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5 UTILIZAÇÃO DOS ELEMENTOS DO SONHO NO DESPERTAR: IMAGENS DA REDENÇÃO

5.2 Cristais do passado e o agora: a imagem dialética

O princípio construtivo que ergue a imagem dialética é tomado pela posição clara de Benjamin no combate ideológico: oposição direta à História Universal engendrada pelo historicismo. O método da historiografia materialista de Benjamin se traduz em imagem. Com tal método se estabelece outro tipo de relação temporal, de maneira que “o eterno de qualquer modo, é, antes, um drapeado de vestido que uma idéia” (BENJAMIN, 2007, p. 107). Isto significa dizer que, diferentemente do historicismo, a historiografia marxista não simplesmente adiciona a massa dos fatos históricos para preencher um tempo homogêneo e vazio, mas leva sempre em consideração os elementos fortuitos e transitórios que configuram as experiências próprias da vida histórica. As marcas do cotidiano são reveladoras do processo histórico.

Nesse sentido, a imagem dialética confere um novo significado às imagens oníricas produzidas em uma época determinada e permite ao historiador a tarefa de interpretar os sonhos; nela compreende-se não apenas a aparição bruta dos fatos históricos, mas também o interesse que recaiu sobre eles no processo de sua transmissão. Aí se instala uma ambiguidade produtiva segundo Benjamin (2007, p. 48): “A ambiguidade é a manifestação imagética da dialética, a lei da dialética na imobilidade. Esta imobilidade é utopia e a imagem dialética, portanto, imagem onírica. Tal imagem é dada pela mercadoria: como fetiche”. Isso não significa uma relação de identidade entre imagens oníricas e imagens dialéticas. Primeiramente, a imagem onírica representa reiteração de imagens arcaicas nas produções históricas que interpenetram o antigo e o novo. Com base nesses fenômenos, a imagem dialética introduz uma nova relação temporal na construção do discurso histórico que polariza o ocorrido (Gewesene) e o agora (Jetzt). Essa noção de polaridade entre o ocorrido e o agora marca a diferença de qualquer perspectiva sequencial e evolutiva do tempo histórico. Tal polarização do ocorrido e do agora, na construção da imagem dialética, representa, em última instância, o congelamento de um fluxo temporal. Como quero demonstrar, essa construção imagética das Passagens perde efetividade se não estiver associada à dialética do despertar: a construção de imagens dialéticas ocorre no espaço do despertar por arrancar para o presente o potencial adormecido do passado presente no que há de ambíguo nas imagens oníricas. O despertar é o espaço de jogo dessas imagens, é o órgão de uma imaginação histórica. A imagem dialética também se distingue da imagem onírica por não estabelecer pura e simplesmente uma relação de pertença ao passado, mas por se configurar como construção consciente do historiador materialista no presente. Benjamim chamava essa capacidade do historiador materialista de “presença de espírito”.

Existe uma aproximação entre a imagem dialética e o ato linguístico de nomear. No nome as coisas são desprovidas do destino, o que nele surge são apenas seus diferenciais de tempo e momentos históricos, transitórios e perecíveis: “[...] o nome é objeto de uma mímesis. De fato, faz parte de sua natureza singular não se mostrar no que virá, e sim somente no ocorrido, o que quer dizer: no que foi vivido. O hábito de uma vida vivida: é isso o que o nome preserva e também preestabelece” (BENJAMIN, 2007, p. 952). O que preserva e torna visível a imagem dialética é o tipo de experiência do ocorrido para o conhecimento histórico.

