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2. Diferentes acepções de qualidade

2.1. Geoff Mulgan e o Cálice Sagrado

Geoff Mulgan é inglês, pesquisador do M.I.T, que organizou o livro The question of quality, editado pelo British Film Institute, no qual escreveu um artigo intitulado ―Television`s Holy Grail: seven types of quality‖. O texto tornou-se referência por abordar amplamente o tema ainda no surgimento do debate, na década de 1990.

Mulgan acredita que qualquer sistema de broadcasting desejável apoiará uma gama de diferentes e, por vezes, contraditórias qualidades. O autor afirma que deveria haver um equilíbrio entre o foco no viés estético, que defende a liberdade dos autores e das produções como obras artísticas, e a visão da liberdade de escolha dos espectadores, e entre a

3Como exemplo, no livro ―A Televisão levada a sério‖, (2000) Arlindo Machado apresenta breves estudos de caso de 30

programas, os quais considera os mais importantes da história da televisão, sendo 27 programas internacionais, e apenas 03 brasileiros.

58 necessidade de diversidade e de solidariedade social. Para ele, apesar de alguns argumentos puramente estéticos sobre programas ou canais específicos, qualquer debate sério sobre televisão deve olhar seu lugar na sociedade, as virtudes e fraquezas da sociedade, seu modo de organização e interesses comuns. ―Este é um ponto chave, que é perdido quando o debate sobre qualidade se foca apenas nos programas. A pergunta mais importante que devemos fazer sobre qualquer televisão é se ela é ou não adequada à sociedade.‖(1990: 8; tradução livre)

Assim, Mulgan sustenta a noção de que, em uma sociedade heterogênea, um sistema de TV adequado deve conservar uma diversidade de qualidades e que o perigo real surge quando um ponto de vista ou interesse supera os outros. Para isso, enumera sete diferentes acepções da palavra ―qualidade‖ que aparecem ao se discutir o meio televisivo.

1. Qualidade do produtor e profissionalismo. Na Inglaterra o discurso de qualidade foi tradicionalmente dominado pelos produtores e realizadores dos programas, levando o termo a uma abordagem do ponto de vista da produção. Nessa acepção, a atenção é voltada aos aspectos técnicos – iluminação, câmera, direção e roteiro, atuação, etc. No entanto, essa preocupação da produção em definir a qualidade de um programa é mais facilmente vista na TV, já que, para Mulgan, em outros meios como na literatura e no cinema, esse papel seria exercido pela crítica, que avalia a qualidade dos produtos. Esse fato justifica e reforça a escolha de abordagem desta pesquisa, que trabalhará mais detalhadamente a importância da crítica televisiva, no capítulo 3.

2. Qualidade do consumidor e o mercado. Se nos anos 1960 e 1970 a discussão girava em torno do ethos e da responsabilidade da profissão de produtor televisivo, nos anos 1990 o debate se voltava principalmente para o mercado empresarial, concorrência e lucro, o que não foi diferente na década de 2000. No entanto, uma mudança significativa notada desde então e cada vez mais forte é a transferência do centro de gravidade do produtor para o consumidor. Essa tendência é visível hoje em dia inclusive pelo já comentado aparecimento de premiações com voto popular, que ganharam notoriedade nos anos 2000, outro foco desta pesquisa. O surgimento das TVs a Cabo, TV Digital, HD, etc., promete ao consumidor muito mais controle, opções de escolha e autonomia. Com isso, o centro passou a ser o consumidor. O autor acrescenta, ainda, que a qualidade era vista como uma das desculpas para bloquear o

59 amplo acesso aos meios e fazer com que o profissionalismo servisse como uma barreira à democratização.

3. Qualidade e Mídia: a estética da Televisão. Para essa perspectiva, a televisão é tratada por uma análise estética, e pela natureza intrínseca do meio, capaz de formar gostos. Segundo Mulgan, um dos erros clássicos das correntes que analisam o ponto de vista do consumidor é pensar que os receptores chegam à TV com gostos e preferências totalmente formados, levando os produtores a buscar um padrão na estética televisiva, com regras ou juízos semelhantes às aplicadas a livros ou filmes. No entanto, uma visão contrária vê a qualidade como a habilidade da televisão de ser fiel à sua natureza instantânea, superficial e, por que não, de simples diversão. ―A melhor televisão seria, portanto, aquela que evita a tentação de ser literatura, mas que produz o mais eficiente efeito de superfície.‖ (p.17). Essa acepção concentra dois pontos de vista. Um deles defende a inovação, o exercício da criatividade e a experimentação, enquanto critica os padrões repetitivos dos programas de televisão. Por outro lado, há uma corrente que trata a televisão como um meio tradicional, que não está condicionado a tais mudanças. Horace Newcomb (apud Mulgan, 1990) sugere que a estética televisual deveria enfatizar as virtudes da intimidade e continuidade. Sob esse ponto de vista, uma estética apropriada para a televisão deve conscientemente se posicionar contra a moda dos experimentos e das mudanças, para seu próprio bem.

