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2. JORNALISMO, HISTÓRIAS, CRISES

2.5 Crises estruturais

2.5.5 Crise ética

A crise ética do jornalismo tem sido a mais citada e debatida, dentro e fora do grupo profissional, considerando, entre outros fatores, conflitos de interesse, omissões, distorções, uso da mentira, relações espúrias, à revelia do código de ética pregado pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ)72. Já no começo do século XX, Mota

Assunção (1923, p. 82) citava os que “agem e pensam estritamente de acordo com a psicologia e a ética normal das classes a que pertencem”. No cotidiano das redações, trata-

72 Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. Disponível em:

http://www.fenaj.org.br/federacao/cometica/codigo_de_etica_dos_jornalistas_brasileiros.pdf. Acesso em 13 jun 2014.

se do dilema diário de conciliar exigências de mercado com responsabilidade e papel social, considerando-se que “se o jornalista renuncia à sua função social, ele passará facilmente por cima das questões éticas” (ADGHIRNI, 2000, p 328). Segundo Karam, a crise ética do jornalismo pode ser vista em seus diversos aspectos:

está refletida nos comportamentos particulares da moral, está nos monopólios e oligopólios expressos pela propriedade dos meios. Está, ao mesmo tempo, no desleixo, preguiça e incompetência na apuração precisa dos fatos e em sua formulação no texto. Encontra-se no esmiuçamento da vida privada sob o pretexto de combate político ou interesse público (neste caso, nada mais faz do que reforçar preconceitos e o conservadorismo moral vigente e afirmar, para o futuro, um projeto moralmente conservador e politicamente autoritário, com sinal contrário). O problema ético está no simples fascínio pelo poder, fama e prestígio, sem levar em conta a responsabilidade que deve integrar a atividade. Está no impedimento do direito de resposta quando há evidentes equívocos ou má-fé na informação. Está na ausência de pluralidade de fontes, que reflita a diversidade de acontecimentos e interpretações. O problema está nas fontes que “plantam” informações falsas com a finalidade de obter vantagens políticas e pessoais. Está nos baixos salários que submetem os jornalistas a uma vida na qual é cada vez mais difícil o trabalho consciente e competente. Está na quantidade de pautas a serem transformadas em matérias, diariamente, o que compromete a qualidade informativa. Está na sonegação de informações de interesse geral por organismos públicos ou privados, ao tornarem exclusivo para si o que deve estar à disposição de todos. Está mesmo na ausência de informações. (KARAM, 1997, p. 59)

Reiterando as afirmações de Karam, para Bernardo Kucinski (2005, p. 104), um grande problema é que “o cinismo, que costumava atacar o velho jornalista do meio para o fim de sua carreira, hoje é o ponto de partida do jovem jornalista” no cenário das redações:

No dia-a-dia das redações, o vazio ético é reforçado por mecanismos diversos, entre os quais o fim da demarcação entre jornalismo e assessoria e imprensa; a fusão mercadológica de notícia, entretenimento e consumo; a concentração de propriedade na indústria de comunicação; a crescente manipulação da informação por grupos de interesse; e, principalmente, a mentalidade pós-moderna, que celebra o individualismo e o sucesso individual. (KUCINSKI, 2005, p. 18)

Em uma análise das mais lúcidas, o jornalista potiguar Carlos Peixoto (2002) aponta, além da crise de gestão, a face ética da crise no jornalismo, tema de muitos, grandes e intensos debates que passam pelo questionamento sobre com quem está a

lealdade do profissional, se está com o público, se está com a empresa, se está com algum ideário. Dentre a polêmica, Martins (2006) é enfático:

Claro que a minha lealdade não é com a opinião pública. Ao contrário, considero que se mede um grande jornalista pela capacidade e coragem que ele tem, uma certa coragem cívica, moral de remar contra a corrente quando julga que a opinião pública está errada. Ele deve fazer essa opção sem arrogância, sem a pretensão de dar lição ao mundo. Sabe que provavelmente vão lhe cortar a cabeça ou então fazê-lo viver no limbo durante algum tempo. Mas deve fazê-lo, porque só assim estará sendo leal à sociedade. A opinião pública muda e os interesses permanentes da sociedade resistem.

