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INTRODUÇÃO 1 1 CRÍTICA DE TRADUÇÃO: OS TRADUTORES AINDA TRAEM?

1. CRÍTICA DE TRADUÇÃO: OS TRADUTORES AINDA TRAEM?

“Traduttore, traditore”, famigerada expressão italiana, cuja origem conceitual se perde na longa noite dos tempos babélicos, quando a tradução – ou melhor, a interpretação, pois oral, quando nem ainda havia escritura – tornou-se imprescindível para a sobrevivência, tanto econômica quanto cultural, dos povos (bíblicos) ilhados no meio das linguagens alheias incompreensíveis.

Os Estudos da Tradução (Translation Studies), ou Tradutologia8, adotaram referências bíblicas para construir representações conceituais do ato de traduzir, como a Torre de Babel, à qual pode se acrescentar o Pecado original como metáfora da traição ou da deslealdade perpetrada pelo tradutor (quem traduz trai?) contra um discurso (escrito ou oral) original idealizado. Vale notar que o filósofo alemão, Gottfried Leibniz, já relacionou a tradução (uma forma dela9) ao pecado adâmico quando desenvolveu uma doutrina, “A tradução10 das almas”, em Die Theodicee [Teodiceia] (1710). Nesta obra ensaística, ele tenta entender a origem da alma e as razões da sua constante contaminação pelo mal, ou seja, como “a alma pôde ser infectada pelo pecado original, que é a raiz dos pecados atuais, sem que tenha havido injustiça por parte de Deus ao expô-la a tal” (LEIBNIZ apud LALANDE, 1999, p. 1149).

A concepção do pecado original é imanente ao ser humano, para Leibniz, é uma escolha de Deus, pois este não quis o mal nem impediu a sua existência, para oferecer ao homem a oportunidade de criar um mundo11 melhor para si mesmo. Assim, acrescenta ainda o filósofo alemão, para explicar essa imperfeição construtiva que a alma das crianças (os descendentes) é “engendrada (per traducem) da alma ou das almas daqueles cujo corpo é engendrado [os ascendentes]”. (LEIBNIZ apud LALANDE, 1999, p. 1149)

Destaca-se, aqui, que essa forma de traduzir aplica-se à acepção de “transferência”, de “passagem” de um lugar para outro, de uma alma para outra. A expressão “per traducem12“, aparece em latim no texto original em alemão e foi traduzida13, com justeza e em contexto, por “engendrada”, pois o substantivo latino “traductio (transductio)” não possui o sentido de “tradução” de um texto, de uma palavra como hoje. O termo latino para “tradução” é

8 O teórico da tradução francês Jean-René Ladmiral (LADMIRAL, 1994, p. VII) contribuiu para a divulgação deste termo, com o teórico canadense Brian Harris (HARRIS, 1973).

9 TRADUCIANISMO. “Doutrina segundo a qual a alma dos filhos provém da alma dos pais assim como um ramo (tradux) provém da árvore. [...] possibilidade de explicar a transmissão do pecado original. Era aceita por Leibniz (Theod., I, §86).” (ABBAGNANO, 1998, p. 968)

10 No texto original em alemão, Leibniz usa o substantivo “Traduktion” e não “Übersetzung”. 11 Leibniz usa frequentemente a expressão de “mundos possíveis”.

12 „Die zweite Meinung ist die der Traduktion, nach der die kindliche Seele per Traducem von der Seele oder von den Seelen derer hervorgebracht wäre, die den Körper erzeugt hätten.“ (LEIBNIZ, 1996, p. 144)

“translatio (tralatio)”. Berman (1988, p. 29, tradução minha), em seu artigo “De la translation à la traduction” [Da translação à tradução] descreve a evolução etimológica do termo de translação, de uso comum na Idade Média, para o termo de tradução: “a translatio era antes de mais nada um movimento de transferência14“. Assim, o autor distingue a translação, que enfatiza esse movimento anônimo, da tradução, que valoriza a “energia ativa” dessa transferência, realizada por um agente que perde seu anonimato.

