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Começando por estes últimos, entendemos ser de aceitar a opção legislativa em relação às duas primeiras alíneas. Na verdade, o que se pretende é, em alguma medida, limitar os

efeitos da insolvência na esfera jurídica de terceiros alheios à realidade falimentar329,

promovendo, dentro do possível, a continuidade de uma certa expetativa de terceiros que, a não existir este mecanismo de proteção legal, poderia ser denegada mediante o abusivo recurso ao

processo falimentar. Obviamente que o facto de existir este mecanismo não impede que, a

contrario, se possam verificar igualmente abusos; basta prefigurar a hipótese do futuro insolvente que, antecipando este cenário, não conteste uma ação de alimentos interposta por um filho maior, ao abrigo do artigo 1880º do CC, ou uma ação emergente de responsabilidade

civil330 onde lhe seja imputado um incumprimento doloso por um qualquer testa-de-ferro.

Mas, descontados os casos limites de fraude à lei, o que está basicamente em apreço é a necessidade de proteção das expetativas de terceiros ou, de outra forma, a necessidade de se possibilitar a continuidade do exercício de alguns direitos constituídos ex ante.

Assim, e em primeira linha, deparamo-nos com a exceção relativa aos créditos por

alimentos: a noção de alimentos é-nos dada pelo artigo 2003º do CC331 e são devidos às pessoas

elencadas no artigo 2009º/1 do CC332 com base no exercício do poder-dever333 de assistência.

329 Ou, na expressão de LUÍS CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência cit., em anotação ao artigo 245º, nota 2, p. 801, «a razão

de ser da manutenção dos créditos (…) reside na particular natureza dos interesses dos seus titulares…».

330 Em que se discuta a responsabilidade subjetiva, seja contratual ou extracontratual; só se pode falar de responsabilidade objetiva quando esteja

prevista, de acordo com o artigo 483º/2 do CC, nos casos especificados na lei e não depende de culpa do agente (PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado cit., vol. I, em anotação ao artigo 499º, nota 1, p. 505) pelo que, apoditicamente, não se poderá configurar o dolo pelo que falecerá o requisito estatuído na alínea b) do artigo 245º/2.

331 «1 – Por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário.

2 – Os alimentos compreendem também a instrução e educação do alimentado no caso de este ser menor.».

PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, em anotação a este artigo na nota 2, p. 573, definem os alimentos como «[a] prestação destinada a satisfazer as necessidades primárias da pessoa que não tem condições para viver e que a lei impõe à pessoa que a deva realizar, por virtude dos laços familiares que as unem». Paradoxalmente em face da definição retro transcrita, logo de seguida os AA. concluem que a obrigação de alimentos não se esgota no âmbito familiar embora reconheçam que é neste domínio que têm o âmbito máximo de aplicação.

332 «1 – Estão vinculados à prestação de alimentos, pela ordem indicada:

a) O cônjuge ou o ex-cônjuge; b) Os descendentes; c) Os ascendentes; d) Os irmãos;

Há que fazer notar que a alínea a) do número um do artigo em discussão não se refere especificadamente a alimentos, mas sim aos créditos por alimentos. Importa isto dizer que a situação de alimentos devidos deverá ter sido constituída antes da sentença de declaração de insolvência, pois se a factualidade só se colocar em discussão já com processo falimentar em curso, então há que recorrer ao disposto nos artigos 84º e 93º sendo de tal sorte inaplicável o artigo 245º.

Existe ainda uma derradeira ressalva a notar: não se pode confundir este conceito de créditos de alimentos com o conceito do sustento minimamente digno do devedor e do seu

agregado familiar a que alude o artigo 239º/3, i). Este último, como supra analisámos, é

formado pelo montante excluído da cessão da globalidade do rendimento disponível que, em via de regra, não poderá ultrapassar o montante mensal de €1.455 (três vezes o salário mínimo nacional), e com o qual o insolvente deverá prover ao seu sustento bem como o do seu agregado familiar no decurso do processo falimentar, mais concretamente durante o período de cessão de cinco anos conducente à concessão final (ou indeferimento) do benefício da exoneração do passivo restante. Já o crédito por alimentos deve ver a sua constituição reportada a um momento pretérito ao da insolvência e mesmo com a concessão da exoneração não é afetado na sua existência e/ou validade do passo que findo o período de cessão e a concessão definitiva da exoneração soçobra naturalmente a cessão do rendimento e, consequentemente, extingue-se.

Se bem que em ambos os casos possamos vislumbrar elementos genéticos comuns, quais sejam o absoluto respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana ou de responsabilização pela vivência familiar e social, certo é que para estes efeitos os conceitos em cotejo não se mesclam por qualquer forma.

