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Sobre a proto-história do século XIX: o antigo e o moderno

4 HISTÓRIA NATURAL DO COLETIVO ONÍRICO: MEMÓRIA MATERIAL NOS FRAGMENTOS DAS PASSAGENS

4.1 Sobre a proto-história do século XIX: o antigo e o moderno

No presente capítulo, o espaço simbólico das imagens oníricas, enquanto produções sociais e históricas determinadas, será tratado com base em um uso mais copioso e direto das notas e materiais das Passagens. Para tanto, é preciso levar em conta as determinações conceituais do sonho coletivo nos próprios fenômenos culturais, em seus aspectos, imediatamente, sensíveis: a ideia da interpenetração do antigo e do novo, bem como dos conceitos de repetição e do eterno retorno do mesmo. A categoria de expressão adquire, aqui, sua exposição imagética e, consequentemente, histórica do espaço simbólico gerado na interação do uso social das forças produtivas do século XIX. No conteúdo das Passagens tais propósitos ora se sobrepõem, ora seguem em paralelo. Mediante uma montagem dos principais fenômenos trabalhados por Benjamin no projeto, vislumbra-se a conexão expressiva entre economia e cultura como condição necessária para o desdobramento do fetiche nas fantasmagorias metropolitanas do século XIX, nas quais a concretude dos fatos econômicos, os quais figuram como fenômenos originários, tem sua tradução na aparência mítica, nos termos da sua visibilidade.

A concepção do mito moderno criticada por Walter Benjamin não se encontra formulada em um plano linear e esquemático, mas em um espaço imagético. Antes de tudo, o mito é uma aparência de continuidade fomentada no espaço simbólico da sociedade, que aprisiona a vida histórica numa falsa consciência. Tal crítica do mito se repõe e reformula ao longo de toda a obra de Benjamin. O aspecto genuíno da realidade histórica é sua verdade transitória, ambígua, não harmônica, a qual não pode, portanto, ser apreendida por um esquema exclusivamente conceitual e fechado. Benjamin projeta, na fase tardia de seu pensamento, uma crítica da cultura que se assenta no comentário do mito moderno, cuja base de interpretação são os fenômenos urbanos da Paris do século XIX. O desdobramento da forma fetiche traduz-se em fantasmagorias que envolvem a extensão das trocas mercantis capitalistas, expressando-se na totalidade das formas de vida: “Tais criações sofrem essa ‘iluminação’ não somente de maneira teórica, por uma transposição ideológica, mas também na imediatez da presença sensível”. (BENJAMIN, 2007, p. 53). O elemento que condensa o sentido de tais fenômenos está na história material da constituição das passagens comerciais parisienses e o cabedal fulgurante de

suas imagens, centro das mercadorias de luxo e cenário da primeira iluminação a gás. A primeira aparição dessas novidades ganha contornos feéricos em tensão com formas mais antigas de sociabilidade. Duas condições materiais proporcionaram sua aparição: a conjuntura favorável do comércio têxtil após 1822 e o uso, em larga escala, do ferro na arquitetura. Benjamin (2007) recolhe a descrição clássica desses centros comerciais em um Guia Ilustrado de Paris, de 1852, com fins propagandísticos.

Estas passagens, uma recente invenção do luxo industrial, são galerias cobertas de vidro e com paredes revestidas de mármore que atravessam quarteirões inteiros, cujos proprietários se uniram para esse tipo de especulação. Em ambos os lados dessas galerias, que recebem luz do alto, alinham-se as lojas mais elegantes, de modo que tal passagem é uma cidade, um mundo em miniatura. (BENJAMIN, 2007, p. 40)36.

