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A crise dos sete anos: para um entendimento dessa idade psicológica

CAPÍTULO 1 AS RELAÇÕES ENTRE O ENSINO E O DESENVOLVIMENTO DA

1.3 A Teoria das Idades Psicológicas: subsídios de Vigotski e Elkonin

1.3.1 A crise dos sete anos: para um entendimento dessa idade psicológica

Segundo Vigotski (2006), a criança aos sete anos passa por uma crise, um período de transição marcado por saltos qualitativos de desenvolvimento. Ela deixa de ser um pré- escolar, mas ainda não se sente uma criança em idade escolar. Vive um momento de crise psicológica que poderá, ou não, dependendo grandemente de sua experiência social, representar um momento de saltos qualitativos importantes para seu desenvolvimento.

O autor aponta, como uma das primeiras características da mudança psicológica da criança neste período (escolar), a perda da espontaneidade infantil. No pré-escolar, “a razão da espontaneidade infantil reside em que [a criança] não diferencia suficientemente a vida interior do exterior” (VIGOTSKI, 2006, p. 377). Ela ainda não distingue de forma consciente a diferença entre sua condição interna e as condições externas de seu desenvolvimento; para ela essas dimensões fazem parte de um todo indivisível, no qual se considera como uma extensão da realidade objetal vivida. Por isso, neste período a ingenuidade infantil salta aos olhos do adulto, revelada em sua espontaneidade diante dos acontecimentos externos da vida.

Aos poucos, o escolar percebe que não é tal extensão, e desenvolve a consciência de sua individualidade social. Toma consciência das distintas dimensões de sua vida (interna e externa) ao incorporar em sua conduta uma atividade intelectual que permite mediar o desenvolvimento das capacidades internas e apreender a experiência social: a capacidade de abstrair aspectos da realidade e generalizá-los. Em outras palavras, a capacidade de “despregar”, descolar, da realidade material, sua representação mental, seu significado e, a partir daí, atribuir-lhe novos sentidos, novas generalizações.

Ao criar a representação mental do significado social de uma cadeira, por exemplo, é atribuído um significado/conceito a ela. Ao utilizar o vocábulo cadeira na expressão: levei um “chá de cadeira”, atribui-se um novo sentido à palavra, quer dizer, realizam-se generalizações do significado7 de cadeira, atribuindo-lhe outro sentido. Segundo Vigotski, “[...] do ponto de vista psicológico o significado da palavra não é senão uma generalização ou conceito. Generalização e significado da palavra são sinônimos” (VIGOTSKI, 2010, p. 398, grifo nosso). Novas atribuições de sentidos ao significado/conceito de uma palavra representam novas generalizações, uma ampliação desse conceito.

Por meio do desenvolvimento das ações mentais superiores [psíquicas superiores], mediado8 pelos instrumentos e os signos9 postos na realidade material, o pensamento infantil passa por uma reestruturação interfuncional que lhe permite orientar de forma consciente a sua vivência. A reestruturação interna desencadeada pelas abstrações e generalizações contínuas da realidade, mediada pelos instrumentos e signos, provoca no sujeito o desenvolvimento consciente de suas ações, fato que lhe permite (re)significar a atividade humana e atribuir novos sentidos à sua vivência. Ao estudar o desenvolvimento dos conceitos científicos na infância, Vigostski enfatiza que:

7 Vigotski (2010) realiza um estudo profundo e importantíssimo sobre o processo de desenvolvimento

do significado da palavra (capítulo sete do livro A construção do pensamento e da palavra), que vale a pena ser motivo de estudo.

8 Entenda-se por mediação a intervenção de um elemento ou de uma pessoa na relação recíproca do

sujeito (a criança) com a realidade que o circunda.

9 Entenda-se por signos as formas socioculturais desenvolvidas para representar algo ou alguma coisa.

Uma forma de representação da realidade socioculturalmente estabelecida. Por exemplo, a linguagem é um signo sociocultural criado para representar a forma de comunicação humana. Isto é, os signos não são os objetos em si, mas a sua representação. Por exemplo, a palavra criança não é a criança em si, mas a representação mental dela.

[...] tomar consciência de alguma operação significa transferi-la do plano da ação para o plano da linguagem, isto é, recriá-la na imaginação para que seja possível exprimi-la em palavras. Esse deslocamento da operação do plano da ação para o plano do pensamento conjuga-se com a repetição daquelas dificuldades e daquelas peripécias que acompanham a assimilação dessa operação no plano da ação (VIGOTSKI, 2010, p. 275).

A criança torna-se consciente de sua vivência por meio de uma transformação interfuncional das funções psíquicas superiores, em que a capacidade de generalização lhe dá a possibilidade de deslocar-se do campo das ações com os objetos para o campo do pensamento. Por meio da atividade intelectual, do pensamento, a criança recria, reestrutura a ação sem necessariamente estar diretamente agindo sobre ela, consegue expressá-la e modificá-la em pensamento verbal, ou pelo uso da linguagem que reorienta sua ação.

Aqui a criança passa das introspecções sem palavras para as introspecções verbalizadas. Desenvolve uma percepção interior do significado de seus próprios processos típicos. [...] a passagem para a introspecção verbalizada não é senão uma generalização iniciante das formas típicas de atividade. A passagem para um novo tipo de percepção interior significa passagem para um tipo superior de atividade psíquica interior. Porque perceber as coisas de modo diferente significa ao mesmo tempo ganhar outras possibilidades de agir em relação a elas (VIGOTSKI, 2010, p. 289).

