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A QUALIDADE EM PERIGO: A CRÍTICA DAS TRADUÇÕES COMO SALVA VIDAS DO TEXTO TRADUZIDO

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1. Não há direito de punir Há apenas poder de punir O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte que ele, a guerra, grande crime, não é

2.1. A QUALIDADE EM PERIGO: A CRÍTICA DAS TRADUÇÕES COMO SALVA VIDAS DO TEXTO TRADUZIDO

2.1.1. A crítica das traduções segundo Reiss: considerações liminares

As ideias defendidas pela estudiosa alemã Katharina Reiss, na sua obra intitulada A crítica das traduções: suas possibilidades e seus limites cumprem, neste trabalho, o papel de eixo orientador para introduzir uma das primeiras publicações acadêmicas que analisa, de maneira sistematizada a questão da tradução “pragmática” e da sua “possível” crítica tanto do ponto de

123 « Relatif à la manière de rendre le texte de départ dans une forme qui est la plus naturelle possible pour le

lecteur du texte d’arrivée en fonction des usages et conventions de la langue et de la culture d’arrivée. »

[Relativo ao modo de restituir o texto de partida numa forma que é a mais natural possível para o leitor do texto de chegada de acordo com os usos e convenções da língua e cultura de chegada] (DELISLE et al., 1999, p. 17, tradução minha)

124 « Relatif à la manière de rendre le texte de départ dans une forme qui en reproduit le plus possible la lettre et

qui importe dans le texte traduit un nombre variable d’éléments linguistiques, culturels et civilisationnels propres au texte de départ. » [Relativo ao modo de restituir o texto de partida numa forma que reproduz o mais possível a letra e que importa no texto traduzido um número variável de elementos linguísticos, culturais e civilizacionais peculiares ao texto de partida.] (DELISLE et al., 1999, p. 76, tradução minha)

vista do texto de partida125 (doravante TP), quanto do ponto de vista do texto de chegada126 (doravante TC).

Com efeito, segundo a apresentação introdutória dessa obra feita pela tradutora francesa Catherine Bocquet (2002, p. 8), a originalidade desse trabalho reside na vontade de romper com o binarismo tipológico, porém ainda vigente hoje em dia em determinadas esferas, entre os textos de tipo “literários” e os de tipo “técnico”, na base da experiência da própria autora. Esse binarismo também existe entre a crítica literária e a crítica das traduções, que, numa perspectiva literária comparatista, poderia ser complementar, conforme o demonstra Berman (1995) no seu conceito de projeto de crítica produtiva.

Katharina Reiss, filóloga de formação, especializou-se nos estudos da tradução e da interpretação, o que confere à sua abordagem caráter duplo e complementar, sendo, de um lado, uma teórica internacionalmente reconhecida e, de outro lado, uma intérprete e tradutora “universitária” do espanhol (de José Ortega y Gasset, entre outros) para o alemão.

2.1.1.1. Reiss e a teoria do Skopos: foco no texto de chegada

Reiss criou, no final da década de 70, com seu conterrâneo, o linguista e teórico da tradução, Hans-Josef Vermeer, a famosa Teoria do Skopos (Skopostheorie) (1984), definida como teoria “acional” ou “funcional” da tradução. O termo “skopos” significa “objetivo”, “finalidade”, portanto o processo tradutório será guiado pelas hipotéticas necessidades e expectativas dos leitores na língua de chegada (LC). Nessa abordagem, o tradutor considera, no seu ato de traduzir, o “horizonte de expectativas” dos receptores (seja definido por ele mesmo, seja por seu cliente ou contratante).

Assim, o TP concebe-se doravante como “oferta de informação” (Informationsangebot), pois o TC pode assumir funções pragmáticas diferentes na cultura alvo, como a vulgarização de um livro cientifico (TP) para leigos (TC) ou um romance para adulto (TP) traduzido e adaptado para um público infantil (TC). A tradução da novela policial de Agatha Christie, (pré)analisada anteriormente no Capítulo 1 (p. 37), é exemplo de aplicação da teoria do skopos, na medida em que, Clarice Lispector realizou, a pedido de seu contratante, as Seleções, uma “tradução-condensação” claramente definida pela própria editora e explícitamente declarada ao leitor, na página título em português. Esta palavra

125 « Texte à partir duquel se fait la traduction » [Texto a partir do qual se faz a tradução] (DELISLE et al., 1999, p. 81, tradução minha)

126 « Texte qui résulte de l’activité de traduction » [Texto que resulta da atividade de tradução] (DELISLE et al., 1999, p. 81, tradução minha, grifos do original)

“condensação” é um tipo de projeto de tradução explícito que o crítico deve considerar para estabelecer seus critérios de avaliação.

