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PARTE II – PRINCIPAIS CRÍTICAS À INTERPRETAÇÃO MAINSTREAM

Capítulo 4 Críticas à Interpretação Soft-Core

4.1.1 - Introdução

O objetivo deste capítulo é esboçar uma maneira alternativa de explicar os desequilíbrios globais com base na crítica ao argumento mainstream de que tais desequilíbrios têm como causa principal o excesso de poupança global, decorrente de políticas deliberadamente adotadas por algumas economias emergentes nos últimos anos, particularmente a China. Para tanto, consideram-se nas seções subsequentes três conjuntos de críticas: históricas, empíricas e teóricas, respectivamente.

4.1.2 - Origens dos desequilíbrios internacionais

Ao contrário da tese proposta pela vertente mainstream-soft, de que os desequilíbrios internacionais teriam resultado das estratégias de crescimento Export-Led adotadas por um conjunto de países em desenvolvimento e, consequentemente, das suas aspirações de maior poupança, argumenta-se que a origem dos déficits americanos tem raízes históricas mais profundas, as quais apontam fundamentalmente para a importância de uma análise sobre a deslocalização de parcela expressiva da produção industrial dos países avançados (EUA, Europa e Japão) em direção aos países em desenvolvimento a partir dos anos 1980, e o padrão de crescimento da economia estadunidense, dando destaque ao gasto privado, sobretudo o consumo autônomo, por meio do endividamento. A combinação desses elementos fez do esquema de crescimento dos países em desenvolvimento (Export-Led) variável dependente dentro do conjunto de mecanismos que explicam os déficits americanos. Ou seja, no argumento alternativo, inverte-se a relação de causalidade proposta pela explicação mainstream (Belluzzo, 2006; Carneiro 2010; Palley, 2012).

Subjacente a essas duas questões esteve como elemento sempre presente ao curso dos acontecimentos, o processo de liberalização financeira e comercial, observado após o fim do sistema de Bretton Woods (BW) que se baseava, essencialmente, no controle do movimento dos capitais internacionais para prevenir processos especulativos de curto prazo e garantir o bom

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desempenho das políticas “keynesianas” de crescimento econômico com pleno emprego. Sem este movimento mais amplo de liberalização, as características e os arranjos dessa nova dinâmica internacional teriam sido bem diferentes. O fim do controle de capitais e a abertura comercial foram condições necessárias para a construção do novo perfil de crescimento internacional a partir dos anos 1980. Uma visão alternativa sobre as causas dos desequilíbrios internacionais precisa considerar em sua análise uma série de transformações que marcaram o movimento de expansão do capitalismo mundial e o início de uma nova fase de seu desenvolvimento liderada pelas finanças globalizadas, a financeirização (Belluzzo, 1994, 1997 e 2006)81.

Uma consequência crucial deste conjunto de transformações – especialmente importante para se entender os desequilíbrios globais em questão – foi a restruturação produtiva das empresas transnacionais e seu impacto sobre a dinâmica dos fluxos internacionais de capitais. O argumento não é que a globalização produtiva desencadeou a financeirização, mas que as estratégias globais de produção fazem parte, como um de seus elementos constitutivos, deste movimento de transformação mais amplo chamado de financeirização (Belluzzo, 1997; Braga, 1997; Lima, 2013).

Quadro 1 – Globalização Financeira: conceito e etapas de constituição Globalização financeira:

O termo globalização financeira refere-se, essencialmente, à integração de dois movimentos. O primeiro, na esfera internacional, relaciona-se à liberalização financeira que interliga mercados financeiros domésticos com o mercado internacional mediante o fim das restrições que impediam a livre movimentação de capitais entre países. O segundo diz respeito à desregulamentação dos mercados financeiros domésticos na medida em que elimina as barreiras entre seus diferentes segmentos e estimula sua maior integração (Chesnais, 1999; Conti, 2007). Esses dois movimentos resultaram na integração entre os mercados financeiros domésticos e entre esses mercados e o mercado financeiro internacional (Prates, 2002).

Etapas da Globalização Financeira

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Segundo Chesnais (1999), a globalização financeira passou por três etapas em seu processo de constituição ao longo da segunda metade do século XX.