Para Chaparro (2007, p. 103), o jornalista deve lealdade ao ideal de verdade; o descompromisso do jornalista com a verdade “trai o principal e mais belo compromisso que tem com a construção e o aperfeiçoamento de uma sociedade livre: assegurar [...] o direito de ser informado”. Segundo Karam, este problema é acentuado

porque o negócio da comunicação como um todo extrapola a informação, apesar de esta ser cada vez mais referendada pelos códigos éticos dos jornalistas e dos empresários de comunicação, pelos valores históricos que afirmaram a produção jornalística, como a veracidade, o direito do contraditório, o interesse público, que são o cerne da atividade profissional jornalística. (KARAM, 2006, p. 72)

Seguindo a corrente de pensamento norte-americana, Karam (2009) vê a crise ética da atividade como um prejuízo para a democracia; desta perspectiva, ele recomenda que o jornalismo

não pode abrir mão dos princípios ético-deontológicos que o alicerçaram como um interrogador público contemporâneo que se impõe um mandato sem fim a favor da representação controversa do espaço público normativo, seja macro, médio ou micro. Por isso, os valores clássicos do jornalismo significam defender a própria atividade como específica e incontornável; que o jornalismo é mais do que aventura ou acaso; é a razão de ser da controvérsia pela qual se valora e decide sobre o mundo imediato da forma mais lúcida possível; e que está na base da vitalidade democrática. Sem valores que o sustentem como fundamentação ética e procedimentos deontológicos, sempre morre um pouco mais da democracia e do espaço público. (KARAM, 2009, p. 28)

Para Klatell (2013), os fundamentos éticos clássicos do jornalismo estão sendo revistos perante a cultura digital. Nesta ótica, levanta polêmicas atuais, como as questões da propriedade intelectual e da autoria:

Quase todo mundo concorda que roubar o trabalho dos outros é antiético. Mas como deveríamos pensar em relação a certas formas de agregação, ou ao trabalho a partir de conteúdo publicado na web, retweets e posts em blogs – ou de fontes desconhecidas ou não identificados? (KLATELL, 2013, p. 14-15)

Klatell (2013, p. 15) também aponta a dificuldade de checagem (que chama de “coração da prática jornalística”) diante da lógica de distribuição de informação na rede: “como alguém verifica a informação amplamente reunida por meio de buscas online, elas mesmas sujeitas a todo tipo de pressões técnicas, incluindo a otimização por motores de busca [...], notificações de aplicativos e os infames algorítimos do Google?” Ele prossegue a discussão, especulando sobre possíveis mudanças na ética da entrevista no contexto das formas de comunicação à distância e na ética das imagens na era das ferramentas de manipulação.

Anderson, Bell & Shirky (2013, p. 59) alertam para o declínio do capital simbólico de instituições tradicionais, que afetam os profissionais: “o capital reputacional do jornalismo foi conferido basicamente à profissão e ao conjunto de instituições, não a jornalistas de forma isolada”, no entanto, “assim como a matemática do capital monetário, a matemática do capital simbólico do jornalismo parece vítima de uma crise estrutural, não conjuntural”.

No ecossistema jornalístico brasileiro, Christofeletti & Ternes (2012) mapearam matérias no site do Observatório da Imprensa73 sobre ética jornalística do século XXI,

observando “uma ética dinâmica, fragmentada, tensa, contraditória, que retoma velhos dilemas em novos formatos e que sinaliza para a emergência de novas bases deontológicas”, na qual estão implicadas questões normativas. Segundo Possebon (2006, p. 65), “nossa legislação com relação a todas essas questões de direito de informação, de regulação dos mercados de comunicação, ainda é caótica e obtusa”. Os diversos interesses em cena não evitam o debate ético, mas conservam a discussão sobre a crise normativa que está associada à questão ética na opacidade, tangenciando tentativas de

regulamentação do exercício da comunicação social no país, o que tem contribuído para a desinstitucionalização do jornalismo.