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[...] a história dos homens, tanto do ponto de vista da teoria quanto da prática, é a da constituição de problemas. É aí que eles fazem sua própria história, e a tomada de consciência dessa atividade é como a conquista da liberdade [...]

(DELEUZE, 1995, p. 9-10).

Neste capítulo, apresentaremos algumas estratégias consideradas imprescindíveis para o processo de produção desta pesquisa. São as seguintes: a) exibir os procedimentos metodológicos adotados para sua produção; b) definir alguns conceitos que devem esclarecer e justificar a escolha de seus elementos teóricos; c) apresentar o contexto escolhido, os atores envolvidos e suas possíveis interlocuções. Três itens dos pontos que serão desenvolvidos referem-se ao pressuposto da pesquisa; os outros encontram-se relacionados ao problema que lhe deu origem, aos métodos que a direcionam na busca de uma solução e ao título dado ao trabalho.

Partindo do pressuposto de que a Tecnologia Social é a base cognitiva para a Inclusão Social, deve-se esclarecer os condicionantes teóricos inerentes a esse pressuposto, que são:

Tecnologia Social, base cognitiva e a Inclusão Social – e seus pontos de compreensão adotados

pela pesquisa.

Embora se reconheça que, em última instância, a tecnologia esteja relacionada às ações humanas e ao seu convívio no mundo e na sociedade, sendo, portanto, necessariamente uma produção social, esta pesquisa trabalha com o termo “Tecnologia Social” no sentido mais restrito – como um movimento criado pela Rede de Tecnologia Social do Brasil (RTS), vinculado ao Pensamento Latino Americano sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (PLACTS) e à Tecnologia Apropriada (TA). Mas busca ir além das abordagens teóricas adotadas pela Rede, ao tentar ressignificar concepções sobre tecnologia, o acesso à sua produção e a ampliação dos atores sociais envolvidos, atribuindo-lhe novos sentidos e abrindo espaço para uma relação mais direta entre grupos excluídos e produção tecnológica.10

Inicialmente, os teóricos da TS atuavam na interação de três importantes vertentes – a sociocultural (contexto socioeconômico dos setores excluídos no Brasil e seus modos de

10 - Segundo Varanda e Bocayuva (2009, p. 11), “[...] o termo tecnologia social tem sido utilizado por pesquisadores, movimentos sociais, gestores públicos e diversas organizações, no intuito de demarcar um campo de iniciativas que atuam, segundo uma vertente que critica as visões de neutralidade e de determinismo tecnológico que comumente influenciam os modelos de ciência e tecnologia hegemônicos nas instituições de ensino e pesquisa.”

produção), a epistemológica (marco analítico-conceitual) e a operacional (apresentado em forma de produto, método, processo ou técnica, desenvolvidos para solucionar algum tipo de problema social, com características voltadas para a simplicidade, o baixo custo de implementação, o fácil acesso tanto do ponto de vista de aplicabilidade, quanto de sua amplitude e do impacto social realizado). Todavia o plano de ação política, focado no desenvolvimento da Economia Solidária, passou a receber mais destaque por reconhecerem que o desenvolvimento econômico solidário sustentável pode ser o vetor de transformação social almejado (cf. DAGNINO, 2020).

Isso significa que, em sua origem e significativa trajetória, a TS se manifesta como um processo viabilizador das sustentabilidades econômica, social, cultural, política, tecnológica e ambiental, podendo se transformar na principal base de lançamento de formas alternativas de Inclusão Social, em que as comunidades excluídas, as trabalhadoras e os trabalhadores informais são incorporados e incentivados a construir uma autonomia alternativa ao modelo de produção capitalista. Essas questões deverão ser retomadas no momento oportuno.

O termo “base cognitiva” é utilizado por esta pesquisa como uma plataforma de lançamento de determinado empreendimento humano. Ele foi apresentado por Renato Dagnino e colaboradores (cf. DAGNINO, 2004, 2010, 2014), em seus estudos sobre a TS, relacionado ao processo de trabalho realizado pela comunidade científica em geral, como um pressuposto de que a tecnociência é a base da Tecnologia Convencional. Sua proposta é que ocorra uma ação sistêmica e coordenada, por parte da comunidade acadêmico-científica brasileira, visando à criação de uma base de TS, para atuar nos níveis supracitados, como resposta ao modelo político-econômico global:

O capital possui uma plataforma cognitiva de lançamento muito bem projetada e fabricada; por isto é que esse foguete voa tão bem! Cerca de 70% dos gastos em pesquisa no mundo é realizado em empresas; e, destes, 70% (ou seja, metade do total) em multinacionais. Essa, diga-se de passagem, é a tecnologia que nossas empresas importam, em geral na forma de máquinas e equipamentos. Mas os 30% que em todo o mundo é gasto nas universidades e institutos de pesquisa públicos também estão a serviço da empresa. (DAGNINO, 2014, p. 16).