Primeira Etapa: Internacionalização Financeira Indireta (1960 – 1979)

A primeira etapa da globalização foi indireta, pois ocorreu mediante o surgimento (em 1958) e expansão (na década de 1970) do mercado de “eurodólares” (sediado na City de Londres) em um contexto no qual os sistemas monetários e financeiros nacionais ainda eram fechados e regulamentados. Ou seja, o euromercado foi constituído à margem da regulação das autoridades nacionais, bem como esteve associado à internacionalização dos bancos estadunidenses que procuravam “fugir” das amarras regulatórias vigentes nos EUA (Chesnais, 1997; Conti, 2007). Soma-se a isso, as decisões dos EUA em suspender, em 1971, o padrão de conversibilidade dólar-ouro, instituir o sistema de câmbio flutuante em 1973 e promover o “choque” dos juros em 1979, o que recolocou o dólar como moeda de reserva internacional, agora em bases puramente financeiras, bem como permitiu a esse país a manutenção da autonomia da sua política econômica doméstica, a despeito dos déficits de conta corrente e do setor público (Chesnais, 1997; Conti, 2007).

Este período marcou o desmonte do sistema de BW e a emergência das condições para o nascimento de uma nova “ordem” capitalista liderada pelas finanças globalizadas e pela hegemonia financeira dos EUA (Belluzzo, 1994).

Segunda Etapa: Desregulamentação e Liberalização Financeira (1980 – 1985)

Este período, que marca propriamente a etapa de desregulamentação e liberalização financeira, foi caracterizado pela eliminação de uma dupla barreira: por um lado, entre os diferentes segmentos do mercado financeiro interno e, por outro lado, os controles impostos aos movimentos de capitais com o exterior. Ocorreu, assim, a “abertura” dos sistemas financeiros domésticos ao livre movimento de capitais (Chesnais, 1997; Conti, 2007).

Ademais, a securitização da dívida pública e o processo de institucionalização das poupanças também foram eventos importantes que marcaram o período. O primeiro teve como resultado o aumento da participação dos títulos do Tesouro Nacional dos EUA na riqueza financeira mundial e, o segundo, o aumento da importância dos chamados investidores institucionais (como fundos

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mútuos, fundos de pensão e seguradoras) que adquiriram papel de destaque na intermediação financeira (Chesnais, 1997; Conti, 2007).

Como resultado do processo deste conjunto de transformações financeiras, houve aumento da instabilidade cambial e quase completa perda de controle dos bancos centrais sobre a determinação da taxa de juros, particularmente para os países emergentes. Em suma, este foi o período que marcou a consolidação da globalização financeira e de um sistema monetário e financeiro internacional intrinsecamente instável, característica que se acentua ainda mais na terceira etapa do processo (Chesnais,1999; Conti, 2007).

Terceira Etapa: Generalização da Arbitragem e Incorporação dos Mercados Emergentes (1986 – 2007)

A terceira etapa da globalização financeira teve como traços distintivos a generalização da arbitragem e a (re)incorporação das economias emergentes aos mercados globalizados. Com a generalização da arbitragem, em que os capitais buscam as melhores oportunidades de valorização em diferentes mercados de diversos países, e a livre mobilidade de capitais, foi aberta a possibilidade de transferir internacionalmente imensas massas de recursos com vistas à maximização dos lucros financeiros (Chesnais, 1997; Conti, 2007).

Além disso, outro elemento que caracterizou esta etapa e interagiu com os dois traços citados acima foi a inclusão dos mercados acionários ao processo de globalização (após a “abertura” dos mercados de câmbio e de títulos de dívida pública). Nesta fase, o mercado de ações assumiu a posição de pivô do processo de globalização financeira, fazendo dos dividendos um mecanismo vital de ganho de capital (Chesnais, 1997; Conti, 2007).

Nesse contexto, proliferaram-se inovações financeiras (derivativos de crédito e “produtos estruturados”) que transformaram a natureza da atividade bancária e culminaram, nos anos 2000, na emergência de um novo estágio de sua evolução, marcada pela interação entre o sistema bancário regulado e o shadow banking system. Ademais, esta etapa também foi marcada por sucessivas crises cambiais e/ou financeiras, a saber: Japão em 1991, México em 1994-1995, Leste Asiático em 1997-1998, Rússia em 1998, Brasil em 1999, Argentina em 2001-2002 e EUA em 2007-2008 (Chesnais, 1997; Conti, 2007; Prates & Farhi, 2011).