A herança do pecado de Adão15, parte inerente e “infectada” da alma humana, desmistifica os ideais de perfeição ab ovo do conceito de origem quando se referem, neste estudo, aos textos de partida a serem vertidos. O ato de traduzir carrega consigo a noção de traição, pois quem traduz trai, quando desrespeita os princípios éticos universais da tradução, como deturpar cientemente a mensagem de partida por determinados motivos16 ou apresentar lacunas no conhecimento da língua-cultura de partida ou de chegada, ou em ambas.

No entanto, quem traduz transmite, de forma ética, e ensina, conforme as acepções do substantivo latim “traditor” (GOELZER, 2001), que significa, de fato, “traidor”, mas também “aquele que transmite (uma ciência), mestre, professor”, sentido que se perdeu em italiano e nas línguas românicas nas quais “traditore” é apenas um traiçoeiro, aquele que é “perigoso sem o parecer” (HOUAISS et al., 2007), apesar de todas elas fazerem referência à mesma origem latina.

A doutrina da “tradução das almas”de Leibniz, ou seja, a “transferência” das almas, permite, no âmbito deste estudo, evidenciar a dessacralização do texto original que perdeu sua auréola, sua “aura” – devido a sua “infecção” imanente, fonte potencial das futuras traições tradutológicas – e considerar a perfectibilidade de um texto “engendrado” (per traducem) numa outra língua, papel assumido pelo próprio tradutor e pelo crítico, mais especificamente aqui, de tradução. Como aquele, este cumpre uma tarefa do barqueiro do Hades (Caronte), de “passeur” cultural, imprescindível para a recepção das obras na cultura da chegada.

1.1. TRADUZIR PROCURANDO NÃO TRAIR: OS IMPERATIVOS DA PASSAGEM

O título desse item, “Traduzir procurando não trair”, refere-se a uma crônica escrita por Clarice Lispector e publicada na revista Jóia, em maio de 1968. Essa breve reflexão (935 palavras) sobre a arte de traduzir e, por espelhamento, da arte de ser traduzido representa uma fonte pertinente para o presente estudo a fim de delinear o perfil tradutológico implícito

14 “la translatio était avant tout un mouvement de transfert”. (BERMAN, 1988, p. 29) 15 A relação com o original e metáfora da traição: desvio / erro.

16 Ideológicos, religiosos, para satisfazer o horizonte de expectativas da comunidade receptora (tradução cultural).

da própria autora, ou seja, o que significaria para ela escrever em tradução e, por conseguinte, esboçar seu possível retrato de crítica de tradução, para entender como ela delineava seu percurso para cumprir o ato, mais sofrido, de que ler em tradução, objeto do Capítulo 4, p. 281.

Esse artigo ou “coluna”17, redigido no estilo de relato de experiência, divide-se nitidamente em três momentos significativos do ponto de vista crítico. O primeiro, o mais longo (58% do texto), diz respeito à experiência de tradução dramatúrgica da própria autora, num clima peculiar, isto é, em dupla, com sua amiga, a tradutora (do inglês para português), Tati de Moraes18.

O segundo momento se refere brevemente (7% do texto) à tradução literária de gênero policial de Agatha Christie e, no último (35% do texto), a autora comenta a tradução de seus próprios textos realizados por outros tradutores, como o norte-americano, Gregory Rabassa: a escritora-tradutora traduzida.

Clarice citou aqui suas referências de forma lacunar, deixando a seus leitores – conhecedores ou não de seu percurso artístico – o “lazer” de preencher por si mesmos essas lacunas ou elipses narrativas. Assim, a relação entre as obras, os autores e os tradutores citados pode ser sintetizada na tabela seguinte, na base de Clarice em Cena: As relações entre Clarice Lispector e o teatro (GOMES, 2007).

