• Nenhum resultado encontrado

Além das questões intrínsecas à decisão tomada no Recurso Especial n 1.418.593 MS, isto é, além das questões atinentes à fundamentação adotada e à omissão detectada, é preciso avaliar a metodologia de trabalho da corte superior como instância decisória; é fora de dúvida que tem competência para a resolução da matéria, tanto nos termos do ordenamento jurídico- constitucional (isto é, competência no sentido de titularidade sobre aquela específica matéria dentro do panorama da jurisdição) quanto também no sentido de ter competência técnico- conceitual (isto é, habilidade intelectual para solucionar a causa satisfatória e adequadamente – o currículo acadêmico de ministros certamente atesta nesse sentido). Mas a metodologia de um órgão de jurisdição se resume a isso, ter atribuição de competência e diplomação técnica? Aparentemente, não, porque o Direito, e (por conseqüência) o exercício forense dele derivado, parece ir além do “cientificismo”, no sentido asséptico (ou melhor, irreal) que habitualmente se empresta a esse termo (de consistir em uma análise mecânica de uma realidade objetivada) – e porque toda construção de saber é, em maior ou menor grau, fruto não de um mecanismo

físico de causa e efeito, mas um resultado de interação social117.

Explica-se.

Costuma-se pensar que a prática do jurista é uma prática de investigação e ausculta: ao utilizar as ferramentas adequadas e ter o olho clínico necessário, ele conseguirá descobrir um Direito pré-formatado, dado e pronto, à disposição para aqueles que, estudiosos, inteligentes e

117 Segundo pensadores abalizados da antropologia social, o cientificismo é, inclusive, incapaz de apreender o

que se chama de fenômeno humano, já que ele transige com a falta de sentido, isto é, com a assimilação dos dados coletados desconsiderando o contexto em que foram produzidos, ou o sentido que se pretende emprestar, de uma maneira ampla, à ação do homem sobre a natureza: nesse sentido, Claude Lévi-Strauss, que chegou a afirmar que entre o cientificismo e o pensamento mágico (entendido aí como o pensamento que não se funda em relações de causa e efeito explicadas pelos diversos ramos da Física Clássica), é o pensamento mágico que evita ser “apenas o prisioneiro de fatos e de experiências que incansavelmente põe e dispõe para lhes descobrir sentido; ele é, ao revés, libertador, por protestar contra a falta de sentido com a qual a ciência, a princípio, se permite transigir” (LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento mágico. 6. ed. Campinas: Papirus, 1989. p. 37-38).

empenhados o bastante, tiverem a habilidade necessária para entendê-lo no suave sussurro que seletivamente endereça aos iluminados. Mas pode ser que ele, Direito, não seja só a oitiva de uma voz milenar que transparece em um ordenamento, nem muito menos pode ser que esse ordenamento seja a coalização integrada de normas jurídicas harmônicas que não precisam de qualquer atitude humana para serem o que são. Em outras palavras, pode ser que o Direito não seja apenas algo a ser descoberto pelo exercício de uma prática jurídica de decodificação, mas seja também fruto dessa prática, isto é, seja construído por ela, que só efetivamente se realiza quando agrega a uma dada tradição estabelecida novos conhecimentos válidos sobre o objeto

de estudo – no caso, a norma e o ordenamento jurídico118,119.

Assim é, na verdade, com toda experiência social, como lembra Pierre Bourdieu sobre os “sistemas simbólicos” (arte, religião, língua); ao comentar a iniciativa intelectual de Émile Durkheim a respeito do problema do conhecimento, ele afirma que dar uma resposta efetiva, honesta e verdadeira ao objeto de estudo é fugir do “apriorismo”, deixando, assim, de querer formas de classificação “universais (transcendentais)” para compreender que os fenômenos são “sociais”, isto é, “simbólicos” – eles são o que dizem ser, mas também a construção sócio- histórica que desconhecem fazer parte de si. A observação superficial e apressada que abraça