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Por fim, destaca-se que, do ponto de vista da natureza dos fluxos de capitais, o processo de globalização financeira tem como uma de suas características centrais a relativa autonomia dos fluxos de capitais diante das necessidades de financiamento de conta corrente. Esses fluxos passam a ser orientados segundo uma lógica intrinsicamente especulativa que guarda pouca relação com as necessidades reais de ajuste do balanço de pagamentos das economias. Assim, os títulos da dívida pública dos EUA desempenham um papel central de lastro desse processo especulativo ao funcionarem como principal reserva de valor da riqueza financeira global. Nesse sentido, os desequilíbrios internacionais e o crescimento global dependem, em grande medida, da expansão da economia estadunidense e da trajetória de sua taxa de juros (Chesnais,1999; Carneiro, 2009; Prates & Farhi, 2011).

Fonte: elaboração própria

Segundo Serrano & Medeiros (1999), os déficits comerciais da economia americana originaram- se ao final dos anos 1950, com a implementação de políticas (como, por exemplo, a abertura unilateral do mercado americano, a tolerância com medidas protecionistas, manutenção de taxas de câmbio competitivas) destinadas à reconstrução da economia europeia e japonesa.82 O objetivo destas políticas no imediato pós-guerra era o de promover a reconstrução da ordem econômica internacional capitalista, com base na expansão do comércio entre as nações em um contexto de baixas turbulências financeiras. Como resultado, tem-se a emergência de forte concorrência comercial das renovadas economias da Europa e do Japão e a ampliação dos déficits comerciais americanos. Além disso, adentrando nos anos 1970, com a crise de Bretton Woods e os sucessivos questionamentos sobre o valor e posição do dólar como moeda de reserva internacional, os EUA, com a intenção de reforçar o controle sobre o sistema monetário internacional, suspendem, em 1971, o padrão de conversibilidade dólar-ouro, instituem o sistema

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Diferentemente das explicações correntes da década de 1980, em que a culpa dos déficits comerciais recaia sobre as políticas domésticas dos Estados Unidos, atualmente, a mais popular interpretação a respeito dos desequilíbrios globais, como vem sendo mostrado neste trabalho, transfere a responsabilidade para as economias superavitárias do leste asiático. Ou seja, o problema sobre os desequilíbrios internacionais e os déficits americanos não é novo. Na década de 1980, o debate sobre os desequilíbrios surgiu com força depois da virada na política econômica americana (Reaganomics), que resultou na formação de grandes déficits fiscais e na conta de transações correntes, os chamados déficits gêmeos. Contudo, o acúmulo de déficits comerciais ocorria basicamente com o Japão, e a tese do hard- landing do dólar era o ponto central do debate (Belluzzo, 2006; Palley, 2012).

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de câmbio flutuante em 1973 e promovem o “choque” dos juros em 197983

, que reafirma o dólar como a moeda de reserva internacional, agora em bases puramente financeiras; instaura-se, dessa maneira, um novo sistema monetário internacional com base no padrão dólar-flexível. “A partir de então” conforme bem resume Belluzzo (2006, p. 27), “é sobre o peso e reputação de sua dívida que os EUA sustentam a supremacia do dólar e, com isso, reforçam as tendências à transnacionalização de seu mercado financeiro e de capitais e a metástase ´global´ de sua grande empresa.”

Assim, diante dessas transformações84, as estratégias de desenvolvimento Export-Led adotadas pelos países em desenvolvimento, especialmente os asiáticos, foram condicionadas, em boa medida, pelo processo de reestruturação global da indústria, fato que promoveu um movimento de reorganização das cadeias produtivas internacionais, comandadas pelas Empresas Transnacionais (ETNs), em busca de novas oportunidades de investimento e menores custos de produção e assentado na centralidade da economia americana como fonte autônoma de demanda global e provedora de liquidez mundial.

