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4 O CONTEXTO HISTÓRICO DE FORMAÇÃO DA CATEGORIA FILOSÓFICA “DIREITOS” – E DE COMO ESSA CONCEPÇÃO SE TORNOU JURÍDICA

4.1 Do contexto histórico que levou a categoria “direitos” a ser uma pauta da Modernidade

Como toda criação histórica, a concepção ética kantiana não surgiu do nada e, apesar da crítica de Michel Foucault à “antropologia” de Kant, que um tanto quanto ingenuamente pressupõe todos os homens em um exercício uniforme da faculdade racional, sensíveis aos mesmos valores morais e, logo, chegando às mesmas conclusões éticas a respeito das escolhas individuais, o fato é que ela é criativa e ampla o bastante para coroar uma turbulenta história européia de luta pelos direitos do indivíduo – história essa que, na verdade, se confunde com uma outra, a da construção do Ocidente moderno (ou contemporâneo, para ser mais preciso) como um lugar onde a tolerância, o respeito e a liberdade permitem aos mais diversos sujeitos a experiência do desenvolvimento de sua personalidade sem que nem o Estado nem os demais

concidadãos possam tolher a autonomia de ser quem se é62. Essa história turbulenta, assim

como quase tudo que diz respeito à contemporaneidade, começou com o fim da Idade Média e com a necessidade de justificar, racional e moralmente, o novo poder que surgia – o poder do Estado63.

Se a lógica feudal de justificação da autoridade, fundada em laços pessoais, familiares

ou de tradição64, era de proximidade, a lógica estatal (do Estado-Nação Absolutista que

62 Essa visão é muito cara especialmente à cultura cívica dos Estados Unidos da América (JEFFERSON,

Thomas. Writings. New York: The Library of America, 1984).

63 Thomas Hobbes é o autor da tentativa pioneira de justificar a liberdade pela obediência e, em muitos pontos,

essa empreitada foi bem-sucedida (HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003).

64 Para Habermas, a tradição, até a Modernidade, serviu de principal esteio à eticidade das sociedades: se essa

eticidade é uma interpretação da realidade que legitima “a ordem social existente, estabelecendo-a não apenas como a desejável, mas também como a única possível”, a eticidade única compartilhada “por todos os membros da comunidade determinava também o pertencimento a um mesmo corpo político” – e a fonte, por excelência, dos “princípios que estruturavam essa eticidade única era a tradição [...] Vê-se já que, em uma sociedade

marcou a Idade Moderna) de justificação da autoridade veio a se estabelecer em função da origem divina dos reis, ou do seu direito natural de governar. Lançou-se para fora da história humana o fundamento da autoridade a fim de poder argumentar que, independentemente de não se ter qualquer ligação pessoal, familiar ou tradicional com o rei, ser-se-ia obrigado a obedecê-lo, sob pena de se estar infringindo ora a lei divina, ora a lei natural. Se mandar era um direito real, exercido sob inspiração superior e inquestionável, obedecer era um dever natural dentro da concepção de mundo que marcou o fim do medievo. Na Idade Moderna, a sociedade civil seguiria as mesmas regras da natureza e a cultura se pautaria pela analogia com a lei natural: o que explicava o mundo, explicava a sociedade, e essa filosofia política procurou justificar a legitimidade desse novo poder, o do Estado Absolutista, isto é, o poder político, mas real – a plenipotenciária e sobre-humana vocação de uns poucos eleitos entre os

muitos que ocupavam (sem, entretanto, a mesma sorte) a face da Terra65.

A grande crise econômica e intelectual da organização social absolutista, estamental, fisiocrata e metalista que marcou a passagem da Idade Moderna para a Idade Contemporânea vitimou também o discurso de justificação da autoridade; ela não pôde voltar a ser como era antes, no período feudal, de tutela com base em relações familiares e, ao mesmo tempo, não conseguiu se manter firme na gênese divina ou natural do poder político. E isso porque o desenvolvimento das manufaturas, das trocas comerciais e dos investimentos de capital – no sentido arcaico de investimento de moeda a troco de juros ou lucro sobre essa mesma moeda – evidenciou a total inépcia produtiva (e de gerenciamento econômico) tanto da aristocracia européia quanto de seu “núcleo duro”, as famílias reais. Como podiam entender a aristocracia e a realeza daquilo que não faziam, isto é, como podiam definir e determinar sobre trabalho, tradicional, o dissenso, a discordância” resulta na exclusão do sujeito em relação à comunidade (NOBRE, Marcos. Introdução. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo. Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008.p. 15-35, p. 16).