118 Apesar da evidência empírica nesse sentido, ainda é forte na tradição do pensamento ocidental a visão do tipo

transcendental, que joga para o supra-humano a perfeição das formas sociais, de onde tudo derivaria; para citar o fundador dessa tradição, e a quem essa tradição sempre se reporta, lembre-se Platão que, na República, a respeito de regimes políticos, formulou um discurso que se tornou paradigma ao compará-los com a “natureza filosófica” e julgá-los todos, sempre, indignos dele: “Nenhum regime político é adequado à filosofia, e é precisamente disso que me queixo; sem natureza filosófica, o regime se altera e se deforma. Como sói acontecer com uma semente exótica que, plantada em solo estranho, se deixa vencer por este e degenera, adaptando-se à variedade da terra, também o caráter filosófico do regime político se perde e se transforma em algo diferente nas condições atuais” (PLATÃO. A República. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 251).

119 Norma jurídica e ordenamento jurídico são objetos distintos porque a primeira é a unidade da qual a segunda

é o todo, e ambos compõem o recorte de estudo do jurista, que, na verdade, com isso estuda mais do que o mero fruto oficial da atividade legislativa do Estado, a lei – afinal, se a lei é a matéria-prima da norma jurídica, esta é a sua versão acabada, assim como o ordenamento jurídico é o contexto normativo em que essa lei será incorporada e trabalhada (logo, ao qual ela terá se compatibilizar, assim como a norma jurídica a esse mesmo contexto terá de se coadunar, sob pena de correção por instância superior até se chegar à coerência substancial e procedimental necessária – ou à exclusão do item de dentro do sistema) (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998). Destacando norma e ordenamento como 02 (dois) objetos de estudo do jurista, Norberto Bobbio (BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2014 e BOBBIO, Norberto. O Positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006).

o que se diz ser, e ignora o que efetivamente se é, presta desserviço tanto à ciência quanto à

emancipação filosófica do sujeito, que estará a conhecer a realidade pela metade120.

Ora, paralelamente, a ciência (ou o fazer ciência), pelo menos tal como o conhecemos

hoje, pode não ser só o trato com aparelhagem apropriada para resultados de laboratório, mas algo mais: pode ser que nosso saber seja também uma construção social no sentido de que ele se dá, acontece e se consolida a partir da interação de agentes sociais, isto é, do influxo sócio- cultural e econômico que constitui a realidade. A ciência, então, se perfaz dos resultados de laboratório que encontramos, claro, mas também dos motivos, meios e objetivos que levaram os cientistas ao laboratório, das razões com que esses laboratórios foram construídos, e do impacto que essa atividade tem no meio social em que é inserida. Da mesma forma, o que chamamos de conhecimento jurídico é também, como o saber científico, um conjunto mutável de dados que não se esgota na descoberta de algo objetivo, pré-existente, dado na natureza como um fato alheio a qualquer vontade e/ou ação – pode ser que toda essa volumosa gama de conhecimentos parta de dados objetivos, ou deles também se componha, mas não termine neles, não se encerre neles. E essa forma de enxergar tanto a construção das decisões judiciais quanto a construção dos saberes sociais (inclusive o científico) nos leva a colocar a decisão adotada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial n 1.418.583 MS sob o prisma não mais do conteúdo constitutivo do acórdão redigido, mas de como se chegou ao que nele consta.

Afinal, não se pode querer que a sociedade seja como a natureza para o observador ou cientista; o cientista social, “antes mesmo de principiar sua atividade teórica, é socializado” conforme as regras dessa mesma sociedade de que participa, e nem mesmo a ela teria acesso se não dominasse determinadas regras, como, por exemplo, as da linguagem, fundamentais

120 BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p. 07-17. Ao contrário

do que se pode imaginar, essa epistemologia da desconfiança em relação ao método, que cada vez mais se mostra superável, e cada vez mais rápido, também tem voz nas ciências exatas (POPPER, Karl. A Lógica da

pesquisa científica. 14. ed. São Paulo: Cultrix, 2009 e FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004).

para interagir, seja como participante, seja como observador, com seu objeto de estudo. Além disso, a performance do sujeito (como observador ou como participante) é, ela também, um ato social (ou uma ação), que assim deve ser compreendida – nunca se trata de abarcar só uma objetividade física, mas um significado dentro de um contexto. Fazer o Direito, assim como fazer ciência, é condicionado pelo possível e pelo desejado, e aquilo que significa esse Direito (ou essa ciência) é algo relativo, e, às vezes, questionável, em especial nas ciências

humanas121.