Para Benjamin (2007), o mundo da moderna sociedade produtora de mercadorias, munido de formas novas de produção material – que Benjamin denomina de “auge do capitalismo” (Hochkapitalismus) – está fortemente marcado pela reativação de forças míticas. Benjamin (2007) questiona o caráter da tese weberiana do desencantamento do mundo no processo de secularização trazido à baila pelo capitalismo. O desenvolvimento da produção de riqueza, o domínio da natureza pela ciência e a técnica, a ampliação do sistema democrático burguês não baniram do mundo profano o universo das forças sobre-humanas que atuam à revelia da consciência histórica37. As novas relações sociais, sob o signo do fetichismo da

mercadoria, provocaram um deslocamento desta esfera do “sagrado” ao elevar, inconscientemente, o modo de produção ao status de autêntica religião secular38. No contexto

36 Cf. o levantamento sociológico das passagens feitas por Palmier in PALMIER, Jean-Michel. Walter Benjamin,

Le chiffonier, l’ange et le petit bossu. Paris: Klincksieck, 2006, pp. 745-775.

37 Escrita durante os últimos anos da Segunda Guerra, já no exílio americano, a Dialética do esclarecimento de Adorno e Horkheimer guarda uma similaridade temática com a persistência do mito como elemento da alienação histórica própria da modernidade; porém, não se vale apenas do contexto europeu, mas também das ramificações do mito na sociedade, democraticamente, administrada. Cf. RUSH, Fred (org.). Teoria crítica. Trad. de Beatriz Katinskiy e Regina Rebollo. Aparecida: Ideias & letras, 2008, p. 85-104.

38 Cf. GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Teologia e Messianismo no pensamento de W. Benjamin. In: Revista Estudos

Avançados, 13 (37), USP, 1999, p. 196-197: “Benjamin tratou do fenômeno religioso em vários textos de sua

juventude, em especial: Dialog über Relogiosität der Gegenwart e Kapitalismus und Religion. Mais tarde, porém, o vocábulo desaparece quase totalmente, enquanto o tema teologia assume uma importância crescente. Poderíamos dizer, como já o fizeram muitos comentadores, que o interesse do jovem Benjamin pelo fenômeno religioso se deve à sua leitura de Max Weber e a seu entusiasmo, muito comum na época, por Nietzsche. No fragmento Capitalismo e Religião, por exemplo, as mais importantes características da Religião são os conceitos de Schuld (dívida, culpa) e de culto, o primeiro eminentemente nietzschiano, o segundo tomado a Simmel, outro modelo intelectual ao jovem Benjamin, tudo isso no contexto weberiano da ligação entre protestantismo e capitalismo. Benjamin foi assimilando a temática, discutida na época, por meio de duas noções fundamentais: o desencantamento do mundo de Max Weber e a morte de Deus de Nietzsche, duas noções das quais, no mínimo, não se pode afirmar que elas reforçam um paradigma positivo do religioso! Aliás, em numerosos textos, Benjamin ataca os substitutos religiosos medíocres que, como Max Weber já o havia bem percebido, proliferam em períodos de desencantamento, quando as grandes religiões desmoronam. / Benjamin salienta a necessidade de o pensamento, e especialmente o pensamento político, enfrentar a árida grandeza do profano sem o consolo

das relações fetichistas, o mundo moderno abriu espaço para um renascimento potente do mito, pois, conforme Benjamin (2007, p. 436), “[...] o capitalismo foi um fenômeno natural com o qual um novo sono, repleto de sonhos, recaiu sobre a Europa e, com ele, uma reativação de forças míticas”. Para Pezzella (1986), essa visada sobre o moderno, conjugada a uma teoria do mito, é o elemento novo da produção benjaminiana tardia erigida nas Passagens.

Uma reflexão originalmente teológica – a luta contra as potências míticas – se atualiza na percepção inquietante do capitalismo moderno, que é o lugar de interseção do que é o “mais novo” – a técnica – e do que é “sempre igual” – o ciclo inelutável de determinações arcaicas (PEZZELLA, 1986, p. 517).

