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Cult x Qualidade

8. Senso comum e crítica popular

Paralelamente à crítica especializada por sujeitos dentro do campo artístico, tida como autoridade para julgar a arte, os meios de comunicação de massa exigem que tudo se torne objeto de comunicação, o que propicia que subculturas tomem a palavra. Kant, em sua Crítica da razão pura, intitula o juízo de um ―bom senso‖, ou um talento que não pode ser ensinado, apenas exercido. O gosto aparece, na obra de arte, em forma de uma determinada ―representação da faculdade imaginativa‖.

Kant empenhou-se também em estabelecer, por um lado, a distinção entre o que agrada e o que dá prazer e por outro, em discernir o interesse da razão que define o Bom. Enquanto Bourdieu (2008) aponta que, inversamente, os indivíduos das classes populares emitem julgamentos com referências muitas vezes explícitas às normas da moral ou do decoro. Seja por meio de críticas ou elogios, sua apreciação refere-se a um sistema de normas, cujo princípio é sempre estético.

Como vimos no segundo capítulo, a respeito da participação pública, Vattimo (1992) acredita que em uma sociedade democrática o homem se torna consciente de si numa ―esfera pública‖,

160 com livre discussão, sem exclusões e preconceitos. Assim a crítica leiga, a opinião da audiência, cria o debate público em torno dos produtos culturais, e este debate deveria, segundo Vattimo, ser considerado pela mídia.

Nesse mesmo movimento de valorização da opinião do público, Stephenson e Debrix (1969), darem importância ao crítico perito, afirmam que sem dúvida há certos artistas difíceis, cuja apreciação demanda mais esforço e mais erudição do que dispõe uma plateia popular. Por outro lado, defendem que apesar dessa reserva, basta pensar em Shakespeare e Charles Chaplin para compreender que o gosto popular pode ser tão bom como qualquer outro. Atentam, ainda, à relação do julgamento com as gerações e à condição das obras ao longo da história.

Mais do que a popularidade corrente, mais do que qualquer crítico, o julgamento da posteridade é que tem mais pêso, porque consiste em camada após camada, tanto de julgamento popular como dos ―melhores‖ julgamentos individuais, e isso devemos considerar como o critério mais acertado de qualidade em uma obra de arte. (1969: 225)

Entre os fatores que influenciam a formação do juízo, inclui-se o conhecimento sobre a história da obra, seu autor, seu contexto. Se as gerações futuras, com seus julgamentos individuais, avaliam determinada produção artística, é provável que a subjetividade do julgamento tenha sido construída com base em juízos anteriores. Esse cenário representa um ambiente no qual a crítica individual se forma e se desenvolve com a familiaridade e o conhecimento da obra. Conforme afirma Lippmann (1980) colhemos, para nossa opinião, aquilo que nossa cultura definiu para nós, e o que não conhecemos nos soa algo estranho e desconexo. Assim, grande parte das vezes, ―não vemos primeiro para depois definir, mas primeiro definimos e depois vemos.‖ (1980:151)

Existiria, portanto, um cenário no Brasil em relação à televisão, ou mesmo em relação à telenovela que, por possuir espectadores fiéis, significaria que todos cultivam o sentimento de ―especialização‖ e que nada existe de substancial a ser apreendido dos outros (WOLTON, 1996). Ao contrário de conhecimentos relacionados à medicina, à economia ou à arqueologia, no que se refere à televisão, o indivíduo acredita que é um expert e procura demonstrá-lo. O juízo crítico do público existe justamente porque ele a assiste. Ou ao menos este deveria ser o

161 pressuposto para que o julgamento crítico fosse válido, caso contrário seria apenas um discurso desinformado. As reclamações formais sobre o conteúdo transmitido, feitas pelos espectadores, mostram que eles emitem juízos e não são nada passivos.

Portanto, o juízo dos telespectadores representa um modo de ver e de pensar, que pode e deve ser considerado como crítica válida para análise da qualidade. Segundo Wolton, ―na realidade, o único discurso crítico positivo sobre a televisão que se devia aceitar e analisar é o do público, e, no mais das vezes, o consideramos apenas como conversa de botequim!‖(1996: 55). E ainda segundo, Stephenson e Debrix, ―numa atmosfera livre, forma-se um consenso de opinião que, geralmente, irá constituir algum guia para a qualidade‖ (1969: 225)

Lopes (2005a) associa essas noções com a televisão, por estar implicada na reprodução de representações que perpetuam diversos matizes de desigualdade e discriminação, mas também por possuir uma penetração intensa na sociedade brasileira devido à capacidade de alimentar um repertório comum por meio do qual pessoas de classes sociais, gerações, sexo, raça e regiões diferentes se posicionam e se reconhecem umas às outras. Longe de promover interpretações consensuais mas, antes, produzir lutas pela interpretação de sentido, esse repertório compartilhado está na base das representações de uma comunidade nacional imaginada que a TV capta, expressa e constantemente atualiza.