Para superar essas dificuldades e desconfianças, então, é preciso perceber que sistemas não resumem o mundo da vida – ou, em outras palavras, que nenhum fragmento é maior que o todo, ou que nenhum segmento social, ou nicho da cultura, pode responder pela totalidade da comunidade ou do saber. Essa totalidade é pano de fundo para a discussão de recortes que se constituem em objetos de estudo, e esse objeto de estudo precisa ser visto como derivativo, então, de uma interação social que dá mais ou menos legitimidade ao que foi alcançado; assim, no que diz respeito ao saber científico, cultural, e, em especial no que diz respeito aos acertos intersubjetivos, mormente políticos (e, por extensão, jurídicos, visto que o fruto oficial da atividade política é a lei, e a lei, por sua vez, é a matéria-prima da atividade do jurista), a legitimidade participativa, ou democrática, a ser conseguida por uma interação comunicativa, é primordial. A correção técnica é fundamental, e isso é lógico; mas não é suficiente.

Em uma frase: a eventual correção técnica de uma determinada decisão judicial pode suprir o déficit de legitimidade que ela apresenta?

Ou, antes disso: ela precisa de legitimidade democrática para ser uma decisão judicial? Muito bem.

A resposta automática tende a ser um sonoro “não”. Mas é melhor não se precipitar. O ato de poder não basta a si mesmo como ato social, ainda que seja uma objetividade dotada de

121 REPA, Luiz Sérgio. Direito e teoria da ação comunicativa. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo (Org.).

sentido. Isto é: a lei pode enunciar com base na autoridade, e a sentença pode se basear na lei, mas isso, ou só isso, não basta – e por uma razão muito simples, que Denílson Werle e Mauro Soares explicam muito bem:

Uma vez que se reduz o Direito à manifestação de relações de poder, a validade do Direito à presença de uma força capaz de fazê-la valer, apresenta-se a velha e sempre recorrente questão: como distinguir entre uma comunidade político-jurídica, como o moderno Estado de Direito, e uma gangue de traficantes ou um bando de ladrões? ‘Uma vez reduzido o direito a produto de um poder capaz de impor regras de conduta coercitivamente, como é possível evitar a redução do Direito a poder puro e simples, uma ordem jurídica fundada exclusivamente no direito do mais forte?’ (BOBBIO, 2000: 233). Santo Agostinho expõe o problema de forma clara: ‘Que são os bandos de ladrões senão pequenos reinos? Um bando de ladrões também é, de fato, uma associação de homens na qual há um líder que comanda, na qual é reconhecido um pacto social, e a divisão da rapinagem é regulada segundo convenções previamente acordadas. Se cresce até o ponto de ocupar um país e nele estabelece a própria sede, essa associação de malfeitores submete povos e cidades e arroga-se abertamente o título de reino, título que lhe é assegurado não pela renúncia à cobiça, mas à conquista da impunidade’ (Santo Agostinho apud Bobbio, 2000: 233-234)122.

E completam, ainda, os autores:

Esse é o nó a ser desatado pelos pensadores modernos: quais os critérios de legitimação de um poder que se organiza juridicamente na forma de Estado de Direito, cujas normas, que organizam as práticas e as instituições político-jurídicas, podem ser modificadas a qualquer momento pelo legislador político? O que tem de ser demonstrado são as bases racionais desse poder, e das leis e políticas criadas por ele123.

