• Nenhum resultado encontrado

Especificidades da Crítica a um Texto Poético: Resistência à Descrição

2.PERCURSOS DO ACTO CRÍTICO

2.2. A Especificidade do Texto Poético

2.2.3 Especificidades da Crítica a um Texto Poético: Resistência à Descrição

A lírica, no momento do discurso crítico, parece resistir com maior veemência à formação de um modelo, simulacro do que se leu, de uma ideia mais ou menos precisa do livro, do poema. Como já atrás se referiu, não será muito difícil, em traços largos, dizer em poucas frases sobre “o que é”, o “que trata” ou “como é” determinado romance. Aliás porque só pormenores da narrativa são distintivamente descritíveis, assim como a sequencialidade de um tempo num espaço. A partir da narrativa torna-se mais fácil um princípio de reconhecimento, em que se supõe descrita determinada exterioridade que a terá por referente, servindo assim de um ponto fixo de que parte depois a descrição. Uma espécie de simulacro que serve de primeira identificação, de que se parte para a descrição e interpretação verbalizadas ou discursivas.

Veja-se que facilmente arranjamos consenso mínimo entre descrições primeiras a fazer de um romance, assim como de um quadro. Aliás a descrição de uma narrativa está para crítica literária, penso, do mesmo modo que a visão de um quadro e a identificação da sua imagem está provavelmente para a crítica de arte. Ou seja, um princípio designativo, de identificação, de reconhecimento de algo. Também num ensaio seremos capazes de identificar um núcleo descritível na argumentação, e aqui entra necessariamente, como atrás já referimos, a importância da temporalidade e sequencialidade. Aliás, muitas vezes descrevemo-lo como se de uma narrativa se tratasse, de acordo com uma organização temporal e sequencial. Para testar de que forma estes aspectos, os da determinação de elementos referenciais no texto, que podemos considerar como dotados de alguma fixidez, permitindo uma implícita suposição de prova, de comprovação, no acto de remissão ao texto são importantes, será importante ver, a título de exemplo, e para anteciparmos um dos autores que

afloraremos adiante, a crítica tecida, por parte de Nemésio a Moniz Barreto, e cuja leitura e interpretação pode ser encaminhada nesse sentido.

Apontando para uma noção de crítica e de apropriação do texto que implica uma recusa do seu reconhecimento enquanto realidade empírica ou positiva, portanto não apreensível ou definível sequer, Nemésio começa por indicar que entre os dons atribuíveis a Moniz Barreto não se incluiria facilmente “o gosto, verdadeiro quê sensitivo do provador literário, como o provador de vinhos”, negando às críticas do autor do século XIX, “aquele toque do crítico em que prevalece o leitor gourmet antes de tudo”, que reimagina, devora e digere a obra, escolhendo da massa da literatura o que mais lhe convém ao paladar, isolando as melhores febras, arredando o que o fogo da imaginação mal tostou”139. Consequentemente acusa no crítico novecentista a clausura de leitura que quem está

acorrentado pela estrita obrigação do recenseador de assuntos140, relator do

narrado141 . Se é de um romance que fala, traça logo o argumento e demora-o até fazer entrar (...)o mínimo lance ou personagem142 que lhe parecem capitais. 143

Depois desta significativa caracterização, Nemésio admite em Moniz Barreto a capacidade de atingir “uma boa imagem” do livro, pelo “resumo de acção” efectuado, sobressaindo, no entanto, a perene consciência de que estes elementos não correspondem ao texto — à constituição do texto enquanto objecto, não o tornando portanto referente do discurso crítico como pretendido, tratando-se de sinédoques parciais, apontáveis, referenciáveis, comprováveis. No entanto não deixam de ser elementos que nos dão uma imagem acertada do livro (repetimos, “uma boa imagem”), que permite, portanto, o convencimento (por parte do leitor da crítica) da identificação do objecto, por meio uma recondução comprovável ao texto, uma recondução que torna reais as necessárias marcas de verificação. Trata-se, no fundo, de elementos essenciais

139 Repare-se, como aliás o fizemos atrás que a metáfora em Nemésio respeitante aos conceitos abstractos

de crítico, crítica, obra, assume uma importância não despicienda, por uma sua aproximação/designação que não é da ordem do apontável, do nomeável, , mas sim da comparação, como se através de um segundo termo, mais perto, ou mais facilmente se chegasse ao termo a que se pretende caracterizar, à vezes tão só dizer.

140 Portanto, o tema, ponto de apoio/partida no romance; a tábua de salvação mais segura.

141 Notar a sequência movida entre coordenadas espacio-temporais, como um outro ponto de fixação

referencial num romance.

142 Repare-se que as personagens são outros dos elementos fixáveis, apreensíveis e referenciáveis no

texto, que como sinédoques podem funcionar como os substitutos referenciais do texto, elementos que o texto lírico dificilmente fornece.

para se proceder ao convencimento do leitor, mas que não passam de “meras posições tácticas” na organização do discurso crítico, manobras de simulação de objectividade e de remissão para um objecto que provavelmente nunca de facto se percepcionou

identificativamente, embora nele se identifiquem elementos parciais, esses sim,

descritíveis.

A questão é que este tipo de manobras de construção de um discurso crítico que cumpra os requisitos para o convencimento do leitor ( e que simulam um percurso de objectividade, mas que essencialmente sulcam o caminho que leva da crítica ao texto literário) tornam-se muito mais delicadas se a pretensão for a de referência a uma obra poética, mais precisamente a um discurso lírico. Quem é que pode dizer sobre “o que é” determinado poema, como distingui-lo, diferenciá-lo rapidamente, para que se possa identificar o texto de que se está a falar? Muitas vezes quando queremos identificar um poema limitamo-nos, simplesmente, a reproduzir alguns versos. Curiosamente é da mesma forma que identificamos uma música, quando não nos lembramos do seu nome: cantamos uma parte dela. Se assim for, se o discurso poético se constituir como um discurso que tende para a indescritibilidade, como algo que dificilmente se predispõe a uma descrição primeira, imediata (ou quase), a pontos referenciáveis, a tópicos de apoio descritíveis ( como a sequencialidade causal-temporal da acção num espaço ou a presençapersonagens, por ex.) para que seja possível começar a falar sobre ela, então restará uma última pergunta: de que é que falamos de facto quando falamos (ou queremos falar) de poesia? Repare-se, aliás, que é de modo muito semelhante que lemos poesia e ouvimos música: a importância que adquirem os recitais poéticos; o retorno aos mesmos poemas, assim como retornamos com exaustão à mesma música.

É então pela consciência deste mesmo problema relativamente ao discurso lírico e o modo como o percepcionamos que nos importa atentar na concepção do discurso crítico de um autor como David Mourão-Ferreira, pela premência atribuída ao acto de objectividade na crítica, (fundado na importância da análise) afirmada em paralelo com a consciência da fluidez e inobjectividade do que se apelida de objecto literário, principalmente no que respeita à poesia.

PARTE II