Segundo Lopes (2005a), essa noção é útil para entender o significado das telenovelas no Brasil, ao se pensar que o ato de assistir a elas diariamente, ao longo de quase 50 anos, constitui um ritual compartilhado por pessoas em todo o território nacional, que dominam as convenções narrativas consolidadas pela telenovela e que tomam os padrões nela mostrados como referenciais de acordo com os quais definem "tipos ideais" (no sentido weberiano) de família brasileira, mulher brasileira, homem brasileiro e também de corrupção brasileira, violência brasileira, etc. A autora faz uso da noção de comunidade nacional imaginada para indicar as representações sobre o Brasil veiculadas pelas novelas, e como elas produzem referenciais importantes para a atualização do conceito de nação e de identidade nacional. No caso brasileiro, trata-se do fato paradoxal de a telenovela, uma narrativa ficcional, ter se convertido no Brasil em um espaço público de debate nacional.

A televisão oferece a difusão de informações acessíveis a todos sem distinção de pertencimento social, classe ou região. Ao fazê-lo, ela torna disponíveis repertórios

162 anteriormente da alçada privilegiada de certas instituições socializadoras tradicionais como a escola, a família, a igreja, o partido político, a agência estatal. A televisão dissemina a propaganda e orienta o consumo que inspira a formação de identidades (CANCLINI, 1995). Nesse sentido, a televisão, e a telenovela em particular, é emblemática do surgimento de um novo espaço público, no qual o controle da formação e dos repertórios disponíveis mudou de mãos, deixou de ser monopólio dos intelectuais, políticos e governantes, dos titulares dos postos de comando da sociedade.

Ainda de acordo com Lopes (2005a), quando uma novela galvaniza o país, nesse momento ela atualiza seu potencial de sintetizar o imaginário de uma nação, ou de se expressar como nação imaginada. Segundo a autora, esta representação, ainda que estruturalmente melodramática e sujeita à variedade de interpretações, é aceita como verossímil, vista e apropriada como legítima e objeto de credibilidade. Em processo semelhante, a televisão também cria recursos de envolvimento e sensibilização do público, capazes de assegurar uma relação contínua e íntima com o telespectador.

Ao utilizar uma estrutura narrativa personalizada e pouco definida em termos ideológicos ou políticos para tratar de assuntos relativos ao espaço público, as telenovelas levantaram e talvez tenham mesmo ajudado a dar o tom dos debates públicos. Tornaram-se dois exemplos históricos a associação da novela Vale Tudo (Globo, 1988) à eleição de Fernando Collor de Melo que calcou a sua imagem eleitoral como "o caçador de marajás", isto é, de banimento da corrupção econômica e política do país, bem como a influência da minissérie Anos Rebeldes (Globo, 1992) no processo de impeachment desse mesmo presidente, três anos depois.

A força e a repercussão da novela mobilizam cotidianamente uma verdadeira rede de comunicação, através da qual se dá a circulação dos seus sentidos e provoca a discussão e a polêmica nacional. Para Lopes, Borelli e Resende (2002), há um risco de que a telenovela se torne um espaço de intenso fórum de debates, deixando em segundo plano as características ficcionais do formato. Por meio desse fórum de debates capilarmente difuso, complexo e diversificado, as pessoas sintetizam experiências públicas e privadas, expressam divergências e convergências de opinião sobre ações de personagens e desdobramentos de histórias. O caráter de repertório compartilhado permite a manifestação de diferenças, a expressão das competências sobre o gênero, de domínio das convenções dramatúrgicas da telenovela, da sensibilidade do olhar que cerca os detalhes, seja nos cenários e nos figurinos, seja nos

163 múltiplos plots que se entrelaçam no emaranhado de 200 capítulos para, ao fim, emitir seu julgamento sobre diversos finais dessas tramas. Critica-se ou aplaude-se a produção pela condução da obra.

Esta seria uma forma de participação pública que se reflete na crítica e na avaliação dos programas pelo público, após sua transmissão. De acordo com a quinta acepção de Mulgan (1990) sobre a qualidade, ela se manifesta por causar mobilização social e participação civil. Neste caso, a manifestação coletiva serviria de base para uma avaliação da qualidade da produção.

Em suma, o senso comum formado pelo conjunto de juízos de gosto, segundo as noções trazidas por Kant, assemelha-se a uma comunidade de sentimento ou a uma comunidade imaginada que se reflete no gosto popular. Esse gosto se manifesta publicamente por meio do incentivo das premiações à exposição da opinião do público. Assim, a coletividade aparece como um valor quantitativo, pautado no maior número de votos, que acaba por trazer um valor qualitativo à obra, por meio da crítica popular.