65 Não se fala ainda em poder estatal porque não se concebe, nesse momento, o Estado como uma ficção jurídica

apartada da figura do Chefe de Estado ou de Governo. É dessa época, e a resume muito bem no campo político, a célebre frase de Luís XIV, o Rei Sol: “L’Etát est moi”, isto é, “O Estado sou eu”.

economia e dinheiro se sequer sabiam como funcionavam as dinâmicas comerciais de compra e venda – por que pura e simplesmente não eram “obrigados”, por “direito de nascimento”, a

participar delas? 66, 67.

Tocqueville é mais conhecido pelo seu estudo sobre a Democracia nos Estados Unidos da América, mas se debruçou sobre a realidade francesa do Antigo Regime e foi pioneiro na observação dessa emancipação (inclusive) econômica do sujeito (dito) comum. A corvéia e os direitos de senhor feudal ainda imperavam no que mais tarde seria a Alemanha, mas, já no século XVIII, na França,

havia muito tempo que não existia nada semelhante. O camponês ia, vinha, comprava, vendia, tratava, trabalhava à vontade. Os últimos vestígios da servidão eram vistos apenas em uma ou duas províncias do leste, províncias conquistadas; em todas as outras partes, desaparecera totalmente [a série de restrições econômicas do período feudal] e mesmo sua abolição remontava a uma época tão distante que a data já estava esquecida. Pesquisas eruditas feitas em nossos dias provaram que já no século XIII não se encontrava servidão na Normandia68.

Curiosamente, de maneira inclusive antecipatória em relação aos desdobramentos que teria a Teoria Política da Modernidade, Nicolau Maquiavel já apresentara sua visão dos fatos e da História de maneira a contribuir para a elucidação do debate sobre a autoridade do Estado – e não é à toa que é apresentado como o primeiro “moderno” da política, isto é, o primeiro a pensá-la fora dos conhecidos padrões idealistas da Antiguidade, eminentemente platônicos, e

66 Apesar de concordarem Sieyès, Rousseau e muitos outros de maneira cabal quanto a esse aspecto, o mais

contundente testemunho sobre a inapetência real de tratar o que quer que seja, em especial a matéria pública, vem de Thomas Jefferson, em carta a John Langdon, datada de 05 de março de 1810. Os reis são comparados a animais criados em cativeiro, alheios ao mundo e entregues à satisfação mundana de suas próprias veleidades. E espanta o realismo (com o perdão do aparente trocadilho) do retrato (JEFFERSON, Thomas. Writings. New York: The Library of America, 1984. p. 1.221).

67 A percepção de que as cortes deveriam justificar sua existência (e os altos gastos que impunham à população)

já era corrente na Idade Moderna, pelo menos entre seus mais afinados pensadores. Em Comentários sobre a

primeira década de Tito Lívio, Maquiavel narra um exemplo antigo que, além de divertido, seria edificante, em especial para os governantes: “Alexandre, o Grande, queria construir uma cidade que fosse monumento à sua glória. O arquiteto Dinocrato mostrou-lhe que era possível construí-la facilmente sobre o monte Atos. Além da força natural do lugar, dizia, poder-se-ia esculpir a montanha com forma humana – um projeto maravilhoso, digno do seu poder. Alexandre perguntou, então, de que viveriam os habitantes da cidade; o arquiteto respondeu que não havia pensado nisso. Alexandre riu e, deixando de lado o monte Atos, mandou lançar os alicerces de Alexandria, em um local onde os homens se fixariam prazerosamente, seduzidos pela fecundidade do solo e pela dupla vantagem de terem ali, ao alcance, o Nilo e o Mediterrâneo” (MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários sobre

a primeira década de Tito Lívio. 5. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. p. 21).

