• Nenhum resultado encontrado

1. APONTAMENTOS TEÓRICO-CONCEITUAIS: ANÁLISE DOS SISTEMAS-MUNDO

1.3. TRANSIÇÃO HEGEMÔNICA E COMPETIÇÃO INTERESTATAL

1.3.2. Crise hegemônica e competição interestatal na contemporaneidade

Atualmente, o moderno sistema-mundo passa por uma de suas crises, a qual ainda pode durar por várias décadas. Tal crise se caracteriza como um período transicional, no qual a estrutura e os processos sistêmicos oscilam profundamente. Essa instabilidade sistêmica pode desencadear a violência política e conflitos sociais, conforme Estados e grupos de interesse buscam preservar suas posições hierárquicas, e pode se prolongar por várias décadas antes de

atingir um resultado final – que, na interpretação de Wallerstein, seria o surgimento de um novo sistema histórico (WALLERSTEIN, 2004).

Para o autor, o principal motivo da crise atual é a redução paulatina das taxas de lucros mundiais. Os três principais custos de produção são a remuneração dos trabalhadores, os insumos necessários para a produção e as taxas inclusas em cada processo produtivo. Nos últimos quinhentos anos, Wallerstein argumenta, esses três custos têm crescido sem parar – e, nos últimos cinquenta anos, têm crescido excepcionalmente. Por outro lado, os preços das vendas não têm sido equiparados aos custos de produção, mesmo com a demanda efetiva crescendo, devido à expansão no número de produtores e a dificuldade para a manutenção de condições de oligopólio (WALLERSTEIN, 2004).

De acordo com Arrighi, uma crise hegemônica nem sempre resulta no final de uma hegemonia; assim, distingue as “crises de sinalização”, cujos problemas podem ser resolvidos, embora isso leve um longo período de tempo, das “crises terminais”, as quais não podem ser resolvidas e que, efetivamente, marcam o fim de uma hegemonia. Contudo, como a própria definição de hegemonia empregada por Arrighi implica, um Estado pode permanecer dominante mesmo após a crise terminal de sua hegemonia – neste caso, institui-se uma situação de “dominação sem hegemonia” (ARRIGHI, 2007, p. 151).

A hegemonia estadunidense teve sua “crise de sinalização” ainda nos anos 1970. As políticas econômicas de Washington durante a Guerra Fria desencadearam uma crise das taxas de lucros por dois motivos: (I) a estratégia de desenvolver os aparatos produtivos da Europa Ocidental e do Japão levou à intensificação da competição intercapitalista; (II) a promoção do (quase) pleno emprego e alto consumo de massa em todo o mundo ocidental levou ao empoderamento social do trabalho. Estes dois elementos, combinados, pressionaram os lucros ao ponto que a crise se instaurou. Contudo, a crise das taxas de lucros não é a única explicação para a crise da hegemonia estadunidense nos anos 1970. Há a quebra das promessas de desenvolvimento para o Terceiro Mundo e o envolvimento na guerra do Vietnã, fatores que abalaram a credibilidade política dos EUA em nível global e, no caso do conflito vietnamita, pressionou os gastos públicos estadunidenses por conta dos custos da guerra. Sobre o tema da crise hegemônica dos EUA nos anos 1970, conclui:

In short, the interaction between the crisis of profitability and the crisis of hegemony, in combination with the US inflationary strategy of crisis management, resulted in a ten-year-long increase in world monetary disorder, escalating inflation and steady deterioration in the capacity of the US dollar to function as the world's means of payment, reserve currency, and unit of account. […] I interpret the crisis of profitability as an aspect of a broader crisis of hegemony. And I see the

financialization of capital, rather than persistent “over-capacity and over-production”

in manufacturing, as the predominant capitalist response to the joint crisis of profitability and hegemony (ARRIGHI, 2007, p. 159-161).