Benjamin (2007, p. 503) sustenta que “[...] somente um observador superficial pode negar que existem correspondências entre o mundo da tecnologia moderna e o mundo arcaico da mitologia”. O campo de possibilidades proporcionado pela técnica surge associado a elementos arcaicos. A capacidade de produção da modernidade ampliada pelo desenvolvimento tecnológico impõe uma ruptura com as formas tradicionais de produção. Se tal tradição era marcada por um ritmo de vida mais lento e formações sociais mais longevas, a modernidade rompe esse horizonte comum e forja formas novas de percepção e experiência, marcadas pela efemeridade. É exatamente nessa clivagem entre o desenvolvimento das forças produtivas e o uso que o coletivo faz delas que a mercadoria fixa a imagem do sonho. Benjamin (2007), por meio da apresentação da “topografia mitológica de Paris” (BENJAMIN, 2007, p. 125), indica em epítome o quadro da fantasmagoria que perpassa fenômenos específicos da época das primeiras produções industriais:

Assim apresentam-se as “passagens”, primeiras formas de aplicação da construção de ferro; assim apresentam-se as exposições universais, cujo acoplamento à indústria do entretenimento é significativo; na mesma ordem de fenômenos, a experiência do flâneur, que se abandona às fantasmagorias do mercado. A essas fantasmagorias do mercado, nas quais os homens aparecem somente sob seus aspectos típicos, correspondem as do interior, que se devem à inclinação imperiosa do homem a deixar nos cômodos em que habita a marca de sua existência individual privada. (BENJAMIN, 2007, p. 53-54).

A justaposição desses elementos, aparentemente tão díspares, próprios da aparência social cotidiana do século XIX, configura os índices históricos da mitologia moderna. Benjamin (2007) os encara como fenômenos originários. Neles a relação entre o valor de troca e o valor de uso ainda permanecem na zona cinzenta de um limiar onde, segundo

ou o conforto de um Ersatz (substituto) da religião. A esse respeito, poderíamos citar os mais diversos textos, tais como Experiência e Pobreza, vários ensaios, um sobre o surrealismo, outros sobre Kafka, e todos os textos que versam sobre a perda da aura, desde os escritos de Baudelaire até A obra de arte na era de sua

Pezzella (1986), “A mercadoria determina a constituição simbólica dos esquemas de percepção e dá o critério da objetividade” (PEZZELLA, 2007, p. 518). Aqui, mediante a constituição desse espaço simbólico do coletivo, a categoria da expressão ganha também sua força imagética. A torrente de novidades da tecnologia traz consigo um conjunto de abstrações que alteram, significativamente, as formas de percepção de tempo e espaço tradicionais. Tal problemática liga-se às intensas transformações decorrentes da forma econômica originária do fetichismo. O processo de homogeneização e desagregação do particular, que Marx vê, primeiramente, na atividade do trabalho, põe também a problemática da constituição paradoxal da experiência humana na moderna sociedade produtora de mercadorias.

Em seu capítulo sobre o caráter fetiche da mercadoria, Marx demonstrou quão ambíguo parece ser o mundo econômico do capitalismo – uma ambiguidade fortemente acentuada pela intensificação da gestão capitalista. Isto é claramente perceptível, por exemplo, nas máquinas que agravam a exploração em vez de amenizarem o fardo dos homens. Não se relaciona a isto, de maneira geral, a ambivalência dos fenômenos com o que temos que lidar no século XIX? Um significado até então desconhecido da embriaguez para a percepção, da ficção para o pensamento? (BENJAMIN, 2007, p. 439)

As ruas-galerias das passagens comerciais, conquanto se encontrarem no limiar entre casa e rua, entre ambiente público e privado, configuram a “ambiguidade perfeita” (BENJAMIN, 2007, p. 943) dessa experiência moderna. Conforme o capítulo anterior, a ampliação da gestão capitalista que ocorre pela difusão crescente da inserção da produção do valor transmuta a qualidade em quantidade, crescentemente, em todos os setores da vida. De acordo com Benjamin (2007), a história da Paris do século XIX torna-se, para o presente histórico, a expressão mais sugestiva desse processo. Enquanto objeto de estudo, para Benjamin (2007), Paris se apresentava, para constituição do sentido dos fenômenos da vida histórica em sua abundância de documentos, tal como o Vesúvio se apresentava para a ordem natural e geográfica. Paris é, assim, tomada como uma cidade da memória.