Apesar das críticas à Teoria do Skopos (NEWMARK, 1991; CHESTERMAN, 1994), ela mantém, até hoje, sua pertinência conceptual na área dos estudos de tradução. A contribuição de Reiss, nesta teoria, destaca-se pela adoção, por Vermeer, de sua tipologia dos TP (informativos, expressivos, incitativos e scripto-sonoros) – para orientar o tradutor nas suas tomadas de decisões. As recentes traduções de Reiss (1971), depois de quase 30 anos após sua primeira publicação, para as línguas inglesa (2000) e francesa (2002) comprovam a renovação do interesse para essa abordagem tradutória.

Conforme a apresentação de Bocquet (BOCQUET, 2002, p. 8), Reiss (1971) define sua classificação textual, na base dos trabalhos do psicolinguista alemão Karl Bühler (1879- 1963), como sua Sprachtheorie [Teoria da linguagem] (1934), na qual ele definiu, por sua vez, os três tipos de funções essências da linguagem – (1) Darstellung [informação, representação], (2) Ausdruck [expressão], (3) Appell [incitação, chamada] – baseando-se no princípio teórico platônico que considera a língua instrumento de comunicação. Da mesma forma que para a obra de Reiss, existe na França127, um interesse para o linguista alemão, quase oitenta anos após a publicação de sua obra principal, que antecedeu e influenciou as teorias da enunciação de Jakobson.

2.1.1.2. Um princípio de base: A crítica das traduções fundamentada

Antes de tratar dos aspectos de linguística textual que caracterizam a essência de seu primeiro trabalho, Reiss (2002, p. 11-12) destaca, logo no prefácio, a importância de desenvolver trabalhos e pesquisas para elaborar uma crítica das traduções fundamentada (CTF), pois constatou, já na década de 70, que cada vez mais se publicavam traduções de qualidade questionável.

Portanto, uma crítica das traduções objetiva, baseada numa metodologia pertinente e maleável, poderia gerar intrinsecamente uma exigência maior do próprio mercado, exigência salutar, para melhorar esse grau qualitativo e para, dessa forma, contribuir implicitamente para a formação não somente dos tradutores, mas também dos críticos. Ademais, para Reiss

127 Em 2005, Persyn-Vialard publicou, La linguistique de Karl Bühler [A linguística de Karl Bühler, sem tradução no Brasil] que analisa de forma crítica e reatualizada a maioria dos textos do autor. Em 2009, o filósofo Jacques Bouveresse organizou no Collège de France em Paris, um colóquio internacional sobre o psicólogo e linguista: “Karl Bühler, penseur du langage” [Karl Bühler, pensador da linguagem].

(2002, p. 11, tradução minha), “com maior número de críticas e melhor fundamentação poderia se gerar uma demanda de melhores traduções”128.

Esse processo nitidamente sinergético, para saber aceitá-lo, demonstra o papel significativo da crítica das traduções fundamentada para a formação acadêmica dos tradutores. Mas também, devido à qualidade da crítica gera implicitamente uma melhora do produto final, despertando uma conscientização no tradutor “prático” que, doravante, sabe que todo trabalho publicado pode ser avaliado com maior frequência e com métodos apropriados, afastando-se paulatinamente do subjetivismo inerente à crítica. Essa abordagem reforça a deontologia da profissão, pois a crítica não seria mais percebida como punição, mas como feedback (comparável ao do revisor profissional, Horguelin e Pharand (2009)), ou seja, uma informação que vai se agregar objetiva e positivamente à prática tradutória.

Com efeito, se, de um lado, há que se preocupar com os defeitos encontrados nos textos traduzidos, cujo intuito, numa fase ulterior, é consertá-los, há, de outro lado, que se preocupar com os procedimentos críticos arbitrários aplicados, e, em geral, associados a um conhecimento superficial do processo tradutório, que concorrem para desacreditar os profissionais, tradutores e críticos, aos olhos de seus respectivos leitores.

As falhas não podem ser unilateralmente atribuídas aos profissionais citados, pois, conforme a tese geral de Reiss, a crítica das traduções, além de oferecer critérios de avaliação cada vez mais objetivos e incontestáveis, de acordo com cada tipo de texto traduzido, possui, porém, suas limitações intrínsecas, a partir das quais, a subjetividade se torna predominante e pode invalidar o ato crítico, tornando-o “impressionista”.

