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[...] precisamos nos entender hoje no meio da tecnologia e o conhecimento propriamente técnico não pode nos ajudar. A filosofia da tecnologia pertence à autoconsciência de uma sociedade como a nossa. Ela nos ensina a refletir sobre o que tomamos como garantido, especificamente a modernidade racional

(FEENBERG, 2010, p. 40).

Introdução

Neste capítulo, o conhecimento será analisado como um aparato tecnocientífico; como razão instrumental que serviu de base cognitiva para a manutenção e a consolidação dos dois sistemas político-econômicos que dominaram o século XX e que, de certa maneira, ainda lutam para manterem-se estáveis sobre essa mesma estrutura. Desde a intrínseca relação da ciência com a técnica, iniciada no século XVII e aprofundada durante o século XX, com o surgimento das ciências da informação, conhecimento e técnica assumiram uma identidade tão similar, a ponto de não ser mais possível determinar uma relação de causa e efeito entre ambas. A tecnociência transformou-se no principal significado do saberfazer científico e penetrou no inconsciente do senso comum como sendo o conhecimento por excelência; aquele que transforma o mundo e as realidades sociais; que gera progresso e revela seus agentes como homens diferentes por sua racionalidade, que tem a capacidade de produzir novos conhecimentos. Por isso, Pablo González Casanova (2006) afirma que:

[...] tecnociência é um termo que denota a ciência que se faz com a técnica e a técnica que se faz com a ciência por pesquisadores que são ao mesmo tempo técnicos e cientistas ou cientistas técnicos, e que trabalham nos mais distintos níveis de abstração e concreção, levando em conta os próprios ou parecidos métodos de suscitar e resolver problemas. A tecnociência corresponde ao trabalho interdisciplinar por excelência [...] (CASANOVA, 2006, p. 22).

Também conhecida como Tecnologia Convencional (TC), a tecnociência se transformou na base cognitiva do sistema capitalista, implantada nos países desenvolvidos, em suas colônias e em países cuja dependência econômica mantinha-os estreitamente vinculados a essas potências. Mas esse modelo também recebeu a adesão da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que, juntamente com o controle estatal da política e da

economia, a transformou na base fundamental para o desenvolvimento do sistema que deveria opor-se ao capitalismo.

As reações à tecnociência ocorreram na Europa e em continentes periféricos, assumindo características genuínas, por se ancorarem no contexto sociocultural de cada região. Por exemplo, as críticas europeias à tecnologia encontram-se focadas mais em questões teóricas, culturais e existenciais, travando um debate sobre os rumos que a tecnologia determinou para si e para a humanidade, isto é, um destino implacável para toda a sociedade contemporânea. Já as reações (críticas) dos setores periféricos são mais de cunho pragmático, buscando uma interrelação com a tecnologia e as alternativas para gerar o mínimo de desenvolvimento regional e romper com a dependência político-econômica do Norte. Dada a sua amplitude, foi feito um recorte desse universo, focando em quatro análises: as primeiras voltadas à crítica da tecnologia; as duas últimas, ao o surgimento da Tecnologia Apropriada e ao modelo alternativo proposto pela Rede de Tecnologia Social do Brasil (RTS), com seus devidos desdobramentos.

A Escola de Frankfurt e a crítica à Tecnologia

Em meados do século XX, quando a modernidade já havia definido a tecnologia como um dos pilares fundamentais de sua base, determinando novas perspectivas para as ciências e estabelecido os rumos de outros setores sociais, começaram a surgir críticas sobre suas formas de atuação e os problemas que dela provinham. Com isso, tem-se o nascimento de um novo campo da filosofia – a filosofia da tecnologia. Dois eventos literários representam este marco: a publicação de Dialektik der Aufklärung, de Adorno e Horkheimer, em 1947, publicada no Brasil como Dialética do Esclarecimento (ADORNO, 1985); e a conferência proferida por Heidegger, em 18 de novembro de 1953 e publicada em 1954, traduzida para o português como “A questão da Técnica” (HEIDEGGER, 2001).

