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2. FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E ESTRATÉGICOS DA COMPETIÇÃO

2.1. O FIM DA GUERRA FRIA E O MOMENTO UNIPOLAR

Os Estados Unidos emergiram da Guerra Fria como única superpotência existente, líder da economia capitalista (pois o livre-mercado teria “derrotado” a economia planificada) e um modelo de regime político e cultura a ser seguido pelo mundo. Em todos os países que conformavam o antigo Pacto de Varsóvia, o padrão de vida e consumo da sociedade estadunidense passou a ser assimilado como um objetivo a ser alcançado. Nos anos 1990, os Estados Unidos se conformaram como um império que não poderia ser desafiado ou equiparado por nenhum outro país ou até mesmo coalisão de países (GASPARINI, 2020).

Segundo Fiori:

Não houve “acordo de paz” depois do fim da Guerra Fria. Mas durante a década de 1990, o território, a população e a economia russos foram literalmente dizimados pelo avanço político e militar da Otan sobre o Leste Europeu, e pelo ataque interno dos antigos burocratas soviéticos, que promoveram uma “privatização selvagem” do antigo Estado russo (FIORI, 2021a, p. 41).

Assim, em 1990, Charles Krauthammer publicou o artigo intitulado “The Unipolar Moment”, argumentando que o mundo pós-Guerra Fria não seria multipolar, como analistas apontavam, mas sim unipolar. No centro do sistema internacional unipolar estavam os Estados Unidos como superpotência inquestionável e seus aliados ocidentais. Krauthammer considerava que a multipolaridade se tornaria uma realidade após algumas décadas, desenhando uma estrutura internacional semelhante à do período anterior a Primeira Guerra Mundial.

Entretanto, a crise que antecedeu a Guerra do Golfo de 1991 explicitava os Estados Unidos como único polo de poder mundial naquele período, devido a sua proeminência militar,

diplomática, política e econômica, que o transformava no único país com a capacidade para ser um ator decisivo em qualquer cenário de conflito em qualquer região do mundo. Por esta razão, e pelo alinhamento ideológico das principais potências ocidentais com a liderança estadunidense, o autor previa que o cenário internacional seria, pelos próximos anos, mais seguro e estável (KRAUTHAMMER, 1990).

O poder militar foi extremamente relevante para a preponderância estadunidense no cenário mundial durante a última década do século passado. Nenhum outro país poderia, nos anos 1990, estender garantias de segurança internacional por todo o sistema internacional.

Curiosamente, esse foi um período de declínio dos investimentos militares dos Estados Unidos – os quais só voltariam a crescer novamente após os eventos de 11 de Setembro. Assim, a supremacia militar dos EUA se explica pelo fim da competição com a URSS, a crescente vantagem tecnológica das suas forças militares e a decisão da maior parte das potências, como União Europeia e Japão, por dependerem militarmente da superpotência, ao invés de desenvolverem suas próprias forças militares (COOLEY; NEXON, 2020).

Ademais, Cooley e Nexon (2020) argumentam que o período pós-Guerra Fria foi marcado por uma ordem mundial liderada pelos Estados Unidos por três motivos: (I) com a dissolução da URSS, os EUA já não enfrentavam um projeto ideológico rival no nível global;

(II) os Estados que antes recorriam ao suporte econômico/logístico soviético deixaram de ter uma alternativa viável aos EUA em termos de apoio político, militar e econômico; (III) diversos ativistas transnacionais e movimentos espalhavam os valores e normas liberais pelo mundo, através da mídia e outros meios.