fora dos padrões medievais, basicamente interessados no poder espiritual e não temporal69. Ao contrário do que facilmente se diz e mais facilmente ainda se aceita, Maquiavel, apesar de uma indiscutível inclinação pelo pragmatismo (o que não é, convenham todos, nem de longe um defeito), ou justamente por causa disso, nunca foi de desprezar o meritório “exemplo dos antigos”. Afinal, quem estudar

a história contemporânea e da antiguidade, verá que os mesmos desejos e as mesmas paixões reinaram e reinam ainda em todos os governos, em todos os povos. Por isso, é fácil, para quem estuda com profundidade os acontecimentos do passado, prever o que o futuro reserva a cada Estado, propondo, então, os remédios utilizados pelos antigos ou, caso não seja possível, imaginando novos remédios a partir das semelhanças entre os acontecimentos. Porém, como essa praxe de comparar passado e presente é negligenciada, ou aqueles que estudam o passado não sabem manifestá- la, daí resulta que as mesmas desordens assolam as diferentes épocas70.

Nem muito menos ignorou ou menosprezou o espírito cívico que fez Roma ser Roma,

isto é, a República que inspirou as demais congêneres da História71:

Um povo que tem o poder, sob o império de uma boa constituição, será tão estável, prudente e grato quanto um bom príncipe. Poderá sê-lo mais ainda do que o príncipe, inclusive, ainda que este seja reputado pela sua sabedoria. Por outro lado, um príncipe livre do jugo do das leis será ingrato, inconstante e imprudente, muito mais que o povo [insatisfeito ou rebelado]. A diferença que se pode observar na conduta de um e outro não vem do caráter, semelhante em todos os homens (...); provém do respeito às leis sob as quais vivem, que pode ser mais ou menos profundo. Ao estudar a história do povo romano, vemos que, durante quatrocentos anos, ele foi inimigo da realeza, mas [ao mesmo tempo] apaixonado pela glória e prosperidade da pátria72.

Só e tão somente um condottieri de espírito público, isto é, que ponha como prioridade o bem comum, pode ser bem sucedido na sua empreitada como governante. E por quê?

69 Maquiavel curiosamente não desdenha da prática religiosa, mas a vê como um meio de exercício coletivo de

uma identidade que deve tanto realizar o cidadão quanto unir a sociedade civil em prol de um determinado ideal compartilhado. A crítica sobre a moral religiosa cristã da sua época é de que ela não prepara o cidadão para o embate público nem edifica o indivíduo na sua dimensão privada (MAQUIAVEL, op. cit., p. 57-68).

70 Id., op. cit., p. 129.

71 “Os romanos foram os que, com menos freqüência, transgrediram suas leis, e, por isso, foram os únicos a tê-

las tão belas”. Assim Rousseau caracteriza o espírito cívico romano, que era republicano tanto no sentido de chamar à responsabilidade (pela manutenção da sociedade civil) os legisladores, quanto de chamar também a uma outra responsabilidade, a de respeitar a lei, a totalidade dos cidadãos (e nem por isso essa segunda era, de alguma forma, menos importante que a primeira para a manutenção da sociedade civil) (ROUSSEAU, Jean- Jacques. O contrato social: princípios do direito político. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 16).

Porque somente com essa preocupação direcionada a todos indistintamente se pode ter a idéia de ordem, cooperação e progresso que passaria a pautar uma nação respeitável, que se enxergasse como unidade congregada e se posicionasse de maneira ousada e independente em relação à inconstante “Fortuna”, fazendo, assim, com que a virtú fosse expandida e vivida no meio social, em vez de ser (somente ou supostamente) um “privilégio” de casta de nascimento daqueles que se arrojam perante o destino. Não se quer dizer, porém, que Maquiavel fosse um “liberal” ou “democrata”, pelo menos não no sentido ideologicamente carregado que viriam a ter esses termos, mas quer-se dizer que, assim como O Príncipe se dedica a analisar jogos de poder, o Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio quer descobrir, enfim, o que fez dos “antigos” os “clássicos”, isto é, a preocupação é descobrir como imitar os inimitáveis; é nessa pesquisa que Maquiavel percebe que a grandeza da Antiguidade esteve em dimensionar quão importante era o “espaço do público”, isto é, o espaço para tratar do que concerne a todos sem

tocar especificamente a alguém73,74.