Se por um lado esse marco crítico traz elementos fundamentais para os novos rumos da teoria crítica da tecnologia e de outras ramificações teóricas dele nascentes, inclusive a Tecnologia Social, como veremos no próximo capítulo; por outro, pode-se detectar a visão pessimista da filosofia crítica sobre o papel da tecnologia para a existência humana e para o mundo, contrariando os prognósticos do pensamento marxista da época53. No entanto, as

53 - Alguns autores insistem na ideia de que muitos pensadores de linhagem marxiana possuem uma visão determinista e neutra da tecnociência. Sobre esse tema, Dagnino (2020, p. 48) apresenta as seguintes afirmações sobre a importância das análises de A. Feenberg como um alerta para esses pensadores: “Mas, foi Andrew Feenberg (2002) [...] quem mais contribuiu para minha reflexão. Com sua discussão sobre a neutralidade da tecnologia, ele justificava, historicizava e formalizava com propriedade, mediante um enfoque marxista, a ideia contida na abordagem da construção social da tecnologia de que ‘os artefatos têm política’ (Winner, 1989). E

críticas de alguns pensadores da Escola de Frankfurt54 e de Heidegger trazem importantes contribuições para se compreender posicionamentos derivados das visões determinista, instrumentalista e substancialista da tecnologia.

As críticas iniciais da Dialética do Esclarecimento foram dirigidas ao fracasso das concepções da Aufklärung (Esclarecimento ou Iluminismo), como o eixo do pensamento ocidental que se consolida no século XVIII, com promessas de autonomia da humanidade, em relação ao obscurantismo, à superstição, ao absolutismo político e aos princípios míticos. Ela tinha como objetivo “[...] nada menos do que descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie [...]” (ADORNO, 1985, p. 11). Os autores fazem um deslocamento da origem do Esclarecimento, situando-o na transição do pensamento mítico grego para o filosófico e apresentando a Odisseia de Homero como seu marco original55. A razão para esse recuo encontra-se no fato de que, já no referido período, o pensamento tem como firme propósito subjugar a natureza, desmitificá-la e fazê-la desvendar os seus mistérios mais obscuros.

Nesse sentido, o Esclarecimento moderno assumiu a mesma astúcia de Ulisses para vencer e dominar a natureza – subjetivou-se em um eu sem corpo e sem relação direta com a natureza56; usou a sua práxis para dominá-la e dominar os homens, tal como fez o herói mítico para cumprir as leis, passando ao redor da ilha na qual, necessariamente, ele deveria ouvir o canto das sereias, mas não se entregar aos seus encantos:

O pensamento de Ulisses, igualmente hostil à sua própria morte e à sua própria felicidade, sabe disso. Ele conhece apenas duas possibilidades de escapar. Uma é a que ele prescreve aos companheiros. Ele tapa seus ouvidos com cera e obriga-os a remar com todas as forças de seus músculos [...] Alertas e concentrados, os trabalhadores tem de olhar para frente e esquecer o que foi posto de lado. A tendência que impele à distração, eles têm de se encarniçar e sublimá-la num esforço suplementar. É assim que se tornam práticos [...] A outra possibilidade é escolhida explicava o equívoco em que incorriam e o risco que corriam os que, ambicionando utilizar a tecnologia capitalista para materializar projetos políticos alternativos aceitavam os mitos da neutralidade e do determinismo [...]”. 54 - A Escola de Frankfurt, fundada com o objetivo de desenvolver pesquisa social, possui uma forte vertente social e filosófica, com forte influência do pensamento de Marx, porém buscando sempre certo distanciamento seja do marxismo ortodoxo, ligado à experiência política nascida na Europa, seja a uma visão tradicional que, segundo alguns pensadores dessa Escola, não dava conta de explicar a experiência do capitalismo e sua tecnociência. Dentre os membros desta Escola, esta pesquisa destaca o papel de Horkheimer, Adorno, Marcuse e Benjamin, no debate sobre a sobre tecnologia e sociedade. Os três primeiros autores serão referidos neste capítulo; o último, Walter Benjamin, terá uma participação mais evidente na conclusão da pesquisa, por razões que serão explicitadas no momento oportuno.

55 - (Cf. ADORNO, 1985), especialmente o capítulo “O conceito de Esclarecimento” e o “Excurso I – Ulisses ou Mito e Esclarecimento”, principalmente entre as páginas 33 a 70.

56 - “O eu que, após o extermínio metódico de todos os vestígios naturais coo algo de mitológico, não queria mais ser nem corpo, nem sangue, nem alma e nem mesmo um eu natural, constituiu, sublimado num sujeito transcendental ou lógico, o ponto da referência da razão, a instância legisladora da ação...” (ADORNO, 1985, p. 36).

pelo próprio Ulisses... ele escuta, mas amarrado impotente ao mastro, e quanto maior se torna a sedução, tanto mais fortemente ele se deixa atar [...] (ADORNO, 1985, p. 39-40).