4. Televisão como Ritual e Comunhão. A televisão é comumente vista como meio de transmissão de imagens por produtores, quando deveria ser entendida por sua capacidade de criar uma experiência comum, voltada a milhões de pessoas que vivem juntas em uma comunidade ou nação. O aspecto ritualístico da televisão, nesta perspectiva, dá outro sentido à palavra qualidade, ao propor que ―mais do que ter qualquer qualidades intrínsecas, a qualidade de um programa particular na televisão é sua habilidade de desempenhar este papel, sua habilidade de definir e vincular uma comunidade‖ (1990: 20). Mulgan aponta a TV como um fórum no qual milhões de pessoas compartilham uma experiência e que o ritual coletivo de assistir à televisão representa uma de suas qualidades como mídia. Para ele, talvez a qualidade mais importante da televisão sob esse ponto de vista seja seu caráter democrático nivelador, pois o que quer que esteja na tela é acessível a todos, não importando riqueza,

60 classe, raça ou gênero. Esta pesquisa faz uso dessa noção ao defender a importância do debate público, do gosto representado pela crítica popular, como potencial indicador de qualidade.

A qualidade na TV pode ainda ser aliada à produção de valores socialmente positivos e conteúdos instrutivos para crianças e adolescentes, ou seja, possuir um aspecto pedagógico, com valores morais e de promoção de condutas.10

5. Televisão e o Indivíduo. Como abordado no tópico anterior, a televisão é uma mídia democrática por natureza, por ser de livre acesso a todos, e funciona como um fórum democrático, que promove uma esfera pública de debates, muitas vezes superior àqueles propostos pela mídia impressa ou pelas organizações governamentais. Sob essa acepção de qualidade, o primeiro argumento é centrado na ideia de direitos e cidadania. A televisão é vista como uma câmara comum e informativa da qual os cidadãos dependem para explicar os trabalhos da sociedade e as experiências dos outros. Ajuda os espectadores a participar como seres sociais completamente formados, mais capazes de controlar seus próprios destinos. Assim, a televisão é boa quando cria condições de as pessoas participarem ativamente de uma comunidade, quando proporciona as informações mais verdadeiras possíveis e quando atua como incentivadora do processo democrático mais do que para convencer a população de uma determinada opinião. Mulgan afirma, então, que os temas universais, que podem ser aproveitados por pessoas de praticamente qualquer cultura, seriam de maior qualidade do que as mais luxuosas adaptações literárias ou o mais apurado drama social.

6. Ecologia da Televisão. Aqui a televisão é vista não como um instrumento técnico ou prática social, mas como ecologia, ou seja, um sistema complexo e delicado que não pode ser resumido a uma descrição econômica, vista apenas como indústria lucrativa. Como ecologia, requer permanente adaptação, risco e experimentação e os programas que fossem capazes de acompanhar as tendências, experimentar e se arriscar com sucesso em meio ao ecossistema de mídias, seriam produtos de qualidade.

61 7. Qualidade como diversidade. Um dos fatores fundamentais na dificuldade de se definir qualidade é a falta de consenso sobre o que é bom ou ruim, saudável ou prejudicial à saúde. Para Mulgan, diversidade é raramente algo bom, a não ser quando é o tipo certo de diversidade. Isso significa que, de modo geral, as regras apropriadas para uma minoria de canais, voltados às minorias étnicas, serão diferentes daquele da maioria, voltados a um público amplo. Nesse contexto, o perigo se encontra nas emissoras em que os realizadores se preocupam apenas com a audiência e o mercado vira o único critério de julgamento, o que torna as produções menos criativas para atender ao costume do grande público. O autor defende que ―o ideal seria tornar a TV mais política, no melhor sentido da palavra: mais comentada, e mais discutida.‖(1990:30).

Nota-se pelas acepções de Mulgan que a qualidade de um programa pode ter base em critérios que abordam desde o contexto social até as propriedades técnicas do meio. Wolton (1996) acredita que a aliança entre a dimensão técnica e a social é justamente a causa da força e sucesso da televisão.