17 Segundo as próprias palavras de Lispector (2005, p. 117).

Tabela 1.1: Relação das traduções citadas em “Traduzir procurando não trair”

Gênero LP LC Autor Título Tradutor

Teatro EN BR Lilian Hellman

[EN] The little foxes Clarice Lispector; Tati de Moraes. [BR] Os corruptos19

Teatro EN* BR Anton

Tchecov

[EN] The Seagull (1895) Clarice Lispector; Tati de Moraes. [BR] A gaivota

Teatro EN** BR Henrik Ibsen [EN] Hedda Gabler (1890) [BR] Hedda Gabler (1965) Clarice Lispector; Tati de Moraes. Ficção

policial EN BR

Agatha Christie

[EN] Three Blind Mice Clarice Lispector [BR] Três ratinhos cegos (1967)

Ficção BR DE Lispector Clarice [BR] A maçã no escuro [DE] Der apfel im dunkeln (1964) Curt Meyer-Clason Ficção BR EN Lispector Clarice [BR] A maçã no escuro Gregory Rabassa

[EN] The apple in the dark (1967) Fonte: minha autoria, adaptado de Gomes (2007)

(*)Tradução indireta do russo (Чайка); (**) tradução indireta do norueguês (Hedda Gabler).

1.2. A TRADUÇÃO DRAMATÚRGICA: O DISCURSO DA CUMPLICIDADE

Clarice Lispector destaca logo nas palavras introdutoras desta coluna a importância do trabalho de tradução em dupla com sua amiga Tati de Moraes. A correspondência, na década de 1950, entre Rubem Braga20 e Clarice (quando ainda morava em Washington), demonstra certa amizade e cumplicidade, de longa data, entre Tati e Clarice: “Tati vai bem”, em duas cartas, em 25 de maio de 1953 e em quatro de março de 1957 (LISPECTOR; MONTERO, 2002, p. 197 e p. 220). Em A descoberta do mundo, na crônica “Propaganda de graça” (15/12/1973), Clarice, já de volta definitiva para o Rio de Janeiro, menciona uma troca de máquina de escrever com a Tati: “Troquei-a [uma Remington portátil barulhenta] com Tati de Morais por uma Olivetti que é uma beleza em matéria de som: abafado, leve, discreto”. (LISPECTOR, 1999b, p. 475).

Pela idade e pela experiência como tradutora de inglês, Tati de Moraes é apresentada pela própria Clarice como a líder na tomada de decisões tradutórias: “Fizemos a tradução com o maior prazer, se bem que de início eu tivesse que ser fustigada por Tati, que é a minha inexorável feitora em vários terrenos, de trabalho ou não”. (LISPECTOR, 2005, p. 115, grifos meus). Quando os profissionais, que formam uma dupla, se conhecem bem, esse modo de tradução apresenta várias vantagens, pois, além de ser um trabalho baseado numa

19 “O nome das peças foi descoberto, pois descobri o programa de Os corruptos, título que recebeu o texto The

little foxes, de Lillian Hellman, encenada pela Companhia Tônia Carrero. A atriz protagonizou a encenação, é citada na crônica e revelou, em entrevista, que a pela de Tchecov traduzida era A gaivota.” (GOMES, 2007, p. 75).

20 Rubem Braga (1913-1990), amigo íntimo de Clarice, que, do ponto de vista literário, é considerado por ela o “inventor da crônica”, em “Ser cronista” (22/06/1968), em A descoberta do Mundo: “Na verdade eu deveria conversar a respeito com Rubem Braga, que foi o inventor da crônica.” (LISPECTOR, 1999b, p. 112)

frutífera troca sinérgica entre as duas tradutoras a respeito do mesmo texto a ser traduzido. Ele reforça um modelo de pesquisa de tipo empírico que se iniciou e se formalizou, uma década depois, na área dos Estudos da Tradução, a partir década de 80, conhecido pelo nome de Think-aloud Protocols (TAP) [Protocolos de reflexão verbalizada ou Protocolos verbais]. 1.2.1. Tati de Moraes e Clarice Lispector: uma aplicação de Think-aloud Protocols