Apesar da crise da hegemonia estadunidense ter dado seus sinais iniciais antes mesmo do fim da Guerra Fria, foi apenas a resposta da administração Bush ao 11 de Setembro que precipitou a sua crise terminal. Entretanto, mesmo antes do impulso dado pelo governo estadunidense a partir de 2001 para o declínio do seu poder hegemônico, a expansão financeira iniciada ainda nos anos 1980 para responder à crise das taxas de lucros já preconizava a instabilidade na qual o sistema-mundo viria a se encontrar. Como já mencionado anteriormente, as expansões financeiras tendem a estabilizar a ordem vigente no curto prazo, pois permitem aos grupos hegemônicos que eles passem para grupos subordinados – nacional e internacionalmente – o fardo da competição que desafia sua hegemonia (ARRIGHI, 2007).

Entretanto, com o tempo, as expansões financeiras tendem a desestabilizar a ordem existente da seguinte forma: recursos financeiros antes destinados a produção passam a ser deslocados para a acumulação e especulação, gerando problemas de realização material;

favorecem o surgimento de novas configurações de poder que minam a capacidade da potência hegemônica de obter vantagens com a intensificação da competição interestatal e interempresarial; implicam em maciços deslocamentos sociais, que tendem a provocar resistência entre grupos subordinados, cujos modos de vida estão sob ataque. Em cada expansão financeira essas tendências assumem formas variadas e se relacionam de formas distintas entre si. Porém, nas transições da hegemonia holandesa para a britânica e da hegemonia britânica para a estadunidense, essas tendências podem ser detectadas, pois levaram aos colapsos completos na organização do sistema, que só foram superados quando o sistema foi reconstituído sob uma nova hegemonia (ARRIGHI, 2007).

Na atualidade, Rodrigues e Martins (2020) argumentam que a transição hegemônica se desenvolve de forma paralela ao desengajamento dos EUA no sistema internacional, enquanto a globalização guiada pelo Estado chinês se aprofunda de forma cada vez mais diversificada e complexa. Ainda, reforçam que “uma vez que a mudança sistêmica não é imediata nem unidirecional, ela somente é factível e exequível na longa duração, apresentando-se como multifacetada” (p. 191-192).

A gradativa difusão internacional de poder econômico e militar, especialmente a partir do início dos anos 2000, está atrelada à reascensão de China e Rússia como grandes polos de

poder mundial5. Tal processo tem evidenciado a erosão da posição dominante de potências como Estados Unidos e Europa Ocidental, enquanto potências como China e Rússia têm um impacto cada vez mais significativo nas relações internacionais, o que afeta padrões de conflito e cooperação no sistema interestatal (PUTTEN; ROOD; MEIJNDERS, 2016).

Em meio a este contexto, observamos a intensificação das disputas econômicas e político-militares dos Estados Unidos com Rússia e China. Desde a Guerra Fria, tais países têm nutrido relações tensas; contudo, nos últimos anos, a triangulação estratégica entre os três tem se dado sob patamares de disputa ainda mais amplos e profundos. Ao mesmo tempo que os EUA competem economicamente com China e Rússia pelo controle sobre tecnologias e recursos estratégicos, os três países têm buscado ampliar continuamente suas zonas de influência geopolítica – especialmente no Sul Global ou nos seus entornos geográficos imediatos – a fim de reduzir a influência de potências competidoras e assegurar a estabilidade de suas alianças (TEIXEIRA Jr., 2020).

Nesse sentido, consideramos que a competição entre Estados Unidos, Rússia e China se baseia fundamentalmente na relação dialética entre a disputa econômica por recursos naturais estratégicos e tecnologias, e a disputa político-militar e estratégica no nível global, por zonas de influência geopolítica, especialmente na periferia do Sistema Internacional. Sob essa perspectiva, disputas econômicas e político-militares se imbricam e sobrepõem umas às outras, complementando-se e representando duas faces de uma mesma moeda que compõe a estrutura do Sistema Internacional, a competição interestatal.

