• Nenhum resultado encontrado

Cotidiano como instância de expressão de poder

CAPÍTULO II – CAMINHOS POR ONDE ANDAMOS

2.4. Categorias de Análise

2.4.4. Cotidiano como instância de expressão de poder

O cotidiano que conserva também pode provocar irrupções; o cotidiano que aliena também está prenhe de revoluções (Almeida)

Pensar sobre o cotidiano é pensar numa instância paradoxal e contraditória, tendo em vista suas imensas possibilidades e seus grandes limites. Na concepção de cotidiano estão contidos os sintomas da estabilidade e da transformação. São as ações, condutas, expressões, reações do dia-a-dia, rotinizadas, repetidas que induzem à conservação, à estabilidade e até a uma

certa calmaria. Mas, é também, no seio dessas ações e reações, rotinizadas e repetidas, que irrompem a novidade, o inusitado, o inédito, o inesperado que transforma e revoluciona. É ainda Almeida (2000) quem nos diz que

quando irrompemos rumo ao novo e revolucionamos o velho cotidiano, logo corremos em busca da estabilidade, logo desejamos novamente a calmaria necessária para instalar o novo e, de novo, já estamos no cotidiano. Portanto, a vida autêntica não acontece fora do cotidiano, mas só a cotidianidade poderá revelá- la. As revoluções não seriam suportáveis sem a promessa pacífica do cotidiano. Isso é paradoxal e real (p. 10).

A autenticidade que caracteriza nossa identidade e nossa vida está nas “estruturas que conservam nosso modo de ser no mundo”, segundo o autor. Significa dizer que ações e reações cristalizadas e aprendidas a cada momento e a cada dia compõem e estruturam a autenticidade da nossa vida, algumas vezes de forma perceptível, sentida, analisada e refletida; outras vezes de forma automática, mecânica, irrefletida, imperceptível. A vida autêntica é, portanto, vivida na cotidianidade.

A discussão que pretendemos fazer sobre o cotidiano como uma categoria analítica baseia-se nas correntes sócio-antropológicas que se preocupam com os estudos das características da vida dos grupos na sociedade em suas micro manifestações, em suas minúsculas expressões.

Teixeira (1991) nos diz que essas micro manifestações acontecem na vida cotidiana levando as pessoas e os grupos a situações de alienação ou de transformação social. Essa linha de reflexão e discussão nos incita à evocação das contribuições de Michel de Certeau (1994) aos estudos sobre o cotidiano.

Segundo este teórico, “o cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada” (CERTEAU, 1994, p. 38). Sua afirmação nos revela, assim, que seus estudos incidiram sobre a “cultura popular”, sobre as marginalidades,

sobre as práticas cotidianas de grupos subtraídos ou desconsiderados pela “ordem econômica dominante”. Certeau utiliza metaforicamente a expressão “caça não autorizada” para mostrar que os grupos sociais constituídos pelos sujeitos ordinários, subalternos criam, através de artes e práticas cotidianas, um jeito diferente de sobreviver. Dizemos que é um jeito diferente, próprio de determinados grupos, porque não é autorizado pelos poderes instituídos. Os sujeitos simples, comuns, que estão sempre à margem dos poderes dominantes procuram, “caçam” formas de sobrevivência em seu cotidiano, que extrapolam os discursos e as práticas instituídas oficialmente, no sentido da não obediência ou não observância aos poderes dominantes. Esses sujeitos “ordinários”, “consumidores” não esperam a autorização dos sujeitos de poder para criar, inventar alternativas ousadas, inovadoras de vida. Essas alternativas são chamadas por Certeau de “táticas desviacionistas” e “astúcias cotidianas” que se sobrepõem, muitas vezes, às “estratégias”, que são as formas de agir dos poderosos, traduzidas em leis, resoluções, imposições, discursos, documentos e outros dispositivos estratégicos de dominação.

Os grupos subalternos, segundo Certeau, constituídos por sujeitos chamados de ordinários ou consumidores, inventam e fabricam o seu cotidiano, de forma tática e astuciosa, no seio da dominação. São sujeitos que, sem fugir da instância da dominação, expressam seu poder de rebeldia, levantando a “bandeira da contracultura” e inventando outras formas de ação, diferentes das perspectivas do conquistador.