Em resumo, a grandeza foi conceber um espaço (e um espírito) republicano75.

73 O que é coletivo se torna universal quando se impessoaliza e, assim, o “espaço do público” só existe quando o

indivíduo se confunde com o homem em geral, passando a ser singular e coletivo simultaneamente – um cidadão do mundo, segundo Jürgen Habermas (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2013. v. 1, p. 17).

74 O Príncipe é a análise prática de como a virtú deve ser cultivada para que o governante (ou o príncipe) possa

resistir à “Fortuna”. A virtú é um misto de qualidades (especialmente objetividade, realismo e pragmatismo), e a “Fortuna”, o imponderável da vida, em especial, da vida política – que, na época de Maquiavel, não levava, em caso de insucesso, à perda de mandato ou da liberdade, mas do patrimônio, da honra e da vida. Ao contrário do que costumeiramente se diz sobre Maquiavel, inclusive, ele ainda assoma como um ilustre civilizado dentro de seu contexto histórico: afinal, se é verdade que ele recomenda que, entre ser amado e ser temido, é preferível ser temido, também é verdade que só assim o recomenda por uma questão de eficiência e inevitabilidade; caso seja possível, é preferível ser merecedor tanto de estima quanto de respeito. Raymond Aron, comentarista da edição consultada para este trabalho, concorda – e vai além: para ele, Maquiavel passou para a posteridade como cínico quando deveria tê-lo feito como estrategista; mas curiosamente (e paralelamente) aqueles que realmente não têm escrúpulos têm sido lembrados pelos historiadores como mártires ou visionários, especialmente se professaram uma determinada inclinação ideológica (MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 131-156). A respeito também de um Maquiavel mais republicano que despótico, vale a consulta ao sintético, mas elucidativo, e, por que não dizer, encantador, Maquiavel, de Newton Bignotto, especialmente as p. 28-38 (BIGNOTTO, Newton. Maquiavel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003).

75 Ordem, cooperação e progresso: a liberdade é um luxo que só podem ter os que já habitam repúblicas sadias e

duradouras: “De todas as instituições romanas, a ditadura é sem dúvida uma das que mais merece atenção; é difícil que um Estado, sem uma ordenação [institucional de exceção] se defenda de perigos extraordinários. Ordinariamente, o ritmo de um governo republicano é muito lento e, como nenhum conselho ou magistrado pode assumir plenamente autoridade para atuar, há sempre a necessidade de consultas; e, como é preciso reunir todas as vontades em um determinado momento necessário, a ação do governo é perigosamente lenta quando surge um

A contribuição de Maquiavel, então, ao debate do início da Modernidade é essa: se não existe uma razão familiar ou tradicional que justifique o exercício de poder por uns e não por outros, só se pode legitimar um Estado pela persecução do interesse público, entendido aí não como a vontade da maioria (uma idéia ainda estranha aos ouvidos da época) nem como a vontade de cada um (que podem pensar no interesse particular e não no público em conjunto). Se o Estado persegue esse interesse que não beneficia este ou aquele, mas pretende uma nação forte e próspera para benefícios de todos, tem-se uma verdadeira república, isto é, um espaço do público que justifica a existência do Estado por lhe dar fim específico – cuidar do que diz respeito a todos, sem pensar especificamente neste ou naquele para decidir acerca disso. Daí se falar, por exemplo, em um Maquiavel republicano avant la lettre, ou em um Maquiavel pedagogo, que pense em como a virtú é uma faculdade humana a ser vivida e experimentada – a importância que ele atribui ao exemplo dos antigos revela uma inegável crença no poder de aprender pelo estudo e, consequentemente, de ser possível formar cidadãos ativos, conscientes e altruístas por meio da educação.