Com a dissolução da União Soviética, a ameaça que legitimava os altos gastos militares e a presença das forças armadas estadunidenses em diversas partes do globo estava solapada;

foi neste sentido que novas ameaças passaram a ser identificadas pelos Estados Unidos. Assim, se tornou recorrente a retórica estadunidense de que o mundo pós-Guerra Fria seria pacífico, e que as disputas globais que haviam marcado a segunda metade do século XXI seriam substituídas por disputas regionais. As ameaças internacionais de caráter não-estatal viriam a substituir as ameaças estatais da Guerra Fria e, portanto, a partir dos anos 1990, o narcotráfico, as catástrofes ambientais, o terrorismo global e os Estados ou líderes que violassem os direitos humanos e/ou a democracia passam a ser considerados como ameaças à paz e à estabilidade global (PADULA, 2018).

A estratégia de segurança dos Estados Unidos na década de 1990 esteve fundamentalmente baseada na busca por consenso dentro do Conselho de Segurança da ONU.

No momento unipolar, tal estratégia servia para os Estados Unidos convencerem outros Estados

a cooperarem com seus empreendimentos militares, ao invés de optarem pelo confronto e, assim, atuar com maior legitimidade perante a comunidade internacional (MASTANDUNO, 1997). Dessa forma, este período esteve marcado pelo debate internacional acerca do papel do multilateralismo. Krauthammer (1990, p. 25) distingue, por exemplo, o “multilateralismo real”

do “multilateralismo aparente”: o primeiro envolveria uma coalizão entre parceiros de forças equiparáveis; o segundo, o multilateralismo típico do pós-Guerra Fria, se qualificava como um pseudomultilateralismo, com uma única potência dominante agindo essencialmente de forma unilateral, mas com um “brilho multilateral” conferido pelas instituições internacionais.

Durante a Guerra Fria, as intervenções estadunidenses estavam subordinadas aos seus interesses dentro do conflito com o bloco soviético – em geral, os Estados Unidos intervinham em um conflito com o fim de apoiar qualquer regime anticomunista. Contudo, a partir dos anos 1990, as ações militares do país passam a ser mais difíceis de identificar sob um mesmo padrão, embora os Estados Unidos tenham mantido no período pós-Guerra Fria boa parte dos compromissos que assumiu quando a ameaça soviética ainda existia. Neste sentido, o país buscava manter o status quo das relações com seus aliados, ao menos em termos securitários (MASTANDUNO, 1997).

De acordo com Visentini (2009), a Guerra Fria representava um “mundo moderno”, enquanto o pós-Guerra Fria apresentava desafios típicos da pós-modernidade à Washington.

Apesar das dificuldades sistêmicas, os governos de Bush e Clinton utilizaram a ausência temporária de um competidor estratégico a seu favor, para afirmarem como valores universais a defesa da democracia liberal, da economia de mercado, da globalização neoliberal, dos direitos humanos e do ambientalismo. Neste processo o papel das organizações internacionais foi reforçado, como instituições que, baseadas nos valores estadunidenses, iriam gerar os regimes internacionais, aos quais as demais nações deveriam se alinhar. Em caso de não-aderência, os países não-alinhados deveriam sofrer as consequências – como nos casos das guerras contra Iugoslávia e Iraque, que serviam de advertência aos países que não se alinhassem (VISENTINI, 2009).

Depois de 1991, o espaço desregulado da economia mundial foi largamente ampliado, surgindo assim um tipo de “território global” sob os mandos do dólar e das intervenções militares estadunidenses. Neste momento, apesar da retórica ocidental de garantia da paz e estabilidade do pós-Guerra Fria, o sistema mundial abandonou qualquer perspectiva de ser um sistema regulado pela governança global de uma “hegemonia benevolente” e começou a ser comandado pelo novo projeto imperial dos Estados Unidos, que começou a ser delineado nos anos 1970 e na década de 1990 alcançou seu ápice (FIORI, 2007, p. 87). Assim:

Depois da queda do Muro de Berlim, o bombardeio de Bagdá, em 1991, cumpriu um papel equivalente ao bombardeio atômico de Hiroshima e Nagasaki, em 1945: definiu o poder e a hierarquia do sistema mundial, depois do fim da Guerra Fria [...] Foi assim que, depois do fim da União Soviética e da Guerra Fria e no auge da globalização financeira, o mundo experimentou, na década de 1990, pela primeira vez na história, a possibilidade real de um império global (FIORI, 2007, p. 87).

