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2. FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E ESTRATÉGICOS DA COMPETIÇÃO

2.4. DISPUTA POLÍTICO-MILITAR E REORIENTAÇÃO DAS ESTRATÉGIAS DE

2.4.1. Estratégia de Segurança dos Estados Unidos

Segundo Friedman, após 2001, os Estados Unidos perderam de vista a sua estratégia de longo prazo e passaram a supervalorizar sua capacidade de projetar poder (FRIEDMAN, 2012).

Assim, a postura expedicionária das forças estadunidenses, que foi enfatizada a partir do final da Guerra Fria, hoje deve ser substituída por uma postura de defesa mais robusta.Do ponto de vista operacional, dissuadir ou se preparar para uma guerra prolongada com outra grande potência exigiria que os Estados Unidos melhorassem as suas forças armadas (KREPINEVICH, 2020).

Desta forma, após anos de prioridade da “guerra ao terror”, o governo estadunidense voltou a concentrar sua atenção na competição entre as grandes potências. A reordenação das forças armadas, economia e do comportamento diplomático que isso acarreta continuará se destacando e, pelos próximos anos, provavelmente irá conduzir a política externa dos Estados Unidos – independentemente de partidos políticos (COLBY; MITCHELL, 2020).

Podemos considerar que o processo de reorientação estratégica estadunidense foi iniciado a partir da National Security Strategy 2015. Embora de forma sutil, é na estratégia de segurança nacional elaborada sob o governo Obama que os primeiros sinais de preocupação com a competição interestatal com China e Rússia são introduzidos. O documento menciona comportamentos coercitivos e assertivos que ameaçam a escalada de violência em territórios marítimos, especialmente na Ásia – fazendo uma referência a presença da marinha chinesa na região do Indo-Pacífico. Por outro lado, é reforçada a ideia de que os Estados Unidos estão

dispostos a cooperarem com a China e evitarem o confronto direto entre as duas potências, conforme o processo de reascensão chinesa se desenrola:

The United States welcomes the rise of a stable, peaceful, and prosperous China. We seek to develop a constructive relationship with China that delivers benefits for our two peoples and promotes security and prosperity in Asia and around the world. We seek cooperation on shared regional and global challenges such as climate change, public health, economic growth, and the denuclearization of the Korean Peninsula.

While there will be competition, we reject the inevitability of confrontation. At the same time, we will manage competition from a position of strength while insisting that China uphold international rules and norms on issues ranging from maritime security to trade and human rights. We will closely monitor China’s military modernization and expanding presence in Asia, while seeking ways to reduce the risk of misunderstanding or miscalculation (U.S., 2015, p. 24).

Quanto à Rússia, encontramos em diversos trechos do documento a menção a anexação da Crimeia por parte de Moscou em 2014, o que foi interpretado como uma agressão e demonstração de que a Rússia representava uma ameaça à segurança e estabilidade globais:

We will deter Russian aggression, remain alert to its strategic capabilities, and help our allies and partners resist Russian coercion over the long term, if necessary. At the same time, we will keep the door open to greater collaboration with Russia in areas of common interests, should it choose a different path—a path of peaceful cooperation that respects the sovereignty and democratic development of neighboring states (U.S., 2015, p. 25).

Contudo, é a partir da National Security Strategy 2017, publicada pela presidência dos EUA, e da National Defense Strategy 2018, publicada pelo Departamento de Defesa estadunidense (DoD), que a reorientação estratégica dos Estados Unidos fica mais evidente.

Segundo os documentos, os Estados Unidos estão saindo de um período de atrofia estratégica, no qual as vantagens competitivas das forças armadas do país haviam sido corroídas, e adentrando um período de reorientação da sua segurança nacional. Assim, a concorrência estratégica interestatal passa a substituir o terrorismo como principal preocupação de segurança da potência norte-americana, em um contexto no qual, segundo a percepção do DoD, o declínio da ordem internacional do pós-Segunda Guerra gera um cenário de instabilidades para a segurança internacional sem precedentes na história recente (U.S., 2017, 2018).

A retomada da competição estratégica de longo prazo pelas potências revisionistas, título que é empregado em ambos os documentos para designar a Rússia e a China, é apontada em ambos os documentos como o principal desafio à segurança dos Estados Unidos. Ainda, inclui a Coreia do Norte e o Irã como “rogue states”, ou “Estados pária”, e organizações transnacionais ameaçadoras, como grupos terroristas jihadistas, como forças eu têm competido ativamente contra os Estados Unidos e seus aliados (U.S., 2017, 2018).

Tendo em consideração que “mudanças em uma balança de poder regional podem ter consequências globais e ameaçar os interesses norte-americanos” e que “mercados, matérias-primas, linhas de comunicação, e capital humano estão localizados dentro de, ou se movem entre, regiões-chave do mundo”, a estratégia de segurança nacional prevê diferentes estratégias para diferentes regiões do mundo (US, 2017, p. 45; tradução livre). Essas regiões são a região do Indo-Pacífico, Europa, Oriente Médio, Ásia do Sul e Central, Hemisfério Ocidental e África.