Além dessa proposição, trabalhamos com as concepções de cognição, ciência e vida desenvolvidas por Maturana (2014; 2014a), Maturana e Varela (2001); de conhecimentos tácito e explícito desenvolvidos por Polanyi (1958,1966), visando dar ao referido termo maior amplitude e uma relação mais direta com o mundo da vida. Por essa razão, na introdução a esta pesquisa, definimos “base cognitiva” como um conjunto de conhecimentos tácitos e explícitos, que servem como dispositivo propulsor de ações humanas em resposta às demandas originadas

do mundo da vida ou do mundo da ciência. Esses conhecimentos implicam a ação de diferentes atores guiados por um conjunto de regras implícitas e/ou formais, representando seu saberfazer. A aproximação das concepções sobre cognição e conhecimento dos três pensadores referidos do pensamento rizomático de Deleuze e Guattari (1992, 2007) fez-nos ampliar as definições tanto de comunidade cognitiva, quanto de base cognitiva, reconhecendo a primeira como agrupamentos coletivos (humanos e não-humanos) que, ao agir, produzem simultaneamente a sua existência como ser vivo e como ser epistêmico; e a segunda como um plano epistêmico que sustenta as práxis humanas (prática e teórica), podendo figurar-se na especificidade do saberfazer tácito ou em sua interrelação com o conhecimento explícito (formal).

Por fim, o termo “Inclusão Social” encontra-se presente no pensamento da maioria dos autores que compõem o lastro teórico desta pesquisa, em especial, o grupo das fronteiras periféricas (cf. item “Traços do pensamento das fronteiras periféricas”), os mentores da Tecnologia Apropriada e aqueles que escolhidos para fundamentar os estudos voltados à relação Ciência, Tecnologia e Sociedade (cf. capítulos III e IV desta pesquisa). Sua produção teórica preestabelece uma análise crítica da conjuntura que deu origem a uma histórica injustiça social protagonizada pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado, que se estruturaram sobre as ideias de hegemonia, dominação, dependência e determinismo científico-tecnológico, como fatores necessários e determinantes para o progresso da humanidade.

A crítica denuncia a falácia desses fatores, demonstrando que o referido progresso é um privilégio de poucos e se processa por meio da exclusão da maioria da humanidade. Ela se intensificou com as análises de representantes da periferia, transformando-se em movimentos de tomada de consciência da condição dos povos que foram subordinados pelo grupo das metrópoles e por seus representantes fora do continente europeu (elite periférica). Ela é movida pelo desejo de transformação da estrutura vigente, de autonomia dos povos, de liberdade das maiorias sempre vistas como minorias (insignificantes) e de valorização de seu saberfazer. Do ponto de vista do conhecimento, denominamos esta crítica de “epistemologias do Sul”, terminologia adotada por Boaventura S. Santos (2018), segundo a qual:

As epistemologias do Sul são um conjunto de procedimentos que visam reconhecer e validar o conhecimento produzido, ou a produzir, por aqueles e aquelas que têm sofrido sistematicamente as injustiças, a opressão, a dominação, a exclusão, causadas pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado, os três principais modos de dominação moderna. É, portanto, um conhecimento a partir da perspectiva daqueles e daquelas que lutam contra os diferentes modos de dominação e suas infinitas articulações. Neste sentido, é um conhecimento nascido na luta contra estes mecanismos de opressão. E é fundamental para as epistemologias do Sul compreender que esses três mecanismos, ao lado de outros (religião, por exemplo), atuam em conjunção, não atuam separadamente [...] (SANTO, 2018, p. 24).

Passemos aos outros elementos relativos ao problema e aos métodos e ao título. Para falar sobre eles, servimo-nos de uma afirmação de Gilles Deleuze (1999, p. 8), quando trata da intuição como o método do bergsonismo: “[...] o método implica essencialmente uma ou mais mediações [...]”. De fato, por ser um caminho, um método encontra-se entre duas implicações – um problema posto e uma resposta possível. Mas elas não são as únicas; há outras implicações que fazem parte da própria constituição do método: os desvios e o processo criativo (intuitivo) do pesquisador, que permite transformar sua angústia epistêmica em um problema, conduzindo-o pconduzindo-or entre conduzindo-os desviconduzindo-os, em busca de um sentidconduzindo-o fundamental, em que, talvez, pconduzindo-ossam fazer surgir uma solução viável ou a ampliação de seu debate. Essa rede de implicações que enreda o método, assumiu os seguintes pontos referenciais nesta pesquisa:

O problema. Ele consiste na existência e na contribuição de uma base cognitiva tecnológica voltada para a Inclusão Social, na produção e difusão de Conhecimento do DMMDC. Mas ele foi antecipado pelos seguintes questionamentos. Por que uma comunidade epistêmica brasileira deve investir na produção de pesquisa voltada para a Inclusão Social? Em que uma tecnologia com procedimentos e métodos socialmente referenciados se diferencia da produção convencional da Tecnologia? Por que é importante investigar a existência e a contribuição de uma base cognitiva tecnológica voltada à inclusão social em um determinado programa de pesquisa? Por fim, os questionamentos que subsomem os anteriores: se o conhecimento humano é seu principal instrumento de relação com o mundo e com os outros homens, possibilitando-lhe grandes transformações e conquistas11, o que aconteceu em sua história que o transformou em um dos principais agentes da exclusão de uma parcela significativa dos seres humanos e de suas conquistas? Como proceder para fazer o conhecimento formal reaproximar-se de grupos sociais excluídos?

O duplo caminho. Buscando compreender tais premissas e contextualizar o problema, adotamos como métodos desta pesquisa o Estado da Arte (MINUSSI et al, 2018; FERREIRA, 2002) e a Cartografia (CRAMPTON; KRYGIER, 2008, DELEUZE; GUATTARI, 2007; SIBERTIN-BLANC, 2010; AMADOR; FONSECA; MARA, 2009). Com eles, tentamos refletir sobre a ação do conhecimento europeu nas comunidades epistêmicas de países

11 - Heidegger (2001, p. 17) afirma que, desde os primórdios, o conhecimento é concebido como a principal técnica humana: “De outro lado, o que vale considerar ainda a propósito da palavra teknè é de maior peso. Teknè ocorre, desde cedo até o tempo de Platão, juntamente com a palavras epistéme. Ambas são palavras para o conhecimento em seu sentido mais amplo [...]”.

periféricos e das razões que o fazem se distanciar de uma parcela significativa da sociedade e dos problemas estruturais que as envolvem.

Os metódos também contribuíram na investigação sobre outras produções do conhecimento que valorizam um saberfazer alternativo ao modelo epistêmico ocidental; auxiliaram, em especial, a percepção do cartográfo para compreender que onde há vida há conhecimento e por onde vida e conhecimento transitam o saberfazer se configura. Essas contribuições e os esclarecimentos perceptivos foram decisivos para a montagem do título dessa desse trabaho de pesquisa, sobre o qual voltaremos a falar no momento oportuno. Por enquanto, deveremos tratar do papel exercido pelos dois métodos.

Com o Estado da arte foi possível realizar um levantamento bibliográfico da crítica sobre o conhecimento ocidental e sobre a sua forma mais representativa – a tecnociência –, e um rastreamento de produções acadêmicas nascidas de problemas resultantes das vivências locais de alguns pesquisadores, em comunhão com a produção crítica supracitada. Com a identificação das fontes em suas duas dimensões (teórica e empírica), adotamos a concepção de Lakatos e Marconi (2005), Gil (2008) e (MINUSSI, 2018), para realizar um levantamento de uma literatura que ofereceu dados relevantes sobre os temas relacionados, ampliando nossa consciência de que uma pesquisa nunca parte de um ponto zero: a comunidade epistêmica e suas validações, consensualidades ou divergências da realidade epistêmica e as produções de conhecimento historicamente situadas, contribuem para a consideração de muitos aspectos filosófico-científicos; reduzem os esforços do pesquisador, ao esclarecer conceitos e fortalecer juízos de valores já manifestados, além de ampliar a produção do conhecimento com o surgimento de divergências, contradições, ou com o reforço de conclusões comuns ou evidências de aspectos relevantes, mas pouco salientados.

A partir do levantamento processual do material propiciado pelo Estado da Arte, a pesquisa se aproximou do método cartográfico. Ao mover-se para este campo, iniciou-se um trabalho de configuração de duas cartografias distintas, mas que possuem seus pontos de intersecção. A Primeira cartografia apresenta uma reflexão sobre as duas principais produções do conhecimento ocidental – o conhecimento científico e a tecnologia – e suas implicações históricas, dentre elas, a emergência de sua crise. Por se partir do pressuposto de que nas lacunas do conhecimento encontra-se a possibilidade de emergir não apenas um novo paradigma epistemológico, de acordo com os prognósticos de Kuhn (1970), mas um conhecimento libertador, deu-se ênfase à crise epistemológica e sociopolítica do conhecimento ocidental; e as respostas alternativas surgidas em regiões periféricas, tais como a Tecnologia Apropriada e a

Tecnologia Social e sua ramificação denominada de Adequação Sociotécnica (DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES, 2004; DAGNINO, 2014).