Nesse sentido, segundo Hiratuka (2010), um dos elementos mais importantes para explicar essas alterações no comércio mundial e, consequentemente, o desequilíbrio de transações correntes americano “foi a mudança observada nas formas de atuação e organização das atividades internacionais das grandes empresas transnacionais” (p. 12). Pressionadas pelo acirramento da concorrência e pela desestruturação das condições macroeconômicas dos arranjos de Bretton Woods, as quais haviam garantido o ciclo de crescimento dos Anos Dourados, as ETNs passaram, a partir da década de 1980, a reorganizar suas atividades, aumentando seu grau de internacionalização via um duplo movimento: centralização do controle das cadeias globais de geração de valor e descentralização espacial da produção. Ou seja, a reestruturação global da indústria e seus impactos sobre os fluxos de comércio internacional foram condicionados pelas

83 Os EUA, diante das pressões internacionais por um novo padrão monetário internacional, no qual o dólar não seria a única moeda hegemônica, veem-se forçados a realizar o movimento que Tavares (1997) chama de “retomada da hegemonia norte-americana”. Uma boa referência sobre este período pode ser encontrada no livro: Estados e Moedas no Desenvolvimento das Nações de 1999, organizado por José Luiz Fiori.

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Destaca-se que, com a ascensão dos governos conservadores, Ronald Reagan, em 1980 nos EUA, e Margaret Thatcher, em 1979 na Inglaterra, foi dado importante impulso à consolidação de uma ideologia que prega o Estado mínimo e a confiança na capacidade autorreguladora do mercado, com destaque aos mercados financeiros. Como resultado, verificaram-se fortes movimentos rumo à globalização e desregulamentação financeira, por exemplo, o fim dos controles sobre movimentos de capitais, entendidos como fundamentais para o funcionamento do antigo sistema de Bretton Woods (Belluzzo, 1994 e 2006).

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estratégias das ETNs de operar em redes de produção geograficamente fragmentadas, mas sem perder o controle sobre a cadeia global de geração de valor. Aliás, como não poderia deixar de ser, o processo de migração espacial dessas corporações rumo a outras economias tinha a finalidade de desfrutar de condições mais vantajosas do ponto de vista do custo de produção e das condições de valorização do capital. Sarti & Hiratuka (2010) apontam a questão de forma precisa.

A reestruturação global da indústria nos últimos 30 anos foi condicionada em grande medida pelas estratégias de internacionalização e de gestão da cadeia de produção e de valor das grandes empresas transnacionais (ETN), fato que promoveu um forte deslocamento do processo produtivo e redirecionou os fluxos globais de produção, de investimento e de comércio exterior (Sarti & Hiratuka, 2010, p. 03).

Por outro lado, as estratégias de reorganização da produção, implementadas pelas ETNs, não ocorrem de forma independente das políticas econômicas adotadas pelos países em desenvolvimento, mas também não são determinadas por elas. Argumenta-se que existe interação entre essas estratégias e as medidas de política, mas a ênfase deve ser posta sobre as decisões de investimento das grandes corporações dos países desenvolvidos, que encontram nos países asiáticos em desenvolvimento um amplo estoque de mão de obra barata e governos dispostos a conduzir um conjunto de políticas econômicas alinhadas a suas estratégias de geração de valor. A proeminência, portanto, encontra-se nas decisões de investimento das ETNs que deslocam as estruturas de produção de suas nações de origem em busca de novas e mais rentáveis oportunidades de negócio.

Em outras palavras, apesar da deslocalização da produção interagir positivamente com as políticas econômicas de desenvolvimento industrial adotadas por esses países, a questão essencial encontra-se relacionada às “decisões de investimento dos capitais dos países centrais que, em busca de melhores taxas de rentabilidade e na esteira da crescente liberalização financeira observada nos anos 80, migram de suas nações de origem em busca de novas fronteiras de acumulação” (Mello, 2013, p.85). Ou seja, as políticas de desenvolvimento não determinam a estratégia de investimento das ETNs, mas se combinam a elas de forma a garantir boas condições de valorização. Portanto, o resultado desta deslocalização produtiva é a transformação da Ásia em desenvolvimento “em uma verdadeira plataforma de exportação de produtos manufaturados, gerando grandes superávits em conta corrente nos países periféricos receptores destes investimentos, ao mesmo tempo em que gera-se um similar déficit em conta corrente nos países

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centrais” (Mello, 2013, p.85); o efeito adicional foi o de deslocar parte importante do investimento produtivo para fora dos EUA.