2.1.1.3. A crítica das traduções “monolíngue”: a mais frequente e a menos eficiente? Segundo Reiss (2002, p. 13), a baixa qualidade das críticas literárias, bem como das críticas de traduções literárias, deve-se às exigências econômicas às quais a literatura, como as outras áreas, também é submetida. Apesar do amplo volume de obras traduzidas, os críticos praticam uma crítica literária “monolíngue”, avaliando, por exemplo, o conteúdo e o estilo do autor ou, mais raramente, do tradutor. Além disso, eles nem sequer mencionam o estatuto de “texto traduzido” na resenha – essa omissão é mais frequente ainda quando as línguas de origem são menos divulgadas no sistema literário de recepção.

No Brasil, à época de Clarice Lispector (1954), Agenor Soares de Moura (2003), foi um dos raros críticos de tradução jornalísticos que questionava esse procedimento unilateral,

128 « Des critiques plus nombreuses et mieux fondées pourraient générer une demande de traductions

baseado, por essência, na “correção” linguística vigente. Portanto, ele fazia questão, por motivo ético, de cotejar as obras traduzidas para o português do Brasil com seus originais (quando acessíveis), na maioria, em língua inglesa, mas também em francês, alemão, espanhol e italiano. Ele pertencia a esta geração de crítico literário que começou, a partir da era Vargas – bem antes de Reiss–, a preocupar-se com a qualidade das traduções publicadas no Brasil, deixando de lado, mas nem sempre, a tradicional e estéril divulgação das cômicas “pérolas” de tradução, baseada num crítica literária “monolíngue”. É comum a leitura de considerações críticas vazias e sem nenhum fundamento que não caracterizam, de fato, a tradução em si, quer seja na França e na Alemanha, quer seja no Brasil, do tipo, como, por exemplo, apontam Reiss (2002) e Moura (2003), “excelente tradução” ou “tradução à altura do original”, principalmente quando se conclui que os críticos nem consultaram o original, nem fizeram um rápido cotejo, salvo quando se trata de línguas originais “comuns” como o francês ou o inglês: “É como dizer [ao leitor] que se julga o autor estudando seu substituto, o tradutor129“ (REISS, 2002, p. 15, tradução minha).

Portanto, Reiss procura saber como um crítico literário pode se encarregar de elaborar uma crítica de tradução, sem o TP, porque, ainda que fosse íntimo conhecedor da área ou da literatura avaliada, ele não tem consciência das dificuldades tradutórias enfrentadas pelo tradutor para chegar ao resultado publicado que tem entre suas mãos, ou seja, algo diferente do TP e por essência criticável, mas sempre perfectível, se houver retradução, ou uma retroação (feedback) pertinente.

Reiss, assim, emite seu primeiro postulado:

a crítica de traduções só deveria ser praticada por pessoas que conhecem ambas as línguas de chegada e de partida, isto é, ser capazes de verificar a tradução em relação ao texto original. Em suma, não há crítica de traduções sem comparação entre o texto traduzido e o original130. (REISS, 2002, p. 15, tradução minha)

Vale ressaltar que a prática de crítica das traduções não se concentra, apesar de sua maior midiatização, nas resenhas que são publicadas nos jornais, pois essa atividade intelectual é formalmente institucionalizada em outros setores, enfatiza Reiss (2002, p. 15- 16), como: (i) na academia e nos institutos de formação de tradutores e de intérpretes, por meio do processo de seleção dos alunos e da avaliação das suas produções realizado pelos próprios professores; (ii) nas agências ou departamentos de tradução, a crítica realizada pelo revisor ou por um perito linguístico que emite pareceres.

129 « C’est dire qu’on juge l’auteur en étudiant son substitut, le traducteur. » (REISS, 2002, p. 15)

130 “la critique des traductions devrait n’être pratiquée que par des personnes connaissant et la langue cible et

la langue source, c’est-à-dire capables de vérifier la traduction par rapport au texte original. Bref, pas de critique des traductions sans comparaison entre le texte traduit et l’original.” (REISS, 2002, p. 15)

Tabela 2.1: Alguns tipos de críticas de textos traduzidos e suas respectivas especificidades

Tipo de

crítica Quem faz? Onde? Há cotejo? feedback? Requerente

Público receptor Há critérios? Resenha jornalística Crítico literário Jornais, revistas

Raramente Não Responsável editorial

Leitor comum Sem Revisão

profissional a. Linguístico: Revisor (bilíngue); b. Conteúdo: Especialista (monolíngue) Agências de tradução, editoras Sempre (no caso de revisão bilíngue) Sim (ex. Lispector) Cliente;

chefe Tradutor (em geral) Sim

Resenha

acadêmica (ou aluno) Professor acadêmicas Revistas especiali-

zadas

Sim Não Responsável

editorial, professor Leitor especialista (da academia) Nem sempre Avaliação, seleção (prova, concurso, defesa) Professor,

tradutor Institutos de formação, universi-

dades

Sempre Sim Instituição,

professor candidato Aluno, Sim

Parecer Perito Tribunais Sempre Nem sempre Juiz Juiz Sim

Fonte: Reiss, 2002, p.15-17 (Adaptação e tradução minhas)