De acordo com os autores, o Esclarecimento sabe como agir para escapar da infâmia e das leis naturais: aposta todas as suas fichas na subjetividade, atando-a no mastro do pensamento racional positivista. Mas, nem ela nem a promessa de felicidade terão o mesmo destino do herói mítico, pois ambos vivem o seu processo de autodestruição, isto é, se transformam na espécie menos natural dos mitos e, por isso mesmo a mais vazia de todas elas:

O esclarecimento... repõe toda a coerência, sentido, vida, dentro da subjetividade que só vem a se constituir propriamente nesse processo de reposição. A razão é para ele o agente químico que absorve a própria substância das coisas e a volatiza na pura autonomia da própria razão. Para escapar ao medo supersticioso da natureza, ela pôs a nu todas as figuras e entidades objetivas, sem exceção, como disfarces de um material caótico, amaldiçoando sua influência sobre a humanidade como escravidão, até que o sujeito se convertesse – em conformidade com sua Ideia – na única autoridade escrita e vazia [...] (ADORNO, 1985, p. 77).

Mas as críticas de Adorno e Horkheimer também são dirigidas às áreas da produção científica, da sociedade, da cultura e da tecnologia, figuradas no que eles denominaram de “Indústria Cultural”. A indústria cultural concretiza a proposta mítica do Esclarecimento – universalização e uniformização do gosto (estética), das práticas (ética) e do conhecimento (epistème), mas com o seu “duplo pervertido”, isto é, o homogêneo (JULLIEN, 2009, p. 13). Com isso, torna-se difícil distinguir o pensamento da Aufklärung desse princípio liberal capitalista. Ao instrumentalizar as produções humanas a um nível de produto e consumo das elites e das massas, o capitalismo põe em prática, com o duplo do universal, o ideal dominante do Esclarecimento – a hegemonia:

A função que o esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber, referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais, é tomada ao sujeito

pela indústria. O esquematismo é o primeiro serviço prestado por ela ao cliente. Na

alma devia atuar um mecanismo secreto destinado a preparar os dados imediatos de modo a se ajustarem ao sistema da razão pura. Mas o segredo está hoje decifrado [...] essa tendência fatal é transformada em sua passagem pelas agências do capital, de modo a aparecer como o sábio desígnio dessas agências. Para o consumidor, não há nada mais a classificar que não tenha sido antecipado no esquematismo da produção [...] (ADORNO, 1985, p. 103).

Porém, toda forma de poder que se impõe carece de legitimidade, isto é, de um mecanismo de convencimento e aceitação popular para sua manutenção. Isso também acontece com o poder hegemônico do capitalismo/esclarecimento. Para constituir uma legitimidade moderna, a indústria cultural a retira de sua própria essência. Trata-se da propaganda, um

dispositivo tecnológico tão inovador que, em curto período, ultrapassa as fronteiras da economia, para prestar serviço a outros modelos do poder político, desde os regimes aristocráticos, cuja legitimidade era fundada sobre outros mecanismos (hereditariedade e divindade), até os regimes totalitários de direita e de esquerda e aqueles que se estabelecem sobre os princípios democráticos.

[...] ao integrar todos os produtos culturais na esfera das mercadorias, o rádio renuncia totalmente a vender como mercadoria seus próprios produtos culturais... Deste modo, ele assume a forma de uma autoridade desinteressada, acima dos partidos, que é como que talhada sob medida para o fascismo. O rádio tornar-se-á a voz universal do Führer; nos alto-falantes de rua, sua voz se transforma no uivo das sirenes anunciando o pânico, das quais, a propaganda moderna é difícil de distinguir. Os próprios nacional-socialistas sabiam que o rádio dera forma à sua causa, do mesmo modo que a imprensa fizera para a Reforma. O carisma metafísico do Führer, inventado pela Sociologia da religião, acabou por se revelar como a simples onipresença de seus discursos radiofônicos [...] (Idem, p. 132).

