• Nenhum resultado encontrado

Tivemos o ensejo, ao longo das últimas páginas, de analisar o procedimento do instituto da exoneração do passivo restante, designadamente da forma de acesso ao mesmo e a sua execução ao longo do período de cessão e, bem assim, de suscitar algumas questões que, com maior ou menor acuidade, ressaltam do texto legal e que se colocam no quotidiano da praxis jurídica com um tratamento assaz pragmático por parte da jurisprudência nacional.

Há, agora, que direcionar o estudo para os efeitos da exoneração do passivo restante, designadamente indagando sobre a natureza da extinção e qual o seu objeto.

Sobre esta matéria rege o artigo 245º/1: «A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.º».

Atente-se no facto de o legislador ter optado claramente por apenas submeter aos efeitos da exoneração os créditos sobre a insolvência. Significa isto que os créditos sobre a massa

insolvente253 estão excluídos do âmbito da exoneração por exclusão de elementos adicionais254, o

que se torna compreensível dada a natureza dinâmica do processo insolvencial. Com efeito, e

“esbarrando” no artigo 51º/1255, constatamos que, sem um mecanismo desta índole, e a título

253 «A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em

contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo»: artigo 46º/1.

254 Como, de resto, assinala CATARINA SERRA, O regime português cit., p. 166.

255 «1 - Salvo preceito expresso em contrário, são dívidas da massa insolvente, além de outras como tal qualificadas neste Código:

a) As custas do processo de insolvência;

b) As remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão de credores; c) As dívidas emergentes dos atos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente;

d) As dívidas resultantes da atuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções;

e) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não possa ser recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida em que se reporte a período anterior à declaração de insolvência;

f) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte anteriormente à declaração de insolvência ou em que se reporte a período anterior a essa declaração;

g) Qualquer dívida resultante de contrato que tenha por objeto uma prestação duradoura, na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte e cujo cumprimento tenha sido exigido pelo administrador judicial provisório;

h) As dívidas constituídas por atos praticados pelo administrador judicial provisório no exercício dos seus poderes; i) As dívidas que tenham por fonte o enriquecimento sem causa da massa insolvente;

de mero exemplo, dificilmente se encontraria um administrador de insolvência disposto a exercer tais funções, sobretudo se se prefigurasse a hipótese de os seus honorários serem afetados por uma exoneração do passivo restante ou de ocorrer um incumprimento que se revelasse

demasiado oneroso para a própria massa insolvente256. Poderemos, como é óbvio, discutir a

latitude das dívidas diretamente imputáveis à massa insolvente (e assim excluídas do âmbito da exoneração), mas temos para nós que a solução legal encontrada para o artigo 51º acaba por constituir a forma adequada para que a liquidação do património do devedor ocorra com a maior

celeridade possível257.

Sem embargo do ora enunciado, a principal questão a dilucidar na interpretação deste artigo prende-se com o facto de sabermos se o principal efeito da exoneração do passivo restante – como a lei estatui – é uma «extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida» ou, diversamente, se estamos em face de uma extinção das obrigações do devedor para com o(s) seu(s) credore(s).

Importa, assim, numa primeira linha, sedimentar o conceito de obrigação. Esta é definida pelo artigo 397º do CC como sendo «o vínculo jurídico pelo qual uma pessoa fica

adstrita para com outra à realização de uma prestação», assinalando a doutrina258 a

impossibilidade do objeto obrigacional ser a própria pessoa do devedor. É também ensinado que

a obrigação constitui a face passiva de uma relação jurídica com determinado conteúdo259, sendo

que, na ótica do credor, esta comportará um direito de crédito260 e na perspetiva do devedor

existirá um dever de prestar, sendo estes dois conceitos necessariamente recíprocos261.

256 Imagine-se um contrato de empreitada em que ao adquirente falte ainda liquidar 80% do valor total do imóvel a ser construído pela massa

insolvente. Naturalmente que esta tem de dispor de liquidez para pagar aos trabalhadores que erigirão o imóvel e também para pagar os materiais incorporados em obra para, a final, o adquirente cumprir a sua prestação contratual pagando o preço e, por essa via, arrecadando uma maior fatia financeira que permita ressarcir os credores.

257 Parecendo discordar criticando veladamente a disparidade de tratamento entre os credores da insolvência e os credores da massa insolvente,

CATARINA SERRA, O regime português cit., p. 166.

258 PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado cit., vol. I, em anotação ao artigo 397º, nota 3, p. 348.

259 GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, 7ª ed. (reimpressão), p.11. Também propugnando idêntico conceito,

ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações cit., p. 65.

260 Direito de crédito esse incidente sobre a prestação a obter por parte do devedor não recaindo diretamente sobre o património deste, tal como

afirmam inter alia GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações cit., p. 16 e p. 17, nota 1, ou LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações – Introdução. Constituição das obrigações, vol. I, Almedina, Coimbra, 2010, 9ª ed., p. 92. Como ensinam os AA. de per si quando se excute o património do devedor essa é uma prerrogativa estatal coercitiva decorrente da inadimplência verificada pelo que a relação jurídica passa a ser trilateral, angulada pelo Estado via Tribunais, pelo que a relação do credor com o património do devedor continua a ser existente.