Fora as críticas de tradução jornalísticas, as outras modalidades críticas apresentadas baseiam-se no cotejo sistemático, analítico ou não, do TC com o TP. Essa exigência condiciona não somente a credibilidade do ato crítico, mas antes de tudo sua própria existência. Neste caso, pode ser acompanhado de feedback ou retroação (direta ou indireta), indispensável aos cuidados do tradutor, para finalizar o processo crítico.

O trabalho de cotejo analítico está se defrontando com um grau de complexidade que lhe impõe a difícil definição dos critérios de avaliação objetivos e pertinentes que possam ser explorados de maneira profícua por meio do feedback. Antes de buscar equivalências, perfeitas ou não, entre o TP e o TC, o cotejo não pode fazer a economia da interdisciplinaridade e do conhecimento íntimo do processo tradutório, em si, independentemente, num primeiro momento, das línguas ou dos tipos de textos comparados.

Não é nenhuma novidade, mesmo que até hoje seja raramente aplicada, que a definição dos critérios críticos seja uma premissa de qualquer cotejo analítico, para alterar seu estatuto de “prática mais ou menos diletante”, conforme o enfoque de Reiss (2002, p. 16), para o de “crítica objetiva das traduções”. A autora define essa objetividade como sinônimo de verificabilidade e antônimo de arbitrariedade, pois o crítico de tradução deve: (i) ser capaz de justificar suas avaliações embasadas em exemplos; (ii) ser aberto a alternativas pertinentes; (iii) entender os motivos que levaram o tradutor a fazer suas escolhas (certas ou errôneas).

Figura 2.1: Processo de uma “crítica objetiva” de tradução

Fonte: minha autoria, adaptado de Reiss (2002, p. 16–17)

A verificabilidade manifesta-se na própria redação da crítica, quando o leitor, que, de modo geral, não tem acesso ao texto (ou à língua) de partida, é capaz de avaliar, por meio do raciocínio lógico e argumentativo do crítico (Figura 2.1, acima), a pertinência de suas divergências com o tradutor. Os exemplos e a possível definição das causas dos “erros” contribuem, de certo modo, para amenizar as pré-avaliações negativas da parte do crítico, percebendo-se as dificuldades encontradas pelo tradutor e relativizando-se, no final, o seu juízo.

Do ponto de vista ético, exige-se cada vez mais do crítico que apresenta soluções melhores em relação às que foram propostas pelo tradutor, porém, citando Lessing, Reiss (2002, p. 17), tenta-se relativizar essa exigência, pois não é papel do crítico ser melhor ou mais competente do que o próprio tradutor. No entanto, a sensibilidade do crítico que o conduz a destacar algo ruim permite-lhe também explícitar, com clareza, os motivos desse desacordo para, em seguida, propor uma melhor solução. Essa equação crítica = proposta de solução melhor me parece incontornável como garantia da credibilidade do crítico, pois é

uma “reivindicação que não pode ser mais legítima131“ (SCHLEGEL apud REISS, 2002, p. 17, tradução minha).

2.1.1.4. A tradução: uma proposta de definição

Neste ponto da reflexão, vale destacar o esclarecimento dado por Reiss (2002, p.19), no que diz respeito à distinção entre o ato de interpretar [dolmetschen] e o de traduzir [übersetzen], para, em seguida, estabelecer uma definição do conceito de tradução que será adotado por ela na sua crítica das traduções.

Tabela 2.2: Distinção entre “interpretar” e “traduzir”

Interpretar (dolmetschen) Traduzir (übersetzen) Observações

Textos pragmáticos (sem pretensões artísticas)

Obras poéticas Distinção proposta por Schleiermacher no século XIX. Processo oral Processo escrito Concepção generalizada atual Atuação fugaz (salvo quando

gravada ou transcrita)

Atuação durável e registrada Segundo Hans Joachim Störig

Modalidade desconsiderada por Reiss na sua abordagem de

Crítica das traduções.

Transposição por escrito em uma língua natural de um texto posto por escrito em outra língua natural.

Abordagem da Crítica das

traduções segundo Katharina Reiss.

