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2.PERCURSOS DO ACTO CRÍTICO

2.2. A Especificidade do Texto Poético

2.2.1. Crítica e Identificação

Prosseguindo neste entendimento de a crítica como um discurso sobre um discurso, um discurso assente num outro⎯ o objecto literário ⎯, que lhe parece servir de referência, mas que se revela na sua inconcretude, de que resulta, em consequência, a maleabilidade da crítica enquanto discurso com capacidade distintiva e identificadora relativamente ao seu objecto, complica-se o procedimento quando o termo de referência da crítica é um texto lírico.

Tentámos focar o problema da identificação, de uma primeira percepção distintiva do objecto que, pelo menos simuladamente, pretendemos referir, apontar,

119 A propósito do uso historiado da expressão “género” e das diversas classificações que ao longo dos

tempos a literatura foi sofrendo na sua submissão ao discurso genológico: Cf. S. Segre, “Géneros” in Einaudi, vol. XVII, p.70-93.

aquando do discurso crítico. Como vimos, interpretação poderá corresponder a um discurso segundo que implica uma reconstrução do objecto. No entanto, ao identificar estamos já a interpretar, na medida em que reconhecemos o objecto na sua diferença, relativamente aos seus pares. Distinguimos, por isso, interpretação primeira, que corresponderá a um acto perceptivo e identificativo ⎯ que se dirá imediato ⎯ de

interpretação segunda, que corresponderá, na linha do que se tem vindo a estudar, à

capacidade de traçar um discurso, que terá por base um princípio descritivo do objecto e que se desenvolverá como uma hipótese de descrição verbalizada.

Mais adiante David Mourão-Ferreira, enquanto crítico (assim como o modo como António Sérgio e Vitorino Nemésio lhe serviram de paradigma de leitura) servir- nos-á de exemplo para buscar compreender somente de que modo somos ou não capazes de um acto de designação do objecto de que se vai falar/escrever, através de fórmulas designativas ou tópicos descritivos (ou, se se quiser descrições definidas, para usar desde já a expressão de Russell120), que substituem a obra no discurso crítico e servem de ponto de partida para que seja possível criar uma imagem/ ideia do objecto com alguma definição.

Desde já, podemos então compreender a importância de olhar para o objecto literário121 de forma paralela àquela como nos comportamos quando nos queremos referir a situações, a objectos, a raciocínios, a todo um conjunto de circunstâncias que são alvo do nosso discurso: no momento em que nos referimos a algo, antes de cedermos ao que vagamente se designa por interpretação, necessitamos em primeiro lugar de a identificar e, em segundo, de a dar a reconhecer ao nosso interlocutor, normalmente por meio de uma descrição, uma asserção que a identifique. Evidentemente que em muitas situações, principalmente se se trata de um objecto, o próprio nome que a designa é suficientemente identificativo para que seja reconhecível por outrem (se não o for fazemos uma sua possível descrição, que na maior parte das vezes não é física, mas está relacionada com a finalidade e o objectivo a que se destina, ou outro tipo de circunstâncias. Mas tudo isto é mais evidente quando se trata da referência a situações, raciocínios, acontecimentos. Nestes casos, é muito mais nítida (inevitável, até) a sua substituição por descrições (expressão que, como vimos, não divergirá necessariamente da palavra interpretação), que sirvam de marca identificativa

120 Cf Russel, “ On Denoting” Logic and Knowledge, 1956

121 Insistindo na expressão objecto, não por lhe querer atribuir propriedades concretas, físicas, mas por

ser o alvo a que outro discurso se dirige, usando a expressão próxima do seu sentido etimológico, que atrás indicámos.

e que permitam um reconhecimento por parte do interlocutor, de forma a que seja possível estabelecer um princípio/uma base/um ponto de partida para o entendimento mútuo; se quisermos, encontrar a possível plataforma para estabilizar de algum modo a instabilidade do objecto de referência.