A segunda cartografia mapeou traços da base cognitiva do DMMDC, por meio de uma produção científica que articula referencialidades de saberes com aparatos e procedimentos tecnológicos, visando gerar transformações sociais. O objetivo era desvelar uma práxis transformadora presente nas teses selecionadas, como produção e gestão de tecnologia social: uma alternativa às formas representativas de dominação e exclusão da política epistêmica dominante. Realizamos uma narrativa de dez produções catalogadas que lidam com o modelo de tecnologia social. Em seguida, foram feitas interpretações dos elementos da narrativa, buscando salientar aspectos que aproximam a pesquisa de sua resposta. Por fim, nas considerações finais, buscamos encontrar possíveis intersecções e articulações entre as duas cartografias.

Para realizar esse trânsito, trabalhamos com duas linhas teóricas do método cartográfico; uma com relação direta com o campo da geografia, mas com explícitas evidências de análise política do espaço – a cartografia crítica (CRAMPTON; KRYGIER, 2008) e a outra mais marcada pela cartografia e a geo-filosofia de Deleuze e Guattari (2005; 2007) e as contribuições que ambas vêm recebendo, de diversas áreas do conhecimento (ROLNIK 2017; AMADOR, FONSECA, MARA, 2009; SIBERTIN-BLANC, 2010; PASSOS, KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015; PAULON; ROMAGNOLI, 2020).

Os subsídios do campo da cartografia crítica reforçaram as ideias de que a produção crítica é necessariamente política, por examinar pressupostos, entender e sugerir alternativas para as categorias de conhecimentos que usamos (no caso específico dos autores, a produção de mapas), podendo, com isso, a um só tempo, moldar e possibilitar a ampliação do conhecimento. Crampton e Krygier (2008) exemplificam tais afirmações, com os seguintes argumentos:

[...] assume-se com frequência que o bom desenho de mapas deve possibilitar a boa distinção dos objetos (em linguagem cartográfica, figure-ground), embora pesquisas recentes sobre diferenças culturais na percepção desse tipo de distinção revelem que observadores não-ocidentais não reagem a ele tal como observadores ocidentais (Chua, et al. 2005). A crítica não procura escapar às categorias, mas antes mostrar como elas surgem e quais outras possibilidades existem (CRAMPTON; KRYGIER, 2008, p. 86-87).

Eles nos alertam que a cartografia crítica, tal como a crítica filosófica, deve dar ênfase às condições históricas e ser uma política do conhecimento, examinando suas estruturas e sua

relação com o poder, “[...] a partir de uma perspectiva histórica [...]”, para então, resistir, desafiar e, talvez, descartar suas categorias de pensamento. Assim, os autores concluem que:

[...] se o modo pelo qual tomamos decisões (com base no conhecimento) é modificado, uma intervenção política foi realizada. A crítica pode, então, ser tanto explícita como implícita. Além disso, o propósito da crítica como uma política de conhecimento não é dizer que nosso conhecimento não é verdadeiro, mas que a verdade do conhecimento está estabelecida sob condições que têm bastante a ver com o poder (cf. Idem, p. 88). Nesse sentido, a ação de um mapeamento crítico deve ir além da disposição dos objetos em determinado ponto geográfico; deve ser uma forma de questionamento sobre os procedimentos teóricos e corporais (o olhar como um dispositivo epistêmico) que codificam objetos e produzem identidades. (cf. CRAMPTON; KRYGIER, 2008, p. 89). 12). Portanto, os mapeamentos se revelam como um meio que contribui para a construção do conhecimento e a promoção de transformações sociais.