Os Think-aloud Protocols21 (doravante TAPs) enquadram-se nos moldes de tradução baseados nos aspectos cognitivos, isto é, no processo “mental” tradutório, objetivando destacar as estratégias empregadas pelos tradutores para resolver seus problemas tradutológicos de ordem “local” (microtextual) ou “global” (macrotextual), ou seja, analisar o que aconteceria na “caixa preta” do tradutor, quer profissional, quer aprendiz. Os informantes vocalizam (Think-aloud) suas respectivas reflexões e emoções que são registradas, em tempo real, na forma de diversos procedimentos, em geral por meio de gravações, filmagens, transcrições ou questionários ad hoc (Protocols). No entanto, nesse contexto acadêmico, a vocalização solitária é artificial, apresenta-se na forma de um monólogo interior verbalizado – por vezes ficcionalizado pelo próprio informante, logo experimentalmente falsificável. Com efeito, o tradutor-informante trabalhava sozinho durante a fase de experimentação – aliás, como acontece, frequentemente, na realidade profissional – não estabelecia esse diálogo construtivo com um par (ou tradutor), a exemplo do caso de Clarice e Tati.

Apesar de sua nítida pertinência, Guidère (2008, p. 64) lembra que a maior crítica a esse procedimento (TAP) diz respeito à mediação dos pensamentos do tradutor para o pesquisador, por meio da linguagem ou da análise de comportamentos dos informantes que também são “filtrados”, conscientemente ou não, na fase de interpretação (tradução intersemiótica) do próprio pesquisador.

Com efeito, as interpretações de resultados de pesquisa oriundos de observações de atividades ou reações humanas apresentam sempre dificuldades “hermenêuticas” para a elaboração de conclusões relevantes, devido: (i) à postura do informante observado (nervosismo, desconforto, perfeccionismo, simulação), até se for previamente preparado; (ii) à influência ou interferência, voluntária ou não, do pesquisador-observador durante o período do experimento. Ademais, Guidère (2008, p. 65) enfatiza a importância da abordagem cognitiva, como os Think-aloud Protocols, para a teoria da tradução apresenta interesses a ser

21Os Think-aloud Protocols, mais conhecidos no âmbito dos Estudos de Tradução, são também aplicados em outras áreas, como no Web Design, para avaliar a usuabilidade (usability studies) de um website (OLMSTED- HAWALA et al., 2010).

desenvolvidos, porém tem dificuldades para “fornecer informações práticas que podem ser úteis para o tradutor no exercício diário de sua profissão.22(GUIDÈRE, 2008, p. 65, tradução minha).

Com o intuito de superar essas críticas, percebe-se no Brasil23 a manifestação de interesses científicos renovados no uso da técnica metodológica de triangulação (ALVES, 2003a). Essa técnica baseia-se, conforme Alves (2003b), nos protocolos verbais (TAPs) – verbalização gravada ou filmada – associados ao programa de computador Translog, que, por sua vez, memoriza os toques do teclado (Key strokes) durante o processo redacional da tradução e, por fim, o uso de corpora especializados de pequena dimensão ou, segundo Perrotti-Garcia (2005), corpora customizados, elaborados a partir de fontes selecionadas e confiáveis. Outros estudos de tradução, na base cognitiva e discursiva, foram desenvolvidos e publicados no Brasil, a fim de investigar o processo tradutório para identificar as competências do tradutor, como a coletânea Competência em tradução: cognição e discurso (ALVES; MAGALHÃES; PAGANO, 2005).

Dando continuidade às discussões teóricas aplicadas ao teatro, destaquei a importância do trabalho colaborativo (em dupla) entre Clarice Lispector e Tati de Moraes, pois representa, a meu ver, conforme o próprio relato de Clarice, uma estratégia tradutória pertinente para a tradução de textos dramatúrgicos e, por conseguinte, fator de maior objetividade para a aplicação dos protocolos verbais no âmbito da pesquisa.