Apesar disso, em um primeiro momento, a condição hegemônica dos Estados Unidos esteve encoberta pela comemoração da “vitória ocidental”, a propagação do discurso em prol da globalização e a tese do fim da história. O período Clinton, quando a agenda globalista foi amplamente difundida, esteve, após 1993, marcado por um forte ativismo militar, apesar de sua retórica pacifista de integração comercial. Entre 1993 e 2001, estima-se que os Estados Unidos fizeram mais intervenções que em toda a Guerra Fria – neste sentido, ao observarmos o expansionismo militar estadunidense, latente muito antes dos ataques de 11 de Setembro, compreendemos que o rápido avanço geopolítico dos Estados Unidos sobre territórios que haviam estado sob influência soviética até 1991 já apresentava elementos do projeto de

“império global” da potência norte-americana (FIORI, 2007).

Os EUA começaram a ocupar o espaço que esteve sob influência geopolítica da antiga URSS pelo Báltico, avançando pela Europa Central, Ucrânia e Bielorrússia, agindo pela

“pacificação” dos Bálcãs e finalmente chegando até a região da Ásia Central e o Paquistão, em um movimento de ampliação das fronteiras da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), mesmo sem o voto favorável dos países europeus. Na virada do milênio, as novas bases militares estadunidenses formavam uma espécie de “cinturão sanitário”6, separando a Rússia da Alemanha e da China, consolidando os EUA como um poder militar global que contava “com mais de 700 bases ao redor do mundo, com acordos de ‘apoio militar recíproco’

com cerca de 130 países, com o controle soberano de todos os oceanos e com a capacidade de intervenção quase instantânea em qualquer ponto do espaço aéreo mundial” (FIORI, 2007, p.

88).

Do ponto de vista econômico, após o colapso do bloco soviético observou-se o avanço acelerado da globalização neoliberal em todo o globo, com o aumento dos fluxos comercial e financeiro, avanços tecnológicos, a tendência a privatizações/desregulamentações e internacionalização de empresas e o aprofundamento da divisão da produção no nível mundial

6 Cabe mencionar a relação desta estratégia com a Estratégia de Contenção, elaborada por Nicholas Spykman

(1944) após a Segunda Guerra Mundial. Tal estratégia orientou a política de segurança dos Estados Unidos por toda a Guerra Fria, e preconizava o controle geopolítico por áreas litorâneas e/ou periféricas do continente eurasiático (controle sobre Rimland), como forma de conter a expansão do poder soviético (considerando que a URSS ocupava o Heartland).

(VISENTINI, 2009). No fim da década de 1990, o dólar havia assumido completamente o papel de moeda oficial do sistema monetário internacional, cujo único padrão de referência era o próprio poderio americano e seu Banco Central, o FED. Os títulos da dívida pública estadunidense se consolidaram como a base do novo sistema monetário que se formava, sendo utilizados como reserva e ativo financeiro por diversos governos do mundo (FIORI, 2007).

A Guerra Fria foi um período em que a atenção estadunidense esteve fundamentalmente voltada para o combate ao desafio soviético, em termos econômicos e securitários. A partir de 1991, a estratégia estadunidense, tanto econômica quanto militar, passou a tomar novos caminhos, com vistas a consolidação do seu poder mundial como única superpotência do Sistema Internacional. Entretanto, o século XXI trouxe aos Estados Unidos novos desafios em termos de competição interestatal, criando os contornos de um cenário internacional ainda mais conflitivo – que será o tema da nossa próxima seção.

2.2. A CRISE DA UNIPOLARIDADE ESTADUNIDENSE E A REASCENSÃO DAS