Outro pensador da Escola de Frankfurt que se preocupou em realizar uma crítica à tecnologia foi Herbert Marcuse (1960; 1964). Com uma forte influência dos pensadores anteriores e do seu mestre Heidegger, este autor desenvolveu uma concepção sobre a tecnologia que repercutiu no pensamento contemporâneo concebido pela filosofia crítica da tecnologia e da Sociologia da tecnologia. Andrew Feenberg (2002), por exemplo, reconhece ter encontrado os elementos teóricos para livrá-lo do pessimismo heideggeriano, da visão positivista da tecnologia (o instrumentalismo e o determinismo) e construir a necessidade de se pensar uma democratização radical da tecnologia no pensamento de Marcuse, em especial, a relação intrínseca da tecnologia com a sociedade e o conceito de “homem unidimensional”, que dará origem ao conceito de “bidimensionalidade da tecnologia”57 utilizado por Feenberg.

As ideias centrais de Marcuse sobre a tecnologia são inicialmente apresentadas na publicação denominada Da ontologia à tecnologia. As tendências da sociedade industrial (1960)58 e ganham mais densidade com seu One-dimensional man (1964). Elas giram em torno

do controle da natureza pelo homem, com a sua utilização e transformação, por meio da ciência moderna. De acordo com essa concepção, as coisas naturais deixam de aparecer ao homem com a sua realidade concreta e passam a ser mediadas pela tecnologia. Com essa experiência, ocorre uma “[...] transformação do mundo natural em mundo técnico”, em que as coisas perdem a sua 57 - Para uma exposição acurada sobre a relação do pensamento de Feenberg e Marcuse ver Lopes (2015); recomenda-se também a tese “Tecnologia Social: fundamentações, desafios, urgência e Legitimidade” (CRUZ, 2017).

58 - Este texto foi originariamente publicado em francês com o título “De l’ontologie à la technologie. Les tendences de la société industrielle (1960). Somente em 2019 ele ganha uma tradução em português. (Cf. MARCUSE, 2019, p. 310-319).

natureza e são preenchidas pela objetividade tecnocientífica. A esse fenômeno, Marcuse (2019) vai denominá-lo de substituição da ontologia pela tecnologia. Ele afirma que

O novo modo de pensamento anula a tradição ontológica, cuja ideia central foi resumida por Hegel: o Logos, a Razão, é o denominador comum de sujeito e objeto como síntese de contrários. Esta síntese se realiza na luta teórica e prática, na transformação do mundo dado em mundo livre e racional: eis a obra da História. Com essa ideia, a ontologia idealista englobava a tensão entre sujeito e objeto, a oposição entre um e outro. A realidade da razão era a evolução dessa tensão nos diferentes modos de ser. Assim, o sistema mais decididamente monista conservava a ideia de uma substância que se desdobra em sujeito e objeto, isto é, a ideia de uma realidade dupla, dualista, antagônica. A transformação da realidade natural em realidade técnica solapa o próprio alicerce desse dualismo. (MARCUSE, 2019 [1960], p. 312). A perda da substância material, em detrimento de uma estrutura matemática, transforma a relação do homem com o mundo e consigo mesmo. Com isso, a existência humana torna-se “unidimensional” e o homem parece perder “[...] a capacidade (faculdade) de viver segundo suas duas dimensões [...]” presentes no período da civilização pré-tecnológica (MARCUSE, 2019 (1960), p. 313). Sobre essa concepção, Wendell Lopes (2015) afirma:

É essa tendência tecnológica, portanto, que suprime uma das dimensões humanas: a dimensão transcendente, a dimensão que busca teórica e praticamente ultrapassar a sociedade dada. Em função dessa tendência atrofiadora [...] o homem “torna-se um ser unidimensional”. O “homem unidimensional” é aquele controlado pela estratégia política tecnológica dos que têm o poder tecnológico, e que desse modo estabelecem uma “neutralização das forças negadoras”. (LOPES, 2015, p. 124).

Com essas ideias, Marcuse (2019) denuncia que a razão instrumental possibilitou ao homem o pleno controle sobre a natureza, quando a tecnologia passou a mediar a relação existente entre eles. Isso fez com que a natureza perdesse sua dimensão natural para transformar-se numa objetividade técnica. Todavia, ressalta o pensador, a natureza não foi a única a perder a sua essência; também o homem se transformou em um ser unidimensional, perdendo, com isso, sua faculdade original de viver segundo duas dimensões. Com o predomínio da racionalidade técnica, o homem perde sua dimensão transcendente e passa a ser controlado pela estratégia política tecnológica.

