• Nenhum resultado encontrado

À GUISA DE CONCLUSÃO

POESIA E MÚSICA

Dois modos similares de percepção,

Dois modos semelhantes de (não) representação.

Partindo-se de uma possível clivagem entre discurso narrativo e discurso lírico, fundada no que se julga ser uma crescente resistência à descrição, tornar-se-á produtivo encarar o modo de referência e consequente representação do texto literário, à luz dos conceitos de referência e denotação e dos tipos de conhecimento que é possível ter de um objecto.

Bertrand Russell, no texto denominado “On Denoting”332, distingue aquilo a que chama “descrições definidas” do que apelida de “nomes próprios ou termos singulares”. Por nomes próprios teríamos aqueles que directamente referem (aqui entenderia referir por apontar, ou mais precisamente por identificar, por descrições definidas ou expressões denotativas (aquelas que denotam) ou se quisermos expressões que seleccionam traços suficientes para que se possa identificar o objecto de que se fala. Para definir melhor aquilo do que se trata, veja-se um exemplo:

Se se disser “Cervantes é Cervantes” estaremos certamente em presença de uma expressão tautológica. Todos nós sabemos que Cervantes e o autor de D. Quixote referem uma única pessoa, portanto, dizer que “Cervantes é um escritor espanhol” ou que o “autor de D. Quixote é um escritor espanhol” é exactamente a mesma coisa; as duas frases têm o mesmo significado. No entanto, na primeira, “Cervantes” é um nome próprio que refere e na segunda, “autor de D. Quixote” é uma descrição que selecciona um predicado atribuível a, e suficientemente identificativo de, Cervantes. Só por isso se justifica que se possa dizer que “Cervantes é o autor de D. Quixote”, sem que se caia numa tautologia.

Russell, no mesmo artigo, acaba por afirmar que até os nomes próprios denotam e não referem, indicando as formas deícticas como as únicas que permitem apontar, ou se quisermos evitar esta expressão tautológica, identificar, em todo o seu conhecimento, o objecto que buscamos referir.

A possível clivagem entre discurso lírico e narrativo estará na possibilidade de neste ser mais facilmente possível encontrar uma descrição definida que o substitua no momento do discurso crítico, de modo a torná-lo partilhável e reconhecível por outrem; sendo naquele, no discurso lírico, muito mais difícil descortinar um ponto de identificação que diferencie e permita o reconhecimento por parte de outrem. No entanto, há que falar do texto lírico, há que tomá-lo enquanto objecto, porque não basta reproduzi-lo nem apontá-lo deicticamente. Desta forma, dar-se-ia aquilo a que se chamaria simulacro descritível, que não se sabe se resulta, de facto, do texto e do que nele é distintivo, sendo provavelmente o resultado de uma relação com o texto, de uma associação estabelecida, de que, afinal, se parte como forma de regresso ao texto. Poder-

se-á afirmar que o ponto de partida para o texto narrativo seja da ordem da sinédoque333, enquanto que o da lírica deriva de um percurso mais próximo da metáfora, uma substituição do texto por outra coisa, por meio de um processo comparativo, de sucessivas remissões e ressonâncias.

*

Se for deste tipo a relação possível que se pode manter com um discurso lírico; se o discurso lírico permitir, mais do que o reconhecimento de pontos identificáveis

(factos), principalmente uma percepção próxima da percepção sensível e da auditiva,

por exemplo, então aquilo que fazemos quando falamos de poesia não será nunca da ordem da descrição, mas da nomeação, o que poderá significar dizer que, quando falamos de lírica não falamos por denotação, mas por referência, usando a metáfora como forma de re-nomeação. A lírica não se descreve, mas nomeia-se, aponta-se. Será, então, possível pensar a lírica e a narrativa por semelhança com a proposta da diferença entre nomes próprios e descrições definidas de Russell.

Importa, no entanto, chamar a atenção, para o facto de Russell, que nos surge aqui como um patamar exemplificativo, acabar por pensar o nome próprio como uma descrição definida abreviada. Ora, para o que temos vindo a sugerir ao longo deste trabalho, estaremos mais próximos de uma posição externalista, dizendo que o nome próprio refere de forma directa, independentemente das descrições definidas que lhe estão associadas. Sendo assim, o título de um poema poderá ser considerado o seu “nome próprio”, ainda que seja difícil, é esse o nosso ponto, dizê-lo por meio de descrições definidas. A referência do poema, o seu referente, está garantida pela utilização e partilha do seu nome numa situação comunicativa; no entanto poderão não ser expressas, sequer conhecidas descrições definidas que o distingam334. Um poema lírico dá-se a reconhecer (não a conhecer) pelo seu título (o seu nome), ou pela sua reprodução (total ou parcial), tal como um trecho musical. No fundo, uma diferença de percepção e de (re)conhecimento similar àquele que Russell distingue quando define conhecimento por contacto (acquaintance) ou conhecimento por descrição (knowledge

333Descrevendo-se, como se a isso correspondesse o todo, uma parte apreensível, descritível e partilhável,

portanto reconhecível, identificada e que se dá a reconhecer. Nesta situação estariam categorias como personagens, tempo, espaço, acção.

334 Repare-se que o que estamos a distinguir para o discurso crítico relativamente ao texto literário,

enquanto seu objecto, não é afinal muito diferente do que, logo no início introdutório, se fez relativamente àquelas que apelidámos de palavras difíceis.

about). Se relativamente a um texto narrativo o nosso conhecimento pode ser feito ou

mediado por descrição, o do poema resiste a esta atitude, assemelhando-se a um discurso musical, cujo conhecimento e (re)conhecimento se faz necessariamente por contacto: não fará sentido pensar-se num crítico de música surdo, nem num crítico de arte cego (o mesmo se poderá dizer, como no fundo sugerem David Mourão-Ferreira, Vitorino Nemésio, António Sérgio, não faz sentido um crítico de poesia cego e surdo de sensibilidade, palavra vaga de uma inominável percepção do discurso poético.

*

Fica, então, em aberto uma última questão: pode a crítica fazer para a literatura, em geral, e para a lírica muito em particular, o que alguma poesia, a dita ecfrástica por exemplo, faz em relação a seu suposto objecto descritivo? Ou seja, uma descrição na quase ausência do objecto, na sua possibilidade descritiva e reconhecível? Ou se quisermos, uma descrição que paulatinamente se vai libertando do seu objecto, chegando quase a substituí-lo, a redizê-lo metaforicamente. Uma crítica que ao ter a pretensão, ou quase, de ser Pierre Menard relativamente a Quixote, de ser em relação ao seu objecto o que o mapa de Borges é em relação ao seu país, procede paradoxalmente ao contrário? Ou, concluindo, uma crítica que age para com o seu objecto, de modo similar ao que Francis Ponge realiza em alguns dos seus poemas, renomeando a ostra, o