Esclareço que a apreensão do ocorrido pelo presente não se dá de maneira progressiva e cronológica. Não existem traços de sequência temporal linear ente o ocorrido e o agora, mas de uma relação dialética entre uma continuidade dos fenômenos do fetichismo da mercadoria e a descontinuidade histórica na imagem. Dessa maneira, o conceito de polaridade se estrutura na fixação dos elementos inexpressivos do século XIX, na suspensão das imagens oníricas com todas as suas contradições. Cria-se, portanto, a formação de um campo onde as linhas de força se apresentam em todos os seus vetores de significação. Como, por exemplo, a moda, que representa ao mesmo tempo o desejo convulso pela novidade na tentativa de superação do passado recente ao mesmo tempo em que integra o circuito da produção do valor. A imagem dialética opera a fixação de um através no espaço da linguagem: detém o ocorrido em uma imagem cristalizada que, sobre a forma de uma mônada, é arrancada do continuum histórico. De fato, Benjamin trata na tese XVII sobre o conceito de história:

Pensar não inclui apenas o movimento das idéias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento pára, bruscamente, numa configuração saturada de tensões ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada. O materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade revolucionaria de lutar por um passado oprimido. (BENJAMIN, 1994, p. 231).

Com a imagem dialética, os índices históricos das imagens oníricas se tornam legíveis em uma época determinada, aquela em que seu potencial alcançou seu ponto crítico no presente como se tivessem ocorrido e agora fossem sincrônicos. Por isso, cada agora é sempre o agora de uma determinada recognoscibilidade que coincide com o tempo histórico autêntico. Na imagem, ocorrido e agora se encontram em um lampejo, formam uma constelação presente na dialética em estado de paralisação: “Somente as imagens dialéticas são autenticamente históricas, isto é, imagens não-arcaicas. A imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da

recognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso, subjacente a toda leitura” (BENJAMIN, 2007, p. 505).

Em relação às fantasmagorias da história primeva do século XIX, a imagem dialética rastreia e sintetiza as potências históricas de um possível progresso social efetivo com base nas elaborações utópicas da sociabilidade moderna. Esses ínfimos ocorridos históricos, recalcados e esquecidos, apenas são liberados no despertar, onde a centralidade do presente que interpreta as cenas do passado encontra seu estatuto metodológico na construção da categoria da imagem dialética. Com o agora da recognoscibilidade que constitui a imagem dialética, o quadro suspenso dos fenômenos reificados do século XIX possuem uma nova legibilidade que aponta para sentidos diversos, os quais podem ser, conscientemente, elaborados pelo historiador. Mediante esse novo uso, é possível a liberação do passado arcaico pela apreensão do núcleo utópico não atualizado. O historiador materialista recolhe os elementos ambíguos dessa imagem no presente para poder apresentar as “correntes frias” que ainda hibernam nas imagens históricas.

Desse modo, a imagem dialética é uma construção conscientemente humana que não está submetida a potências exteriores e sobrenaturais, ou seja, às potencias míticas. Ao contrário, a imagem dialética configura um saber ainda-não-consciente do ocorrido que configura uma concretude superior e, portanto, está ligada à concepção dialética de tempo histórico: tal relação não é cronológica, mas imagética. Por isso, o método dialético não se dobra simplesmente ao seu objeto histórico, mas trata de como também se deu o interesse por tal objeto. Assim, a imagem dialética é incompatível a qualquer construção histórica submetida à ideologia do progresso, porque ela encontra o potencial perdido da história nos aspectos intermitentes, descontínuos, grosseiros ou bizarros dos fatos históricos.

Aí deveria se falar de uma crescente condensação (integração) da realidade, na qual tudo que é passado (em seu tempo) pode atingir um grau mais alto de atualidade do que no próprio momento de sua existência. O passado adquire o caráter de uma atualidade superior graças à imagem como a qual e através da qual é compreendido. Esta perscrutação dialética e a presentificação das circunstancias do passado são a prova da verdade da ação presente. Ou seja: ela acende o pavio do material explosivo que se situa no ocorrido (cuja figura autentica é a moda) (BENJAMIN, 2007, p. 436- 437).

Com base no que foi discutido, compreende-se que, para uma leitura consequente das Passagens, apenas com esse princípio construtivo da imagem dialética os objetivos do projeto ficam plenamente claros: estimar que o potencial não realizado, as vozes silenciadas e os círculos passados da existência histórica possam encontrar-se com o presente na interpretação histórica materialista. Desse contato repleto de tempo explode a constelação do

despertar, isto é, um saber ainda-não-consciente do ocorrido que abre espaço para a posição de uma memória histórica ativa, na qual o presente torna visível o conteúdo das aspirações emancipatórias malogradas.