Se a comunicação entre as pessoas se basear de facto nesta descrição que também aqui se fez em traços muito largos e provavelmente simplistas [que implica uma identificação ou reconhecimento/ uma descrição/ e um dar a reconhecer como base nessas identificação e descrição] então, talvez seja possível, a partir dela, concluir a seguinte relação: para nos referirmos a algo é necessária a sua identificação num momento perceptivo, que se efectua como uma forma de reconhecimento, ou mais precisamente situando o objecto ou situação novos, confrontando-os e comparando-os com aquilo que conhecemos, colocando-os num contexto, organizando-os face a todo um conjunto de objectos/situações conhecidos.

Umberto Eco122 conta-nos com algum humor como Marco Polo ao chegar a Java encontra um Rinoceronte, identificando-o como um unicórnio; reconhecendo-lhe, portanto, características daquilo que anteriormente conhecia.

Se o modo de lidarmos com as coisas e de falarmos delas obedecer, se não sempre, pelo menos maioritariamente, a este modelo esquemático (que pressupõe identificação e reconhecimento) que implica associações, comparações, etc), por que razão o modo como lemos/percepcionamos textos literários e falamos/ escrevemos de/ sobre literatura há-de processar-se de maneira diferente?

Note-se, no entanto, que descrever (por isso falámos atrás de interpretação segunda como um descrever verbalizado) é a condição para a identificação do objecto, para delinear os seus contornos, traçando as suas linhas distintivas123. Por isso, identificar supõe já uma descrição, mesmo que não verbalizada. Também por isso chamámos interpretação(primeira) ao processo identificativo que se dá sobre o objecto, porque uma descrição, no sentido que temos vindo a desenhar, implica necessariamente um acto interpretativo124.

122 Kant e o Ortitorrinco, 1999, p.65-66

123 Cf. André BARATA, “ O recuo sartriano e o problema da crença” in Análise, p.32 “descrever não é

descrever o que se viu previamente, é condição de um ver com sentido; é um descrever além disso pré- enuncitivo (...). Descrever, enquanto mediação necessária para crer, faz-se porque se “crê para ver” e não o contrário (desde que se entenda o ver como algo que se reconhece(...)”

Antes, então, de nos centramos na questão da interpretação segunda, tal como a definimos, temos tentado pensar então no problema do crítico face ao objecto que lê e que antes de mais deveria identificar distintivamente. Ou seja na compreensão do objecto literário a partir de uma sua ideia global, uma sua imagem, que delineia o objecto, a partir de traços tidos e percepcionados como os mais relevantes ou distintivos. O alvo da interpretação, entendida como identificação, ou interpretação primeira, será a apreensão do objecto literário, como unidade , que à interpretação segunda, discursiva, caberia a análise e posterior reconstrução unificada do objecto.

A questão de que nos vamos aproximando é a noção de que para o crítico, nomeadamente para o crítico de poesia, (tantas vezes ele o afirma, como veremos nos exemplos focados adiante), à capacidade de nomear um objecto literário, mesmo associado à consciência de que se partilha o seu referente, não corresponde uma idêntica capacidade de associar descrições que o distingam. Assim, poderíamos desde já sugerir que a referência a um texto poético se dá faz por conotação, e só muito dificilmente por denotação. Ou, se quisermos apropriar-nos da clivagem feita por Russell a propósito de dois modos de conhecimento, um directo, outro por meio de descrições (acquaitance e knowledge about), poderíamos dizer que, paralelamente, dar a reconhecer (ou a conhecer) determinado poema implica uma renomeação, metafórica e conotativa, e não uma descrição.

Wittgenstein coloca a questão, respondendo-lhe de seguida: “

Mas o que é que significa não podermos explicar (isto é descrever) estes elementos mas apenas dar-lhes nomes? Poderia significar que a descrição de um objecto complexo, que no caso consista só num quadrado, se reduz apenas ao nome do quadrado.125

É essa a sensação expressa pelo crítico face a um texto poético : descrevê-lo é dizê-lo.