Em princípio, o mapa figura como seu único objetivo disponibilizar informações significativas que permitem a compreensão espaço-geográfica, pela qual se pretende transitar para acessar algum ponto. Portanto, ele se define como uma ferramenta de comunicação. Todavia, por ser um meio de comunicação, o mapa pode estar sujeito a outras capacidades performativas que ampliam ainda mais o seu ato de transcender (representar) a materialidade (o lugar, sítio, o ponto). Suas novas performances o conduzem a um espaço que se aproxima mais do espaço a priori kantiano – o espaço próprio da subjetividade. Essas novas experiências asseguram à cartografia o seu caráter transdisciplinar, mas, ao mesmo tempo, a conduz para além da disciplina, isto é, para uma indisciplina. Crampton e Krygier (2008) apresentam vários exemplos de práticas que a distanciam cada vez mais de suas origens. Assim, a cartografia crítica parte do seu campo original e vai em direção à arte, como, segundo o autor, pode ser perceptível nos trabalhos de vanguarda de Braque e Cezanne; e nas produções contemporâneas de Malene Rrdam, Anna Mara Bogadittir e Lee Walton; a um instrumento político (o movimento da crítica teórica da cartografia), à insurreição de conhecimentos (Foucault, 1996, 1998; Deleuze e Guattari, 2007), à transgressão – o mapeamento livre ou “hackeamento de mapas” (cf. CRAMPTON; KRYGIER, 2008, p. 92-93)12 enfim, a uma indisciplina, que a liberta 12 - Eis como os autores apresentam esta prática: “Mas, se o “espetáculo” era foco para alguns, outros direcionaram as próprias ferramentas de distribuição em massa para outros usos, trazendo tecnologias de mapeamento mais diretamente para a população. Ao fazê-lo, eles cruzaram novamente os caminhos disciplinares da expertise e do controle acadêmicos: uma “cartografia popular”. Dentre as práticas significativas está o mapeamento livre [open-source], chamado por alguns também de “hackeamento de mapas” (Erle et al. 2005). Hackeamento de mapas é a prática de explorar aplicações de mapeamento livre ou combinações da funcionalidade de um sitecom a de outro (conhecida às vezes como mashups). Essas explorações são possíveis devido à linguagem XML e interfaces de applications programming (API) [...]” (CRAMPTON; KRYGIER, 2008, p. 93).

dos limites acadêmicos e a libera para o acesso popular. Por exemplo, segundo esses autores, “[...] O mapeamento livre significa que a cartografia está nas mãos dos usuários, e não mais nas de cartógrafos e cientistas de SIG.” (CRAMPTON; KRYGIER, 2008, p. 94).

Quanto às contribuições do método cartográfico originadas dos dois pensadores franceses, elas consistem inicialmente nos seguintes pontos: a produção de um conhecimento caracterizado por um constante deslocamento, pelo devir, por um plano de consistência do pensamento marcado pela complexidade dos conceitos13 (DELEUZE; GUATTARI, 1992, 2007; SIBERTIN-BLANC, 2010) e pela transversalidade (KASTRUP; PASSOS, 2013), que devem ultrapassar os planos horizontal e vertical, e gerar possibilidade de acesso a um plano comum ao pesquisador e ao objeto pesquisado. Com isso, há uma pretensão a contrapor-se ao tradicional princípio de identidade, tão valorizado pelo pensamento filosófico ocidental e preestabelecido como elemento norteador da neutralidade da pesquisa científica (Pesquisador x objeto).

Guiados pelo deslocamento, o devir, as intersecções conceituais e a transversalidade, conseguimos reconhecer que a identidade de um coletivo transcende todas as possibilidades de individualização, isto é, só agimos, conhecemos e somos num coletivo. Um coletivo que indissociavelmente envolve a imanência da natureza (os elementos que a compõem e a vitalidade que a eterniza), a philia das relações entre as coisas e os acontecimentos como seus resultados. Ora, logo reconhecemos que esse processo de coletivização não é uma prerrogativa da sociedade humana. Antes, é o traço mais evidente da transitoriedade da vida manifestada em uma diversidade e em multiplicidade de percursos.

Por esses motivos, os dois pensadores franceses e seus intérpretes reconhecem que o ato de cartografar antecede o método acadêmico-científico, revelando-se como o método dos seres viventes, que modelam e reconfiguram continuamente o espaço no qual se situam e se autoproduzem. Se, em Mil Plateaux, Deleuze e Guattari (1992) se servem de um tema geopolítico (o capitalismo) e de outro psicossocial (a esquizofrenia) para apresentar o rizoma, isto é a configuração do agir, do experimentar e do pensar sobre os planos (plateaux) vitais, que, em última instância, revelam a macro, a micropolítica e os planos de fuga, instaurados em uma economia política e uma economia libidinal; em O que é a filosofia? eles dão continuidade

13 - Para Deleuze e Guattari (1992) não há conceito simples. Em meio à tentativa de explicar esta premissa, os autores afirmam: “[...] os componentes permanecem distintos, mas algo passa de um a outro, algo de indecidível entre os dois: há um domínio ab que pertence tanto a a quanto a b, em que a e b ‘se tornam’ indiscerníveis. São

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