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Capítulo I: CARACTERIZAÇÃO GERAL DA COMUNIDADE

2. ASPECTOS SÓCIO-CULTURAIS

2.2. CRENÇAS, MEZINHAS E SUPERSTIÇÕES

No capítulo I, ponto 2.3 deu-se especial enfoque à diversidade de práticas de carácter tradicional, ou seja, às práticas e saberes ligados à doença e à cura que não os da ciência médica, salientando-se a sua capital importância no quotidiano das populações. Seguiram-se diversos autores que analisaram profundamente esta questão, sublinhando as desvantagens do desencontro entre as práticas da “medicina popular” e a “medicina profissional”. Foi salientada a importância das diferentes práticas que estruturam a dinâmica das relações que o indivíduo estabelece com a doença e alertou-se para a necessidade dos profissionais de saúde compreenderem estas práticas com referência aos sistemas de valores e representações que

as sustentam. Há que relativizar estes processos e evitar enveredar pelo desmoronamento ou a desvalorização dessas crenças. As crenças “são normalmente um conjunto de normas específicas para cada grupo cultural, sobre o comportamento ‘correcto’ preventivo de doenças (...) incluem crenças sobre a maneira ‘saudável’ de comer, beber, dormir, vestir-se trabalhar, rezar e conduzir a vida em geral. Em algumas sociedades, a manutenção da saúde inclui também o uso de feitiços, amuletos e medalhões religiosos para afastar a má sorte, uma doença inesperada e para atrair a boa sorte e a boa saúde” (Helman 1994: 72). Os processos radicam na auto-medicação, tratamentos caseiros, recomendados por parentes, vizinhos, amigos etc. Os tratamentos são normalmente veiculados por pessoas ligadas umas às outras por laços de parentesco, amizade, residência comum ou religiosos.

De facto, o ser humano face a problemas transcendentes a si mesmo, que o remetem para situações de fragilidade e para os quais não encontra solução, procura formas ou fórmulas para ser ajudado ou protegido. De acordo com Jorge Dias, a superstição é a crença em certas forças a que é preciso apelar, em auxílio do homem, ou que muitas vezes só se desejam interpretar. O instrumento que permite ao homem dominar essas forças é a magia. A magia possui determinadas fórmulas para os diferentes casos (Dias 1983).

Das minhas vivências em criança, recordo algumas práticas utilizadas pela minha avó entre as quais cito duas. Para as constipações mais complicadas e acompanhadas de tosse preparava papas de linhaça (a que chamava cataplasma), que depois de envolvidas num pano de linho, me aplicava na face anterior do tórax ao deitar; para matar as lombrigas fazia um cordão com dentes de alho (sem casca) e à noite era-me aplicado no pescoço.

Parti da ideia de que estas ou outras práticas estariam ainda hoje a ser reproduzidas pela população da aldeia onde nasci e vivi até aos dez anos. A suposição de que grande parte das pessoas de Caneiros acredita num conjunto de crenças sobre maneiras de tratar a doença que por sua vez podem orientar a sua conduta, conduziu-me para o aprofundamento desta questão. O conhecimento desta realidade ajudar-me-ia, por sua vez, a conhecer a percepção que a população tem sobre a sua própria saúde. Parti assim para a identificação de atitudes e práticas na vigilância de saúde, no sentido de explorar as atitudes e práticas em relação a problemas de saúde comuns bem como as atitudes como resultado de crenças.

Na comunidade de Caneiros, Maria Francisca diz que o marido sabe “benzer as vistas, quando por exemplo uma pessoa bate no olho ou quando tem um “unheiro”. Adianta ainda “o meu ‘hóme’ também sabe tirar cobrantes”. Explica: “...é quando as pessoas se queixam da cabeça ou quando secava o leite”. A mesma entrevistada refere ainda: “No caso de um cobrão os médicos não querem nada com isso. Não sabem”. “...Aquele mal é só benzer e dizer as palavras:

Pergunta-se à pessoa:

- Que tens tu?

E a pessoa responde:

- Tenho um cobrão

Depois benze-se dizendo as palavras:

- Eu te corto cobrão, a cabeça, o rabo e a raíz do coração

Pergunta-se outra vez:

- Que tens tu ?

- Tenho um cobro

- Eu te corto cobro, a cabeça., o rabo e o corpo todo

Repete-se a primeira pergunta e volta-se a benzer”.

Quando aparecem “fruncos”, curam-se com “palha de alhas, rama de pinho seca (tem que se colocar na cantareira onde houver loiça), pólvora e azeite. Queimam-se, e à cinza juntam-se a pólvora e o azeite. “Untam-se os fruncos até ‘queimar’, até que sequem. Faz-se tantas vezes quantas forem precisas até murchar. Às vezes é preciso repetir três vezes”.