Heidegger e a essência da técnica

Quanto às críticas heideggerianas, estas estão focadas na própria essência da técnica. Por essa razão, alguns pensadores da filosofia da tecnologia vão defini-las como o pensamento essencialista da tecnologia (FEENBERG, 1999, 2002; IHDE, 2010). Heidegger evita cometer

a mesma falha dos que questionam a técnica por sua simples aparência (artefatos técnicos) ou pelo julgamento passional, baseando-se na forma como ela parece se revelar ao mundo (messiânica ou neutra). Segundo o autor:

[...] haveremos sempre de ficar presos, sem liberdade, à técnica tanto na sua afirmação como na sua negação apaixonada. A maneira mais teimosa, porém, de nos entregarmos à técnica é considerá-la neutra, pois essa concepção, que hoje goza de um favor especial, nos torna inteiramente cegos para a essência da técnica (HEIDEGGER, 2001, p. 11).

As características antropológica e instrumental da técnica residem no fato de ela poder se situar, ao mesmo tempo, como produção e produto, ou seja, servir como meio e fim: por ser o instrumento, o meio que auxilia o homem a agir no mundo, a técnica se revela como um produto com determinada finalidade; por outro lado, porque a sua própria constituição é utilizada como meio para gerar outras técnicas que serão, por sua vez, elementos na geração de outros produtos, pode-se dizer que a técnica também responde por sua produção, como um tipo de causa eficiente, a partir dessa dependência recíproca. Em uma usina de eletricidade, com suas turbinas e geradores, habitam, além das inúmeras técnicas tangíveis, outras formas subjacentes de técnicas (as ciências exatas), que devem atender a um determinado fim. Assim, não é sem um fim determinado que uma usina hidrelétrica é instalada no Rio Reno, mas também não se pode negar as várias mediações e finalidades que ela conserva em sua interioridade:

[...] Muito se diz que a técnica moderna é uma técnica incomparavelmente diversa de toda técnica anterior, por apoiar-se e assentar-se na moderna ciência exata da natureza. Entrementes, percebe-se com mais nitidez, que o inverso também vale: como ciência experimental, a física moderna depende de aparelhagens técnicas e do progresso da construção de aparelhos. É correta a constatação dessa recíproca influência entre técnica e física [...] (Idem, p. 18).

Com isso, a determinação corrente da técnica também revela sua profunda relação com a causalidade grega: ela traz em si os modos de responder e dever. Segundo Heidegger (2001), do ponto de vista grego, “responder e dever” são os elementos da causalidade referentes à produção59. E a produção (poièsis) é aquilo que faz algo eclodir, isto é, vir a ser. Eis o ponto

59 - Eis como Heidegger apresenta a relação entre produção e responder e dever. É importante notar que a sua menção a duas formas responsáveis pela produção – a natureza (physis) e o homem. O que diferencia a primeira da segunda é o fato de a natureza além de retirar de si mesma os elementos para a sua produção, ela se auto-produz, enquanto que a produção humana depende da natureza e do homem para vir a ser. “[...] uma pro-dução poièsis, não é apenas a confecção artesanal e nem somente levar a aparecer e conformar, poética e artisticamente, a imagem e o quadro. Também a Physis, o surgir e elevar-se por si mesmo, é uma pro-dução, é poièsis. A Physis é até a máxima poièsis. Pois o vigente physei tem em si mesmo... o eclodir da pro-dução. Enquanto o que é pro-duzido pelo artesanato e pela arte, por exemplo, o cálice de prata, não possui o eclodir da pro-dução em si mesmo, mas

fundamental do percurso do pensamento de Heidegger: produzir (fazer algo vir a ser) é possibilitar que uma coisa encoberta seja desencoberta, isto é, desvelada como uma verdade:

[...] a pro-dução conduz do encobrimento para o desencobrimento. Só se dá no sentido próprio de uma pro-dução, enquanto e na medida em que alguma coisa encoberta chaga ao des-encobrir-se. Este chegar repousa e oscila no processo que chamamos de desencobrimento. Para tal, os gregos possuíam a palavra alethèia. Os romanos a traduziram por veritas. Nós dizemos ‘verdade’ e a entendemos geralmente como o correto de uma representação. (HEIDEGGER, 2001, p. 16).

Ao aproximar a essência da técnica da verdade, Heidegger (2001) conduz sua questão inicial a outro lócus – ao próprio sentido grego da palavra “técnica”. Ele revela que, dos primórdios do pensamento grego, até o pensamento platônico, a técnica encontrava-se associada à epistème, isto é, ao conhecimento:

De outro lado, o que vale considerar ainda a propósito da palavra tekné é de maior peso. Tekné ocorre, desde cedo até o tempo de Platão, juntamente com a palavra

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