Cabe destacar, também, que os desequilíbrios em transações correntes decorrentes dessa nova estrutura produtiva internacional, fruto, em grande medida, das estratégias de investimento das ETNs, só puderam ser sustentados ao longo do tempo devido ao papel “regulador” da economia internacional, exercido pelos EUA. Esse papel se refere à capacidade da economia americana de influenciar de forma importante a dinâmica de crescimento da economia internacional, na medida em que assume um duplo papel: fonte autônoma de demanda efetiva e provedora de liquidez. Especialmente para os países da Ásia em desenvolvimento, essa função “reguladora” da economia americana era uma “garantia” ex-ante para o sucesso de políticas nacionais pautadas em estratégias de crescimento Export-Led. Ademais, esse papel só pode ser desempenhado devido ao fato de possuírem a moeda reserva do sistema monetário internacional. Essa particularidade garante aos EUA a possibilidade de refinanciar, quase que ilimitadamente, sua dívida, por meio da emissão de nova dívida em sua própria moeda, com a garantia de procura por esses títulos (Belluzzo, 2006).

Assim, a faculdade de usar sua moeda como meio de pagamento universal confere aos EUA a possibilidade de incorrer em sucessivos déficits comerciais e em transações correntes sem estarem sujeitos a ajustamentos deflacionários do Balanço de Pagamentos, ou seja, o benefício da seignorage, concedido ao país emissor da moeda reserva, permite o financiamento de recorrentes déficits em transações correntes sem maiores constrangimentos para a política econômica doméstica. É estabelecida, assim, uma articulação virtuosa entre a economia americana e os países asiáticos. Por um lado, interessa a esses países, com estratégias de crescimento Export- Led, os sucessivos déficits em transações correntes, pois constituem fonte de demanda para seus produtos e condição necessária para o crescimento acelerado. Por outro lado, o acúmulo crescente de haveres denominados em dólar, por agentes públicos, bancos centrais ou agentes privados, resultante das vendas das empresas sediadas na Ásia para os EUA, representa financiamento automático dos déficits em transações correntes estadunidenses. Esses agentes, em grande medida, trocam os dólares adquiridos por títulos, em geral do Tesouro americano, mas também de instituições privadas, contribuindo para gerar, com o retorno desses recursos, superávits na conta capital e financeira dos EUA, equilibrando o Balanço de Pagamentos (Belluzzo, 2006).

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Belluzzo (2006) descreve este processo: “Os países cuja estratégia é governada pelo saldo da balança comercial e pela acumulação de reservas ´fecham o circuito´ gasto-renda-poupança do ´sistema americano´ ao utilizar as poupanças em dólar para financiar o déficit em conta corrente dos Estados Unidos” (Belluzzo, 2006, p. 33).

Soma-se a isso que o padrão de crescimento da economia americana esteve condicionado, como apontado na seção anterior, pelo aumento do consumo das famílias, cuja dinâmica esteve relativamente desconectada do aumento da renda e do salário e mais próxima da valorização do patrimônio decorrente de bolha de preços de ativos. Assim, o consumo alavancado, dado seu peso elevado na economia americana, constitui-se como principal elemento dinâmico da demanda agregada, bem como o principal mecanismo de transmissão de estímulos para a economia global via importação de produtos manufaturados. Isso significa que o arranjo internacional da globalização e os desequilíbrios que lhe são inerentes estiveram assentados, basicamente, sobre uma interessante relação entre famílias dos países desenvolvidos (particularmente as americanas), que consomem, e o mundo em desenvolvimento (particularmente o asiático, com destaque para a China), que produz. Ou seja, num contexto em que as economias são cada vez mais abertas, o deslocamento positivo da função consumo das famílias americanas produz efeitos diretos sobre, por exemplo, as decisões de produção na China.

Contudo, embora esta relação se apresente como um arranjo sólido e benéfico para a economia americana, ela carrega algumas contradições. Desde logo, dado o deslocamento do processo produtivo e o redirecionamento dos fluxos globais de produção e investimento para os países em desenvolvimento, cria-se, nos EUA, um problema quanto à capacidade de geração de emprego e um padrão de consumo menos dependente da renda corrente e mais articulado às condições de crédito e de valorização patrimonial. Ou seja, emerge uma situação na qual o consumo se torna potencialmente desestabilizante, menos conectado à evolução da renda e cada vez mais dependente do efeito-riqueza e das condições de crédito que o financiam, como bem mostrou a crise financeira recente.

Conclui-se que, para analisar a dinâmica de crescimento global, é essencial compreender o comportamento da economia americana, tanto em sua dimensão internacional, expressa em déficits correntes com o resto do mundo, em especial com a Ásia em desenvolvimento, quanto

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