Recentemente, foram apresentados em colóquio internacional24, em Paris, resultados de pesquisas realizadas na Polônia na área da tradução colaborativa (TOMASZKIEWICZ, 2013) que corroboram as precursoras intuições tradutórias de Clarice e Tati, na década de 60. Com efeito, conforme apresentado acima, os TAPs eram inicialmente aplicados de forma individualizada para “facilitar”, do ponto de vista epistemológico e cognitivo, a observação feita pelo pesquisador. Tomaszkiewicz desenvolveu, em 2012, sua pesquisa, por sua vez, com duplas de tradutores profissionais (não mais com aprendiz, ou seja, alunos de cursos de graduação de tradução). De fato, ela percebeu que se estabelece um diálogo natural e real para tomar decisões em conjunto, na base de uma determinação prévia dos papéis na interação entre os tradutores, como no caso de Clarice que era “subordinada” a Tati: “se bem que de início eu [Clarice] tivesse que ser fustigada por Tati” (LISPECTOR, 2005, p. 115). De

22 « fournir des indications pratiques pouvant être utiles au traducteur dans l’exercice quotidien de son métier. » (GUIDÈRE, 2008, p. 65)

23 Por exemplo, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com o grupo do professor Fábio Alves. 24 COLÓQUIO TRALOGY, 2. Trouver le sens : où sont nos manques et nos besoins respectifs ? [Encontrar o sentido: onde estão nossas lacunas e nossas necessidades respectivas?], Paris: CNRS - Centre national de la

fato, o consenso, lembra Tomaszkiewicz, estabelece-se com mais facilidade entre os profissionais do que entre os principiantes ou inexperientes.

Ademais, esse procedimento (os TAPs em dupla) favorece a descoberta de estratégias e de problemas imperceptíveis sem a vocalização (do pensamento) dialogada. Uma das principais estratégias destacada é a desverbalização, processo cognitivo universal que permite apreender o sentido do texto de partida para, em seguida, procurar e encontrar equivalentes semânticos na língua de chegada. Esse processo também é, a meu ver, pertinente para a tradução de textos dramatúrgicos.

Esse conceito de desverbalização foi especificamente desenvolvido na Teoria interpretativa da tradução, para o curso de intérpretes25 de conferências que lidam com a mensagem verbalizada pelo orador, a fim de captar, não somente, o conteúdo explícito, mas também, seu teor implícito, como no caso da tradução para o teatro. Lederer (1994, p. 23) ilustra a desverbalização como uma transformação de “dados sensoriais” oralizados, após a “dissipação sonora”, em conhecimento “despido de sua forma sensível”, ou seja, a busca do sentido verbal e não verbal (extralinguístico). Assim, segundo a definição seguinte:

A desverbalização é o estágio no qual se encontra o processo de tradução entre a compreensão de um texto e sua reexpressão em outro idioma. Trata-se de uma libertação dos signos linguísticos concomitante à apreensão de um sentido cognitivo e afetivo.26 (LEDERER, 1994, p. 213, tradução minha)

Nesta perspectiva de apreensão do sentido, como no caso da Clarice-tradutora, Tomaszkiewicz (2013) destacou nítida diferença entre o tradutor principiante (ou aprendiz) e o profissional. O primeiro não se preocupa em compreender o sentido geral da totalidade do texto, ele tem uma visão de tipo atomista, enquanto o segundo dedica um período de tempo significativo durante essa fase inicial de compreensão, para ter uma visão holística do TP e para estruturar seu projeto de tradução.

Com efeito, ele sabe que não se chega ao entendimento do texto de partida por meio da tradução27, ao contrário da crença geralmente compartilhada por esses iniciantes- informantes, que, por sua vez, traduzem para conseguir entender um texto em língua estrangeira da qual não possuem ainda domínio suficiente para traduzir de maneira satisfatória.

25 Danica Seleskovitch e Marianne Lederer, intérpretes profissionais e professoras na École Supérieure

d’Interprètes et de Traducteurs [Escola Superior de Intérpretes e Tradutores] (ESIT) de Paris.

26 « La déverbalisation est le stade que connaît le processus de la traduction entre la compréhension d’un texte

et sa réexpression dans une autre langue. Il s’agit d’un affranchissement des signes linguistiques concomitant à la saisie d’un sens cognitif et affectif. » (LEDERER, 1994, p. 213)

27 No entanto, a tradução é uma ferramenta pedagógica que volta a ser usada nos cursos de ensino de línguas estrangeiras.