Em linhas gerais, contudo, o objetivo estadunidense é impedir o avanço da influência e presença chinesa ou russa em qualquer uma dessas regiões, com especial atenção para o Indo-Pacífico, onde cresce o poder chinês, o Oriente Médio, onde a Rússia é cada vez mais assertiva, e o Hemisfério Ocidental – nome dado à América Latina, onde, segundo o documento de 2017:

Os desafios permanecem, no entanto. Organizações criminosas transnacionais – incluindo gangues e cartéis – perpetuam a violência e a corrupção e ameaçam a estabilidade dos Estados da América Central, incluindo Guatemala, Honduras e El Salvador. Em Venezuela e Cuba, governos se apegam a modelos autoritários de esquerda anacrônicos que continuam a falhar com seu povo. Os concorrentes encontraram espaço operacional no hemisfério. A China busca colocar a região em sua órbita por meio de investimentos e empréstimos liderados pelo Estado. A Rússia continua sua política fracassada da Guerra Fria, apoiando seus aliados cubanos radicais enquanto Cuba continua a reprimir seus cidadãos. Tanto a China quanto a Rússia apoiam a ditadura na Venezuela e buscam expandir as ligações militares e a venda de armas em toda a região. Os Estados democráticos do hemisfério têm um interesse comum em enfrentar ameaças à sua soberania (U.S., 2017, p. 51; tradução livre).

Neste sentido, são indicados como elementos que exigem uma reorientação estratégica dos Estados Unidos: (i) o ressurgimento da competição estratégica de longo prazo; (ii) a rápida dispersão de tecnologias; (iii) novos conceitos de guerra e competição; (iv) o enfraquecimento da ordem mundial do pós-Segunda Guerra Mundial; e (v) desafios à superioridade militar estadunidense. O DoD considera que tal reorientação deve se basear na formação de uma Força Conjunta que seja mais letal, resiliente e rapidamente inovadora, além da solidificação de aliados e parceiros, visando manter a influência estadunidense e equilíbrios de poder que favoreçam a ordem internacional vigente (U.S., 2018).

Ainda, em sua Estratégia de Defesa Nacional, se afirma que os Estados Unidos visam consolidar seus objetivos através de uma postura estrategicamente previsível, mas operacionalmente imprevisível. Isto inclui a promoção de uma mentalidade competitiva e a modernização de suas principais capacidades militares, incluindo o hardware (equipamentos), mas também os conceitos operacionais. Finalmente, os EUA também buscarão fortalecer alianças e atrair novos parceiros. Para o DoD, os custos do não cumprimento dos objetivos de

defesa dos EUA levariam à diminuição da influência global do país, corroendo a coesão entre seus aliados e parceiros e reduzindo seu acesso aos mercados, afetando os padrões de consumo que sustentam a prosperidade de sua sociedade (U.S., 2018).

Em março de 2021 foi publicado o U.S. Interim National Security Strategic Guidance (2021), uma orientação provisória para guiar a estratégia de segurança estadunidense enquanto uma nova Estratégia de Segurança Nacional é redigida sob a presidência do democrata Joe Biden. A retórica do novo governo se baseia, essencialmente, em opor governos democráticos (representados pelos Estados Unidos e seus aliados ocidentais) contra governos autoritários (representados por China e Rússia, além de Coreia do Norte e Irã). Neste sentido, o documento da nova administração considera que as principais ameaças à segurança estadunidense são as mesmas apontadas pelos documentos anteriores.

A principal reorientação do guia provisório é o forte apelo pela cooperação internacional e a defesa da democracia, além de elencar a revolução tecnológica em curso como uma questão primordial para os interesses dos Estados Unidos. Afirma-se que:

As principais potências mundiais estão correndo para desenvolver e implantar tecnologias emergentes, como inteligência artificial e computação quântica, que poderiam moldar tudo, desde o equilíbrio econômico e militar entre os Estados até o futuro do trabalho, riqueza e desigualdade dentro deles. O potencial futuro é enorme:

avanços em tecnologias de energia limpa são essenciais para desacelerar as mudanças climáticas; a biotecnologia pode desbloquear curas para doenças; a próxima geração de infraestrutura de telecomunicações (5G) definirá o cenário para enormes avanços no comércio e acesso à informação. Mudanças rápidas na tecnologia irão moldar todos os aspectos de nossas vidas e nossos interesses nacionais, mas a direção e as consequências da revolução tecnológica permanece incerta (U.S., 2021, p. 8; tradução livre).

Desta forma, se argumenta que os EUA devem reinvestir na retenção de suas informações científicas e vantagem tecnológica, para estabelecer juntamente com seus parceiros novas regras e práticas internacionais que permitam usufruir das oportunidades apresentada pelas novas tecnologias. Dessa forma, e visando evitar a dependência excessiva da estratégia estadunidense sobre o seu poder militares, o documento indica que o orçamento de segurança nacional dos Estados Unidos, ao menos pelos próximos anos, deverá priorizar novos recursos para a diplomacia e o desenvolvimento (U.S., 2021).

Portanto, nos últimos anos, os Estados Unidos têm atuado de forma agressiva contra os Estados que são considerados seus competidores internacionais. Desde 2018, o governo estadunidense anunciou sua “guerra comercial” contra a China, se retirou do Acordo Nuclear com o Irã, assinado em 2015, e do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário,

assinado com a URSS em 1987, além de manter diversas sanções comerciais e financeiras contra Rússia, China, Coreia do Norte, Turquia, Irã, Venezuela, Cuba e Nicarágua (FIORI, 2019b).