Henriqueta Alegria é da mesma opinião, quando afirma: “No caso de cobrões (de sapo ou de cobra) escusam de correr para médicos”. Diz ainda como se estancava a hemorragia a uma variz, dando o exemplo, de que, há mais de 40 anos José Santinho, seu marido, ao ter aquele problema, foi resolvido com a aplicação de teias de aranha na ferida.

Em Caneiros as atitudes e práticas em relação a problemas comuns de saúde relevam um forte recurso a tratamentos caseiros. Dos tratamentos mais referidos para cada uma das situações, constam:

Para a diarreia, os caldos de farinha (farinha de trigo, açúcar e água) e o chá de tília; em situações de dor e ardor ao urinar, o chá de barbas de milho; em pequenos cortes, aplicam

desinfectantes como água oxigenada, betadine, e tapam com uma compressa ou um “trapo”. Neste caso verificaram-se cinco pessoas que não fazem qualquer tratamento, atam só um trapo para estancar a hemorragia. A dor de dentes é aliviada com aguardente, a dor de garganta com o sumo de folhas de oliveira, as constipações com chá e as dores musculares e ósseas com “esfregações de água ardente”, (Quadro 2).

QUADRO 2 - PRÁTICAS CASEIRAS FACE A PROBLEMAS DE SAÚDE COMUNS (RIO VERDE)

PROBLEMAS PRÁTICAS RESPONDENTES

Diarreia Caldo de farinha Chá de tília Dieta mais leve Medicamentos Espera que passe Aguardente com muito açúcar Vai ao médico 6 3 2 2 2 1 1

Ardor e dor quando urina Chá de barbas de milho Chá de ortiga Médico

3 2

2

Pequeno corte Aplicam desinfectantes (água oxigenada, betadine) e

tapam com um trapo ou uma compressa.

Não faz nenhum tratamento quando faz uma pequena ferida

Só um penso rápido

Casca de fava seca para unir e depois betadine

13

5

3 1

Dor de dentes Bochecha com aguardente

Toma um comprimido Extrai (recorrendo ao médico)

4 2 1

Dor de garganta forte Mastiga folha de oliveira e engole o sumo

Chás quentes (folha de oliveira e de diabelhas) Leite quente Recorre ao médico 5 3 1 1 Cólicas Chás de cidreira 2

Constipações Chás (cascas de cebola, salsa, flor de sabugo,

pimpenela, príncipe, cidreira, mel limão) Vinho quente com açúcar ao deitar Café quente com açúcar ao deitar Xarope e aspirina 18 1 1 2 Dores musculares e ósseas

Mais de metade dos entrevistados (doze) acredita na capacidade que outras pessoas têm para tratar doenças, nove não acreditam e um não sabe. Justificam a sua crença com base nas capacidades, saberes e certos poderes que determinadas pessoas têm para tratar algumas doenças. “No caso de um braço ‘estroçoado’ o endireirta é mais entendido, percebe. Cobrões também têm de ser tratados de outra maneira, e escusam de correr para médicos” (Henriqueta Alegria). “Os endireitas, aqueles que são bons, compõem os braços e as pernas” (José da Ponte). “Acredito que há qualquer coisa nessas pessoas, um poder qualquer” (Joaquina Cruz). “Não posso ir à bruxa se tiver um cancro, porque ela disso não percebe nada” (Gabriel Mota). “Coisas de entorse acredito, coisas de doenças como a da minha falecida mulher, não (António marinheiro). Destes discursos é possível fazer emergir ideias chave que estruturam a realidade destas pessoas no domínio da saúde/doença. Assim, no que se refere concretamente às capacidades e poderes das diferentes pessoas para tratar a doença verifica-se o seguinte entendimento: existe uma nítida separação entre as doenças que os médicos não podem curar e as que podem curar; de igual modo, se evidencia uma separação das doenças que só podem ser curadas por “pessoas entendidas” daquelas que somente os médicos podem curar. Por outro lado, a competência do endireita afigura-se um elemento essencial no processo de cura.

Das nove pessoas que não acreditam, três tendem a justificar a sua convicção com base nos conhecimentos que os profissionais de saúde têm em relação a outras pessoas que tratam doenças: “Porque eles (médicos) estudam para saber o mal que nós temos” (Guiomar). “As pessoas que estudam terão mais conhecimentos a respeito das doenças” (Francisco Marques).

Face à pergunta “acha que às vezes é preferível recorrer ao endireita, ao curandeiro ou à bruxa” dezoito responderam sim, dois responderam não e outros dois, talvez. A bruxa e mais frequentemente o endireita foram efectivamente recursos utilizados entre os entrevistados: quinze pessoas já foram ao endireita e quatro já recorreram à bruxa.