Em segunda linha, também somos confrontados com a exclusão da exoneração, nos termos do artigo 245º/2, b), das indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor e que tenham sido reclamadas em tal qualidade. Parte das considerações já alinhavadas a propósito da alínea anteriormente enunciada podem aqui ser retomadas, designadamente no que tange à especial natureza dos interesses titulados pelos sujeitos ativos desses direitos e, também, no que respeita a buscar-se o seu fundamento na salvaguarda de decisões judiciais anteriormente tomadas e que punam comportamentos que devam ter

f) O padrasto e a madrasta, relativamente a enteados menores que estejam, ou estivessem no momento da morte do cônjuge, a cargo deste».

associada uma especial punição decorrente da censura devida ao particular grau de ilicitude que

esteja na génese da perpetração dos factos em análise334.

Porém, a amplitude imanente emprestada pelo legislador à redação deste preceito suscita-nos uma interrogação: sem curar de escalpelizar as diferentes conceções de responsabilidade contratual e extracontratual pela prática de facto ilícito, certo é que ambas comungam os mesmos pressupostos: a saber, o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de

causalidade entre o facto e o dano conforme estatui o artigo 483º/1 do CC335. Sem prejuízo da

evidente diferença entre os dois regimes de responsabilidade considerado que seja o evento gerador – contrato ou extracontrato – outro elemento manifestante de dissemelhança prende-se com o ónus da prova: na responsabilidade extracontratual cabe ao lesado provar a culpa do

lesante de acordo com o artigo 487º/1 do CC336, enquanto que na responsabilidade contratual o

artigo 799º/1 do CC337 determina que é ao lesante que incumbe provar a sua ausência de culpa.

Alinhadas que foram estas perfunctórias considerações sobre a diversidade de regimes aplicáveis às modalidades de responsabilidade civil contratual e extracontratual, temos de

considerar o seguinte: admitindo-se ab initio a compressão do princípio da par conditio

creditorum em face de direitos mais importantes, certo é que se consegue compreender que se exclua do âmbito da concessão da exoneração do passivo restante os créditos de jaez indemnizatória emergentes de responsabilidade extracontratual. Efetivamente, se se violam direitos na esfera jurídica de terceiros como por exemplo a ofensa à integridade física ou à propriedade de outrem, pode-se conceber que o legislador falimentar tenha pretendido proteger o(s) lesado(s) a montante por uma conduta ilícita na modalidade mais grave de culpa – o dolo – perpetrada pelo insolvente. Porém, não temos tantas certezas quando o que está na génese seja

a responsabilidade contratual338. Com efeito, não vislumbramos diferenças de tomo – para efeitos

de diferenciação creditória – entre uma violação contratual dolosa geradora de indemnização e

334 Já LUÍS M. MARTINS, Recuperação de pessoas singulares cit., p. 162 lobriga como fundamento desta exclusão da exoneração o respeito por

princípios constitucionais merecedores de especial acolhimento sem, no entanto, densificar o raciocínio.

335 «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses

alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

336 «É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa».

337 «Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua».

338 Note-se, por exemplo, que de acordo com o artigo 46º da lei falimentar italiana, os créditos decorrentes de responsabilidade contratual não

estão (felizmente) sujeitos a este regime de exclusão tal como assinala V. PANZANI, Il nuovo diritto fallimentare cit., em anotação ao artigo 142º, p. 2096.

uma qualquer outra violação contratual atinente a um elemento essencial do negócio; certo é que, no primeiro caso, o crédito não está abrangido pela exoneração do passivo restante, ao passo que, na segunda situação, já o estará; isto é: um credor que não veja satisfeito o preço do negócio feito com o devedor, se não imputar tal incumprimento a título doloso e reclamando uma indemnização terá os seus direitos afetados.

Isto é, o regime consagrado no artigo 245º/2, b), na atual redação poderá conduzir a resultados paradoxais e até injustos podendo, em sede teórica, roçar os limites da

inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade339.

Acresce que, em nota última, apenas os montantes creditórios subsumidos a esta alínea é que carecem de ser reclamados em sede do processo insolvencial. Os remanescentes, ou seja os constantes das alíneas a), c) e d), só precisam de existir sem necessidade de serem reclamados e, consequentemente, dispensam a respetiva verificação.

339 Determina o artigo 13º/1 da CRP: «Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei». A propósito da concretização

e densificação do princípio da igualdade v. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional cit., pp. 426 e ss.; e GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República cit., anotação ao artigo 13º, pp. 333 e ss.

Não levando a crítica ao limite da inconstitucionalidade, mas tecendo fortes críticas à solução encontrada pelo legislador, cfr. LUÍS CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência cit., em anotação ao artigo 245º, nota 2, p. 801.