Fonte: Reiss, 2002, p. 19 (Adaptação e tradução minhas)

Assim, o termo tradução representa, para a autora,

não a tradução, em sentido amplo, isto é, qualquer forma de reexpressão de um enunciado de uma língua para outra, mas a transposição por escrito em uma língua natural (essa atividade é repetível à vontade) de um texto fixado por escrito em uma outra língua natural132. REISS (2002, p.19, tradução minha)

Este pacto epistemológico circunscreve o processo crítico às traduções interlinguais e escriturais, desconsiderando de antemão os aspectos intersemióticos da interpretação de conferências, sendo outra modalidade tradutória. Exige competências diferenciadas: a profissão de intérprete e a de tradutor são dois ofícios distintos que necessitam de formação e treinamento específicos, conforme os trabalhos teóricos, na área de interpretação, de Lederer e Seleskovitch (1984).

Percebe-se nitidamente essa distinção nos depoimentos dos tradutores profissionais brasileiros, apresentados, em Conversas com tradutores : balanços e perspectivas da tradução, por Benedetti e Sobral (2003). Com efeito, os especialistas, profissionais da

131 « une revendication on ne peut plus légitime » (SCHLEGEL apud REISS, 2002, p. 17)

132 « non pas la traduction au sens large, c’est-à-dire toute forme de réexpression d’un énoncé d’une langue

dans une autre, mais la transposition par écrit dans une langue naturelle (cette activité étant répétable à volonté) d’un texte fixé par écrit dans une autre langue naturelle. » REISS (2002, p.19, grifos da autora)

legendagem (TRINDADE, 2003) e da dublagem (ROSENBERG, 2003) destacaram a ausência de conhecimento da parte dos críticos, geralmente mais conhecedores de textos literários escritos (devido à formação escolar), para avaliar os produtos oriundos de tradução intersemiótica – aqui, no caso da legendagem, ou seja, do oral para escrita – ou com mídias diferentes das do suporte escrito, como na dublagem: do oral para o oral (Cf. Figura 1.2, p. 27). Estas mídias caracterizam-se pela fugacidade do signo na memória do espectador ou ouvidor, que introduz um maior grau de subjetividade na avaliação crítica; no entanto, o caráter efêmero pode ser reduzido ou assemelhar-se à durabilidade da escrita por meio da gravação audiovisual.

Apesar da existência de critérios objetivos, porém ainda raramente sistematizados, para realizar críticas de tradução relevantes, conforme Reiss (2002, p. 20), elas não conseguem se afastar dessa “impressão de arbitrariedade” que parece tornar-se um tipo de ruído inerente à própria crítica. Além da ausência de fundamentação dos critérios de avaliação, a atuação do crítico carece da necessária estabilidade, pois oscila sempre entre a objetividade e a subjetividade, conscientes ou não, às quais se soma a mistura de dois grandes gêneros textuais distintos, como o texto em língua original e o texto traduzido. Essa oscilação se reflete também no ato tradutório entre a fidelidade e a adaptação.

A crítica das traduções apresenta frequentemente resultados insatisfatórios, pois, para Reiss (2002, p. 20), permanecem dúvidas duradoras a respeito da real possibilidade de traduzir, e, por conseguinte, o mito (filosófico) da intraduzibilidade afeta também o ato de criticar, tornando a tradução incriticável. Não existe, de fato, consenso sobre o papel da tradução, o que ela pode e deve oferecer ao leitor. Ademais, há outro empecilho, destacado pela autora, que contribui para invalidar a crítica: a ausência de uma teoria de tradução que seja “aplicável” a todos os tipos de textos.

Assim, para que a crítica das traduções possa se tornar mais objetiva, Reiss propõe que as circunstâncias de cada processo tradutório sejam apresentadas de maneira sistematizada, bem como seus pré-requisitos e seus objetivos, a fim de permitir ao crítico conceber critérios e categorias pertinentes. Baseando-se numa reflexão de Schlegel, a autora (2002, p. 23) esclarece que o crítico deve – além de “caracterizar”, como já vimos, as soluções propostas pelo tradutor – relacioná-las com as “ínfimas particularidades” do texto de partida, pois a “plena compreensão” deste representa a referência decisiva para emitir uma apreciação pertinente sobre o texto traduzido: “não há crítica das traduções sem comparação

entre o texto traduzido e o original133“, premissa proposta por Reiss (2002, p. 23–24, tradução minha).

Apesar da intraduzibilidade inerente a todo texto, há traduções; a despeito da incriticalidade das traduções, há críticas de traduções, na maioria dos casos, conforme depoimentos dos tradutores profissionais brasileiros, realizadas sem a devida comparação com o texto de partida (TP). Como conceber, portanto, a pertinência desse tipo de crítica que, à

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