Claro, porém, que essa idéia de República que Maquiavel traz dos antigos é totalmente estranha àquele momento europeu, marcado pelas monarquias portuguesa, espanhola, inglesa e francesa; mas era muito familiar ao território do que hoje se chama Itália, visto que, naquele momento, vivia-se ali uma organização geopolítica diferente: cidades e regiões gozavam de autonomia política. No caso específico da cidade de Veneza, que, além de se apresentar como uma república aristocrática, era muito bem-sucedida economicamente e relativamente estável do ponto de vista político, chegou-se a apelidá-la de “sereníssima república”. Essa inferência maquiaveliana demonstra a argúcia de seu estudo do passado e sua capacidade de antever o mal inesperado, que precisa ser abordado sem demora”. Mesmo assim, efetivamente perigoso para Maquiavel não seria a perda temporária e justificada de liberdade na república, mas a preferência de um, ou uns, frente a todos: quando não se chega “a um acordo para estabelecer uma lei que proteja a liberdade, e se favorece um cidadão [em detrimento dos demais], o monstro da tirania ergue sua cabeça” (MAQUIAVEL, Nicolau.

Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. 5. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. p. 114, 133).

que, no fundo, faria de uma nação uma experiência venturosa ou não – inferência essa que só seria retomada séculos depois, em um posterior momento de radicais mudanças sociais na Europa, por Jean-Jacques Rousseau, não por acaso um outro pensador a se debruçar sobre o passado para entender o presente, a pensar em um espaço do público, a falar de República e a ser, ou tentar ser, pedagogo.

A definição de Jean-Jacques Rousseau a respeito do contrato social se tornou célebre por causa disso, isto é, por causa da responsabilidade que imputa aos membros da sociedade civil pela vividez e permanência da República, que não pode ser mais ativa do que os seus cidadãos; afinal, cada um,

dando-se a todos, não se dá a ninguém, e, como não existe um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo o que se perde e mais força para se conservar o que se tem. [...] O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto deseja e pode alcançar; o que ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui76.

Mas cada coisa a seu tempo: voltemos à Modernidade e à percepção, enfim, de que os sujeitos eram donos de sua vida, de sua força de trabalho, do fruto dessa força e, por fim, mas não menos importante, de direitos, isto é, da capacidade e possibilidade de reivindicar para si a proteção das faculdades naturais que desempenhavam – falar, crer, trabalhar e ir e vir, entre outras. Essa percepção sobre o mundo social levou os sujeitos a elaborar uma nova concepção de natureza humana, de que ela foi agraciada com essas faculdades por uma instância superior à nossa, isto é, por uma instância que age independentemente de nossa vontade, chame-se ela Natureza, Acaso ou Deus e, por via de conseqüência, que essas faculdades, que essa, digamos, “graça” que elas representam não podem ser sindicadas pelo juízo humano – afinal, se somos todos, pelo simples, imutável e inegável fato de sermos humanos, congenitamente dotados de direitos naturais, próprios e inalienáveis, decorrentes do imponderável, como autorizar a quem

76 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato social: princípios do direito político. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes,

quer que seja que aja arbitrariamente sobre isso, isto é, que se sinta (por mais autoridade real que tenha) na prerrogativa de invadir o que me é próprio?

Se não tem o indivíduo por que ter tolhidas as suas faculdades naturais – dentre as quais a de trabalhar e a de possuir – a não ser que isso seja realmente necessário, por clara via de conseqüência, uma autoridade que não respeite limites derivados da natureza humana, e que não seja também derivada da manifesta vontade do titular da liberdade em questão, é uma

autoridade arbitrária – e que não merece o respeito do indivíduo77. A justificação política da

autoridade, então, passa a se pautar por uma concepção filosófica ligada claramente à ética de valorização da pessoa humana – e passa a residir no consentimento. Seja o consentimento de quem abriu mão, ainda que parcialmente, de sua liberdade plena e absoluta para viver em sociedade, seja do consentimento manifestado através do exercício do sufrágio. Daí brotaram as Revoluções Burguesas, refulgentes de Iluminismo, e daí brotam, ainda hoje, as idéias que

povoam nossa visão de indivíduo, liberdade e vida em sociedade78. Essa visão de ser humano

a consentir com o poder e a formá-lo a partir de seu consentimento, assumindo a soberania do governado que vem a marcar a limitação do governante passou para o registro histórico como uma questão tanto de dignidade quanto de identidade. Somente a liberdade protege o sujeito do abuso, e o abuso, isto é, a intromissão indesejada e injustificada calha de ser a insígnia do