A criança passa do pensamento sem o uso das palavras para o pensamento verbalizado. Uma atividade com o uso da fala interna articulada ao uso da linguagem simbólica, um pensamento verbalizado. Um pensamento que possibilita à criança refletir utilizando a linguagem como instrumento mediador entre ela mesma e a realidade de seu entorno. O pequeno ser adquire a capacidade de utilizar a linguagem como instrumento para generalizar e atribuir novos sentidos às atividades tipicamente humanas. Nas relações do eu e os outros, o eu sou diferente do outro, mas não sei quem sou,a criança atribui sentido às suas experiências externas e, ao mesmo tempo, toma consciência de sua individualidade. Tal movimento lhe possibilita a interfuncionalidade do pensamento (antes sem o uso linguagem, agora verbalizado) e a capacidade de dirigir a própria ação de forma consciente.

Uma das peculiaridades das crianças de sete anos evidenciadas por Vigotski (2006) consiste em que as vivências infantis adquirem sentido. Em meio à crise psicológica decorrente das neoformações10 psíquicas provocadas pelos conflitos internos vivenciados, sejam decorrentes das exigências da situação escolar ou das necessidades e desejos de sua

10 Entenda-se por neoformações as novas formações psíquicas provocadas pelos conflitos internos

própria personalidade, a criança toma consciência de suas ações e de sua individualidade. Assim,

Aos sete anos se forma na criança uma estrutura de vivência que lhe permite compreender o que significa “estou alegre, estou desgostoso, estou enfadado”, “sou bom”, “sou mau”; quer dizer, nela surge a orientação consciente de sua própria vivência (VIGOTSKI, 2006, p. 380).

Outra particularidade dos sete anos reside no fenômeno da valorização pessoal: a criança adquire condições psíquicas para analisar seus acertos e seus erros. Neste momento emergem as primeiras generalizações conscientes da afetividade, surge a lógica do sentimento. Neste sentido, Vigotski salienta a inter-relação da criança com seu entorno “[...] se a criança é um ser social e seu meio é um meio social, se deduz, portanto, que a própria criança é parte do seu entorno social” (VIGOTSKI, 2006, p. 383).

Se a criança é parte viva do meio social a que pertence, ela o influencia e é influenciada por ele. As primeiras generalizações conscientes dos seus sentimentos, de si mesma, estão imbricadas, entrelaçadas com as análises, os julgamentos que os adultos fazem dela. Este é um aspecto importante que deve ser observado. Nessa idade as crianças estão em um grande conflito interno no qual muitas vezes terão como parâmetro sua relação com o entorno, com seu grupo de convívio. Em outras palavras, a autoestima, a autovalorização, a imagem positiva de si mesma depende da relação que a criança estabelece com as pessoas à sua volta.

Segundo Vigotski (2006), para se analisar a personalidade e o meio em que vive a criança, temos como unidade de análise (inter-relação personalidade/entorno) a sua vivência, entendida “[...] como a relação interior da criança como ser humano, com um ou outro momento da realidade. Toda vivência é uma vivência de algo. Não há vivência sem motivo, como não há ato consciente que não fora ato da consciência de algo” (VIGOTSKI, 2006, p. 383). A unidade entre os elementos condicionantes e a sua própria personalidade possibilitará à criança as condições de perceber algo, seja em relação à própria subjetividade ou ao seu entorno. O ato de conscientizar-se desse algo modifica a forma de a criança se relacionar consigo mesma. Por exemplo, uma criança triste, nessa idade, passa a ter consciência de sua tristeza.

[...] Deste ponto de vista, a essência de toda a crise reside na reestruturação da vivência interior, reestruturação que muda o momento essencial que determina a relação da criança com o meio, quer dizer, as mudanças de suas

necessidades e motivos que são os motores de seu comportamento. O incremento dos câmbios das mudanças de suas necessidades e desejos é a parte menos consciente e voluntária da personalidade e, na medida em que a criança passa de uma idade a outra, nascem nela novos impulsos, novos motivos, ou, dito de outro modo, os propulsores de sua atividade experimentam um reajuste de valores. O que antes era essencial para a criança, valioso, saboroso, se faz relativo ou pouco importante na etapa seguinte (VIGOTSKI, 2006, p. 385).

O que constitui a estrutura da consciência da criança é a vivência, que tem em sua gênese uma orientação biossocial. Os motivos e as necessidades que surgem em cada período do desenvolvimento e o movimento contraditório das condições internas infantis provocam uma crise ou um conflito, que em sua essência traduz um período de transformação íntima da criança em relação com o entorno. O desenvolvimento da consciência, das neoformações psíquicas geradas por esse momento propulsiona a reestruturação dos desejos e das necessidades psíquicas da criança, a qual desencadeia mudanças na percepção da realidade e na sua forma de agir sobre ela. A superação das crises ocasiona um salto qualitativo no desenvolvimento.

O entendimento da idade psicológica e da natureza da crise dos sete anos foi extremamente valioso para organizar e desenvolver as atividades de ensino-aprendizagem durante a intervenção pedagógica em sala de aula. Isso foi chave para entender as vivências das crianças durante a situação experimental, orientar os seus desejos e necessidades, estimular a motivação e ajudá-las a resolver os seus conflitos de maneira compreensiva e humana. A opção do trabalho com o gênero poético permitiu a valorização da dimensão emocional e a organização dos jogos limítrofes em torno dos poemas colaborou para a organização do ensino-aprendizagem, privilegiando a unidade afetivo-cognitiva durante os encontros experimentais.

1.4 A TEORIA DO JOGO E A TEORIA DA ATIVIDADE DE ESTUDO: SUAS