Para citar diretamente Habermas, se, na Modernidade, as

normas do Direito se reduzissem apenas a ordens do legislador político, o Direito dissolver-se-ia em política. Isso, porém, implicaria a dissolução do próprio conceito do político. De toda sorte, sob essa premissa, o poder político não poderia mais ser entendido como poder legitimado pelo Direito; pois um Direito posto inteiramente à disposição da política perderia sua força legitimadora – afinal, no momento em que a legitimação é apresentada como uma realização própria da política, nós abandonamos nossos conceitos de Direito e de política. A mesma conclusão se impõe quando analisamos uma outra posição, segundo a qual o direito positivo poderia manter sua normatividade por conta própria, isto é, através das realizações dogmáticas de uma justiça fiel à lei – porém, independente da política e da moral. A partir do momento em que a validade do Direito se desliga dos aspectos da justiça,

122 WERLE, Denílson; SOARES, Mauro. Política e direito: a questão da legitimidade do poder político no estado

democrático de direito. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo (Org.). Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 117-145, p. 120.

justiça essa que ultrapassa os atos do legislador, a identidade do Direito se torna extremamente difusa124.

Levado em consideração, portanto, que a legalidade não basta, e que a legitimidade de uma decisão política, jurídica e, mais especificamente tratando do caso deste estudo, judicial, é um ponto importante a discutir, cabe indagar (para partirmos do início) – e o que é, enfim, uma decisão judicial, afinal?

É fora de questão que a decisão judicial é ato normativo que transfere ao particular o que, antes dela, era geral – a lei passa a ser sentença quando voltada a um caso específico. E, se assim é, a decisão judicial é parte do rol de atos normativos que o Direito comporta para se manifestar. Existe uma milenar discussão sobre qual seria a natureza da decisão judicial, se ela seria declaratória ou constitutiva, e, apesar do tradicionalismo “romântico” apontando para a natureza declaratória como a “verdadeira” natureza da decisão judicial, hoje em dia todas as correntes abalizadas e consolidadas da Filosofia Jurídica e da Teoria Geral do Direito colocam a decisão como um ato de natureza constitutiva – para citar um exemplo famoso (até porque, para muitos, é o mais surpreendente), o positivismo kelseniano dá ao ato legislativo prévio a condição de “moldura”. O magistrado, “emoldurado” pelo texto constitucional e pelas demais disposições legislativas integrantes do ordenamento jurídico, completaria a “pintura” iniciada

na moldura a partir de seus vetores valorativos125.

Ronald Dworkin, um liberal igualitário, seguirá pela mesma senda sobre a natureza da decisão judicial: como tanto constituintes quanto legisladores não são oniscientes nem (muito menos) clarividentes a respeito das situações de fato que, depois, terão de ser tratadas pelo jurista quando da aplicação da Constituição e das leis, o Direito precisa, na teoria e na prática, ser visto como um “romance em cadeia”, em que a sua integridade depende tanto de se olhar pelo “pára-brisas” quanto pelo “retrovisor”. Logo, o Direito é parte uma permanência e parte

124 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,

1997. v. 2, p. 237.

uma cambiante, e sua fisionomia dependerá tanto dos precedentes quanto da nova realidade, que chega às cortes. Encontrar um fio da meada que leve a tradição a conseguir contemplar e organizar o presente visando o futuro é tarefa da jurisprudência, segundo Ronald Dworkin: o exercício profissional, científico e intelectual do jurista é descobrir não como os constituintes e legisladores do passado tratariam o tempo presente se esse tempo presente se lhes tivesse apresentado quando constituíram e legislaram; mas como esses agentes se comportariam se, vivendo o tempo de hoje face à tradição que criaram, tivessem de lidar com os problemas com

os quais lidamos, vivendo o nosso tempo e sendo crias dele126.

Também Robert Alexy envereda pelo posicionamento teórico de que a decisão judicial é um ato constitutivo: ora, se a argumentação é parte fundamental para a descoberta de qual é o valor preponderante a prevalecer em cada decisão difícil, como afirmar que o exercício da retórica forense na construção do sentido exposto pela decisão judicial sucede, e não precede, a conclusão dessa mesma decisão encontrada? A conclusão só existe porque vem a ser fruto de uma argumentação que até então não havia sido construída – e, logo, até o raciocínio subsuntivo, um raciocínio considerado puramente mecânico (premissa maior mais premissa menor levam à conclusão) pode passar a ser criador. Afinal, encaixar a premissa menor (caso judicial) sob a regência da premissa maior (Constituição ou lei) para viabilizar a conclusão (resultado decisório) já é, em si, um exercício argumentativo que pode levar ou não o caso àquela regência (o vínculo entre as premissas) e, por conseqüência, permitir (ou não permitir) a conclusão procurada. A preocupação de Alexy com o que ele mesmo chama de “princípio da proporcionalidade” é derivada exatamente de um viés discursivo; adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (subcomponentes desse princípio) são elementos teóricos

que exigem argumentação para a correta aplicação conceitual de sua formulação127.