Essas formas de agir vão se insinuando silenciosa e invisivelmente, constituindo

as mil práticas pelas quais os usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sócio-cultural (...). São operações quase microbianas que proliferam no seio das estruturas tecnocráticas e alteram o seu funcionamento por uma

multiplicidade de ‘táticas’ articuladas sobre os detalhes do cotidiano (CERTEAU, 1994, p. 41).

É, como vimos, a partir das operações microbianas contidas nas práticas dos sujeitos consumidores e ordinários em seu cotidiano que são abaladas as estruturas de poder dominantes no sentido da reapropriação da vida pelos sujeitos comuns. Esse é também um movimento caracterizado por atos de resistência, configurados sob uma lógica ou sob um desejo de transformação social.

Quando trazemos a discussão sobre o cotidiano para a sala de aula e para a escola é porque entendemos que a ação educacional acontece no cotidiano, materializada pelas práticas conservadoras, já cristalizadas pelas rotinas escolares e pelas práticas inovadoras e inéditas que estão acontecendo e que estão situadas num permanente devir. Por isso, é que dizemos, com o suporte de Certeau, que o cotidiano escolar está impregnado de ações e rotinas conservadoras e repetidas, mas que também carrega a possibilidade do novo, do inédito e do inusitado.

A relação pedagógica forjada na cotidianidade tem nos mostrado alunos e professores agindo e interagindo em relação ao objeto de conhecimento. Temos visto, no dia-a-dia das salas de aula, alunos e professores criando e recriando, “maneiras de fazer, de utilizar” os saberes, inventando e reinventando práticas e experiências de ensino e aprendizagem que vão além ou diferem das propostas e documentos curriculares. Professores e alunos elaboram tática e astuciosamente formas de articulação com o conhecimento que, numa perspectiva de resistência, revolucionam e produzem jeitos novos, outros caminhos de ensino e aprendizagem que desafiam os automatismos, as ações repetitivas e conservadoras que imobilizam e provocam a estagnação.

Encontramos situações no cotidiano em que os sujeitos que ensinam e aprendem se apropriam dos conhecimentos e os reproduzem acriticamente ou até nem se apropriam e os desperdiçam intensivamente. Ao mesmo tempo, encontramos aqueles que, de forma consistente e reflexiva, incorporam os saberes e produzem novos ensinamentos e novas aprendizagens, provocando revoluções em suas práticas, na direção da transformação social e política.

Estamos, na verdade, falando

de uma revolução que crie novas estruturas, a partir de novos pensamentos, daqueles pensamentos que constituem a eterna luta do ser humano por um mundo mais justo e mais fraterno. De uma revolução que ponha uma nova hierarquia de valores no cotidiano das pessoas: justiça, liberdade, busca conjunta da verdade, solidariedade, distribuição de bens materiais segundo as necessidades das pessoas. Uma revolução que faça as pessoas não aceitarem o lucro acima do bem-estar de todos. Uma revolução que faça as pessoas serem iguais, que construa uma sociedade em que não haja uns que mandem nos outros, em que as pessoas cresçam em consciência, em que a educação seja um processo de buscar instrumentos para participar na sociedade, de assumir um compromisso social, de definir e buscar a própria identidade, de transcender os próprios interesses e os do grupo ao qual as pessoas pertencem (GANDIN, 2000, p. 72).

O cotidiano escolar se apresenta, por conseguinte, como um espaço de contradições, onde se desenham condutas e práticas estratégicas e hegemônicas advindas dos poderes instituídos pelo sistema educacional. Mas é também nesse espaço que estão se delineando as táticas e astúcias daqueles que fazem a cotidianidade e as rotinas escolares numa perspectiva contra- hegemônica de construção e transformação social.

A discussão que fazemos em nossa análise sobre microfísica do poder, a partir de Foucault, sobre a disciplinarização do tempo, do espaço e do

movimento dos sujeitos na instituição escolar, permite que estabeleçamos vínculos com o pensamento de Certeau, no sentido de procurarmos perceber como os sujeitos da relação pedagógica elaboram o cotidiano escolar. Mais precisamente, através de suas “microresistências” e nas “brechas entre o dizer e o fazer”, procuramos compreender como alunos e professores (e educadores em geral) fabricam, constroem, inventam o tempo, o espaço e o movimento que compõem o seu cotidiano. É também no cerne das práticas cotidianas que vamos encontrar micro-expressões de poder, que muitas vezes aparecem como resistências, mas que trazem em si a força necessária às transformações sócio- culturais.

CAPÍTULO III - O PODER DE DISCIPLINARIZAR O