Percebeu-se que na fase intermediária entre a compreensão e a reexpressão (ou redação), várias microatividades se estabelecem entre as duplas de tradutores profissionais observadas, que dominam mais a metalinguagem para definir as características do texto. Assim, a pesquisadora polonesa evidenciou as microatividades de “conscientização do sentido”, como no modelo definido na Teoria interpretativa da tradução, devido ao fenômeno de verbalização real e natural entre os informantes. Ademais, a exemplo do caso de Clarice e Tati, o experimento acadêmico permitiu evidenciar também a presença de “julgamentos metadiscursivos” sobre a natureza do texto e/ou a de determinadas expressões que exigem mais atenção.

Enfim, a “procura das equivalências” representa uma microatividade importante, como no processo de desverbalização, que se manifesta, não pela falta de compreensão em si, mas, ao contrário, pela inexistência de um conceito do texto de partida na cultura de chegada. Essa questão é, até hoje, uma das mais complexas da área dos Estudos da Tradução, pois a escolha de uma equivalência elíptica ou lacunar tem o intuito de preencher um espaço conceitual “vazio” na cultura-alvo, pois a época ou a cosmovisão de seu povo é diferente, pode gerar associações “abusivas” ou situações “absurdas”.

1.2.2. O ator como cotradutor adjuvante: um passo imprescindível na tradução dramatúrgica?

No seu comentário sobre a tradução da primeira peça, a de Hellman, Lispector dirige- se diretamente, de forma vocativa, à atriz que ia “levar” essa peça: “Mas Tônia [Carrero], você não imagina o trabalho de minúcias que dá traduzir uma peça, ou melhor, você, que andou nos dando sugestões inteligentes, imagina sim”. (LISPECTOR, 2005, p. 115, grifos meus). É interessante destacar essa irrupção dialógica (discurso direto) no fluxo narrativo da crônica, logo no início, pois isso dá a impressão ao leitor de que está presenciando uma reflexão sobre a arte de traduzir para o teatro, dirigida a uma terceira pessoa, ou seja, à atriz que vai encenar a peça. Tônia Carrero cumpriu neste processo, conforme Clarice, “dando sugestões inteligentes”, o papel de contribuidor especializado, que é um tipo de assessoria frequentemente solicitada na tradução pragmática, quer durante o processo como no caso da atriz, quer na fase de revisão técnica, durante a qual o especialista não precisa conhecer a língua de partida, mas possui um domínio da língua de chegada, no registro específico, aqui, o texto dramatúrgico a ser encenado.

1.2.3. O trabalho sobre as minúcias: do achatamento do texto ao relevo da encenação Percebe-se que a tradução desse gênero (Reiss, 2002) exige do tradutor ampla dedicação aos pormenores na busca da verossimilhança dos efeitos produzidos, acentuada pela exigência da encenação na língua de chegada, o que Clarice (2005, p. 115) chama de “o trabalho de minúcias”. Esse conceito leva a analisar o papel dos limites da pormenorização no ato tradutório e independe do gênero textual, pois é uma atitude inerente ao tradutor associada à sua tendência ao perfeccionismo, mais ou menos aguçada ou, exigência externa, a do “contratante” ou “cliente” (aquele que solicitou o serviço de tradução) ou dos “usuários finais” do texto traduzido (aqui, para Clarice, os atores e o diretor). Pela experiência aqui retratada as “sugestões inteligentes” da atriz representam para as tradutoras (Clarice e Tati) um trabalho sobre as minúcias devidamente controladas, ou seja, nitidamente definidas e avalizadas por um usuário final, no seu horizonte de expectativa. Essa finalidade aprovada encerra a tomada de decisões e a constante busca pela perfeição, oferecendo, de certo modo, uma base para elaborar um projeto de tradução consistente.

1.2.4. O risco de não parar nunca

Clarice manifesta sua angustia diante do caráter infinito do processo tradutório, quer dizer infinito lógico, introduzida pelo advérbio numeral “Primeiro”, que nunca será seguido de um “Segundo” ou de um “Em seguida”, mais sim, um pouco depois, na crônica, aparece

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