Compreendemos que a competição interestatal, ou seja, a combinação das disputas econômicas com as disputas político-militares entre os Estados, é uma tendência estrutural do Sistema Internacional. Esta tendência esteve presente desde a gênese do moderno sistema-mundo, sendo intensificada em todos os períodos de transição hegemônica desde então, assim como na atualidade (SILVER; SLATER, 1999; ARRIGHI, 1996, 2003).

Portanto, conforme a competição interestatal se aprofunda, aumentam as tensões e as probabilidades de confrontação direta ou indireta entre Estados Unidos e União Europeia, de um lado, e Rússia e China, de outro, especialmente em conflitos periféricos. Neste sentido, podemos observar confrontações entre as potências em conflitos como os de Ucrânia e Síria, onde Rússia, EUA e União Europeia estão diretamente engajados. Ademais, as potências também adotam posturas contrárias diante da Guerra do Iêmen e de recentes conflitos em países

5 Segundo o U.S. News & World Report (2021), no ranking de países mais poderosos estão Estados Unidos, China e Rússia, respectivamente em primeira, segunda e terceira posições. O ranking se baseia em dados como liderança, influência econômica e política, alianças internacionais e forças armadas.

como Venezuela, Afeganistão e Cazaquistão, entre outros (PUTTEN; ROOD; MEIJNDERS, 2016; TEIXEIRA Jr., 2020; TUVUCA, 2021; PAREDES, 2021; REGAN, 2022;

GONCHARENKO, 2022).

Como resultado, em seus documentos mais recentes de segurança e defesa, as três potências têm reforçado suas percepções de ameaça em relação umas às outras. A concorrência estratégica com Rússia e China é indicada como a principal preocupação de segurança da potência norte-americana, enquanto Rússia e China percebem os EUA e seus aliados (como a União Europeia e o Japão) como seus principais concorrentes (RUSSIA, 2014; CHINA, 2015;

U.S., 2018).

Do mesmo modo, consideram o acirramento da disputa interestatal como a principal tendência do sistema internacional na contemporaneidade, o que, consequentemente, leva à ameaça constante de guerras, conflitos e crises interestatais e inter-regionais. Destarte, as três potências vêm empreendendo a modernização de suas forças militares e de suas principais capacidades, desde seus equipamentos até seus conceitos operacionais (RUSSIA, 2014;

CHINA, 2015; U.S., 2018).

Assim, a competição interestatal entre as potências é inerente à busca desses países por interesses rivais. Esse processo ocorre no nível mundial e, principalmente, no nível regional, sendo, nesse sentido, importante considerar os mecanismos que as potências empregam para balancear o poder umas das outras. Sob essa perspectiva, as regiões são cada vez mais centrais para as rivalidades entre as potências, uma vez que o exercício da influência geopolítica sobre determinadas regiões é um mecanismo fundamental para uma potência acumular vantagens em termos de poder (KLIEMAN, 2015).

Essa conjuntura internacional, portanto, tem gerado desafios adicionais à resolução de conflitos no Sul Global, uma vez que as conflituosidades presentes em determinados contextos regionais têm sido utilizadas para a disputa por recursos e influência geopolítica entre EUA, Rússia e China (PAUTASSO, 2011; TROITSKIY, 2019). Em meio ao contexto de intensificação da competição interestatal, a capacidade de cooperação internacional de todos os países passa a ser fortemente condicionada pelas relações entre as grandes potências (PUTTEN;

ROOD; MEIJNDERS, 2016).

Por fim, cabe mencionar que o ambiente regional latino-americano e caribenho, no qual a América do Sul se insere, está diretamente constrangido pela presença geopolítica dos EUA, que limita a ascensão de uma potência com prevalência regional. Tal presença estadunidense se justifica, pois, para se projetar globalmente com maior liberdade, a superpotência precisa assegurar que seu entorno regional se encontra “seguro e estável”, ou que seus “flancos

geopolíticos estarão guarnecidos” (TEIXEIRA Jr., 2020, p. 10). Este tema será devidamente aprofundado no terceiro capítulo dessa dissertação.