126 DWORKIN, Ronald. O Império do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 211-221. 127 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 520-574.

Destaca-se entre todos, porém, a respeito não apenas do caráter constitutivo da decisão judicial, mas do caráter constitutivo de qualquer ato normativo, e de como esse ato normativo é próprio do Direito, mas oriundo de uma gênese social, Jürgen Habermas, filósofo alemão. A sua condição de primus inter pares vem do rigor conceitual e da profundidade filosófica que imprimiu aos seus estudos, começando com uma investigação sociológica e terminando com uma análise de Filosofia Jurídica sobre o papel do agir comunicativo e sua interferência sobre o exercício democrático e a realização do Direito. De uma formação marxiana, filiou-se a uma corrente de pensamento conhecida como Teoria Crítica – uma denominação genérica para os que, de alguma forma, não compartilham do ideário liberal, apontado como o hegemônico no Ocidente contemporâneo. Essa filiação implicou revisitar alguns conceitos de Teoria Política estabelecidos em sua época (mas até hoje importantes), como, por exemplo, o da autoridade.

Enquanto, por exemplo, o poder ou a autoridade legitimavam, por si sós, uma ou outra visão de Estado, conforme a orientação teórica preferida de cada corrente de pensamento, e enquanto a sociedade civil era explicada com base (quase) exclusiva na coerção necessária a uma vida gregária (para evitar a “guerra de todos contra todos”), Habermas preferiu ir mais a fundo e pensar o Estado como um locus de poder, sim, e de poder administrativo, mas de um poder que usualmente é conseguido com base em estratégias fundadas no convencimento dos atores e agentes políticos. Em outras palavras, a percepção de poder político passa, de acordo com Habermas, necessariamente, pela questão da legitimidade, e não apenas da autoridade: o poder de mando que não se faz aceitar, do ponto de vista discursivo, não consegue durar sustentado só e tão somente pela coerção: daí deriva a importância estratégica de uma opinião

pública favorável, por exemplo, para haver o mínimo de governabilidade administrativa128.

128 E isso porque a política é uma área do saber e da práxis social que precisa de uma justificação moral, pelo

menos no plano discursivo, para acontecer; não se admite, como corolário da doutrina kantiana, argumento que não passe pelo teste da coerência no tribunal da razão: “O discurso teórico é o medium em que as experiências negativas são elaboradas de modo produtivo e, por conseguinte, a forma de argumentação na qual pretensões de verdade controversas podem ser transformadas em tema. Algo semelhante acontece na esfera prático-moral. Consideramos racional a pessoa capaz de justificar suas ações perante contextos normativos existentes. E isso

Ora, se assim se mostra o cenário político, é porque assim também se mostra a sociedade civil: ela se constrói argumentativamente, por consensos ampla e efetivamente constituídos –

isto é, pela comunicação entre os seus integrantes129.

O mundo da vida, então, que tenta traduzir a idéia de totalidade da herança marxiana, e que nada mais é que o conjunto de as ações antrópicas, derivadas do homem, contra as quais se recorta a problematização na vida social, forma-se de interações comunicativas, visto que a cultura é uma linguagem, e, por conseguinte, pela linguagem, ou pelo agir comunicativo (mais

apropriadamente falando), pode ser (re)ordenado ou (re)organizado130. Claro que, contra isso,

estão sistemas já estabelecidos, como o Estado e o Mercado, refratários a qualquer mudança profunda na sociedade civil porque geridos por outros imperativos (no caso, respectivamente,