominação protestante insistem em convertê-la, se sabem sobre seu pertencimento aos rituais indígenas: “Eles não sabe que... porque eu não falo, só no meu pensamento, é só pra Deus”. Assim, nesse jogo de omissão, extrai-se dos ambientes e grupos religiosos aquilo de que se necessita. Continuamos a conversa:

A.: Quer dizer que as pessoas da Igreja Mundial não têm conhecimento que a senhora é do Ouricuri?

C.: Não, porque, não... eles sabem que eu sou índia, né, e frequento o nosso ritual, agora que eles não falam nada, só diz ‘tem que ter fé em Deus que a senhora vence tudo, quer dizer, já é uma ajuda. Eles nem sabe, eles nem sabe que a gente tem essa parte (Ouricuri).

A.: Então eles sabem que é índia mas não sabem da existência do Ouricuri?

C.: Isso! Não, não... eles só diz: ‘tenha fé em Deus que você vai vencer tudo, tudo que você tá passando’. Eu digo: ‘eu tô passando um momento muito difícil, Pastor, eu queria que o senhor orasse por mim também, os irmãos aí orasse por mim também, eu tô passando um momento difícil’, aí, ele faz uma oração um pouquinho, pede aos irmãos oração e ‘tudo vai passar, tenha fé em Deus que não tem barreira que não passe, se o inimigo quiser botar você no caixão, Deus vai tirar e vai te dar vitória’, aí aquilo foi me fortificando mais, [...].

A.: Aí, nesse caso, eles (da Igreja Mundial) não sabem que existe o Ouricuri aqui?

Temos dois pontos principais nessa fala de Dona Côca: 1. Omissão (legítima) no ambiente da Igreja Mundial sobre participação dos rituais do Ouricuri, 2. O acolhimento que ela encontrou entre “irmãos evangélicos”, o que não encontrou entre os praticantes do ritual indígena (referente à traição sofrida). Assim, convém sentir e extrair aquilo que nos faz bem nos ambientes onde circulamos, chamo isto de seleção e agremiação momentânea por conveniência e necessidade do eu. E isto não é utilizar de má fé, pelo contrário, é não se fechar em um único paradigma de contato com o sobrenatural, mas abrir os horizontes e conseguir ir além do padrão proposto localmente. É um ato de coragem sair das amarras e enxergar além.

Devo, também, esclarecer da não aprovação dos familiares mais próximos que convivem na mesma casa, sobre suas visitas à Igreja Mundial. Durante a última visita que fiz à D.Côca, a mesma me revelou que tinha parado de visitar aquela congregação.

Dito isso, vamos analisar as falas sobre seu “poder de cura”, “fama”. Contei para Dona Côca que dentre as pessoas a quem perguntei sobre alguém que curasse entre os Wassu, todas me indicaram, o seu nome, e:

C.: Isso daí tá longe. A.: Tá longe? C.: Tá longe [risos]. A.: Por quê? Não faz mais?

C.: Eu tô dizendo porque essa fama tá longe... [risos]

A.: Esses conhecimentos das plantas, além de vim de conhecimento da sua mãe, da sua avó, os encantados contribui pra isso?

C.: Ói, sobre isso vem no meu pensamento [dom de pensamento], porque tem muitos na religião que faz as penitências, mas não tem os toque das coisas, que eu tenho, por isso que eu digo: pode frequentar a igreja, pode frequentar o que quiser. Aí, muita gente tem inveja de mim por essa parte. [...] Agora, [...] graças a Deus, teve um menino, um povo aqui da outra aldeia que eu chamei pra fazer uma cura aqui. Você vê, como pai dele é meu sobrinho, aí, ele me chama de tia Côca também. Quando ele chegou aqui, eu tava mesmo aqui, tava passando mal, aí, o Carlinho foi pra dentro e disse assim: ‘Côca, o Titico tá ali passando mal’. Eu disse: ‘Ôxe, vocês vieram do Ouricuri e chega aqui e fica passando mal’, ó... pra você como as coisas andam. Aí eu digo: ‘Bota ele aqui pra dentro, chama ele aqui pra dentro’. Aí, fui lá, fui lá nos

meus negócios, peguei aquela cabaça, cantei o que veio no meu pensamento de cantar. Foi na hora que o povo de Palmeira foi chegando aqui. Aí, quando eu já vim me dar por si, eles já estavam sentado tudo ali no sofá... e o menino ficou bom. Aí, eu disse: ‘Ôxe já vieram? Já tão aqui?’. Eles disse: ‘Já’. E eu: ‘Aí vão fazer o negócio pra mim?’. Eles disse: ‘Bom, nós viemos com o pensamento numa coisa, mas cheguemos aqui e encontramos outra’ [risos]. Ai, Jesus! Mas naquela depressão do bixiguento lá, eu ficava marcando coisa, mas só que é diferente. ‘Cheguemos aqui e encontremo outra coisa, e nós estamos aqui, assim mesmo a senhora quiser...

Dona Côca tinha pedido auxílio para aos parentes Xucuru-Kariri de Palmeira dos Índios para que estes realizassem um processo de cura nela, devido a todas as turbulências que aconteceram em sua vida, mas quando os Xucuru-Kariri chegaram, encontraram Dona Côca realizando processo de cura em um jovem Wassu. Isto intriga aos Xucuru- Kariri, mas se prontificam a receber Dona Côca lá em Palmeira, para realizar o ritual desejado. Na época da entrevista Dona Côca ainda não havia ido à Palmeira.

Dona Côca se justifica que pode frequentar os grupos religiosos que quiser e mesmo assim continua tendo seus dons e realizando curas, “tem muitos na religião que faz as penitências, mas não tem os toques das coisas, que eu tenho, por isso que eu digo: pode frequentar a igreja, pode frequentar o que quiser”.

Dona Côca disse que se desfez dos santos católicos quando passou a visitar a Igreja Mundial. Na frente de sua casa tem uma casinha, tinha uma pequenina capela de um pouco mais de um metro de altura, onde ela guardava seus santos, mas afirmou também que não deixou de fazer a orações para eles, “peço que eles me protejam, ói tem meu padrinho Ciço, Santa Quitéria, a protetora daqui [Nossa Senhora da Conceição], Virgem de Guadalupe”.

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