Pouca coisa existe na história da humanidade que conheçamos tão bem quanto a história de Paris. Milhares e milhares de volumes foram dedicados exclusivamente ao estudo desse minúsculo pedaço de terra. Os autênticos guias dos monumentos da antiga Lutetia Parisorum têm origem já no século XVI. O catálogo da biblioteca imperial, que foi impresso sob Napoleão III, contém aproximadamente 100 páginas no verbete Paris – também esta coleção está longe de ser completa. Muitas das principais ruas têm sua literatura específica, e possuímos testemunho escrito sobre mais de mil de suas mais modestas moradias. Com uma bela formulação, Hofmannsthal descreveu <esta cidade> como “uma paisagem construída de pura vida”. E na atração que ela exerce sobre as pessoas age uma espécie de beleza própria de uma grande paisagem – melhor dizendo, de uma paisagem vulcânica. Na ordem social, Paris corresponde ao que na ordem geográfica é o Vesúvio. Um maciço ameaçador, perigoso, um foco de revolução em constante atividade. Mas, assim como as encostas do Vesúvio se transformam em pomares paradisíacos graças à camada de

lava que as recobriram, assim também florescem sobre a lava das revoluções, como em nenhum outro lugar, a arte, a vida festiva, a moda. (BENJAMIN, 2007, p. 122).

Benjamin (2007) pretende, portanto, escavar as camadas de sentido dessas produções culturais da vida histórica: as revoluções, a literatura, a moda etc. Um dos maiores objetivos das Passagens seria rastrear tais fenômenos como elementos da “proto-história (Urgeschichte) do século XIX”. Mas, cabe destacar, essa “história primeva” não serve de parâmetro abstrato cujas formas estariam manifestas na mera facticidade. No entanto, é para o presente que a Urgeschichte guarda seus achados, como forma originária que ganha legibilidade apenas no agora:

Apenas onde o século XIX fosse apresentado como forma originária da história primeva – isto é, como uma forma na qual toda a história primeva se renova de tal maneira que algumas de suas características antigas pudessem ser identificadas somente como precursoras destas mais novas – o conceito de uma história primeva do século XIX faria sentido. (BENJAMIN, 2007, p. 947-948).

Assim, a paisagem das passagens comerciais das grandes cidades se apresenta como um fóssil da “paisagem primeva (Urlandschaft) do consumo” (BENJAMIN, 2007, p. 903). O consumidor é tido como o “[...] último dinossauro da Europa” (BENJAMIN, 2007, p. 582). As construções do século dezenove, sob a égide do fetiche, aparecem na forma do mito, em história naturalizada que se faz nas relações sociais fetichistas: a “segunda natureza” gerada pela tecnologia se torna história natural. Daí a importância de distinguir o contrário do mito, a vida histórica. O mito não se opõe à natureza – esta também possui a sua própria história39 –, mas se

reveste de uma aparência natural perene. O mito é aquilo que permanece. Por isso, Benjamin (2007) esclarece um dos pontos norteadores de seu método nas Passagens: “Todas as categorias da filosofia da história devem ser levadas aqui até seu ponto de indiferença. Nenhuma categoria histórica sem sua substância natural, nenhuma categoria natural sem sua filtragem histórica” (BENJAMIN, 2007, p. 948). No problema da filtragem histórica da “substância natural” das

39 Em uma das entradas do Arquivo N [Teoria do conhecimento, Teoria do progresso], Benjamin registra comentário de Korsch sobre o conceito de natureza em Marx relevante para essa concepção. Cf. BENJAMIN, Walter. Passagens, p. 525: “Se em Hegel ... ‘também a natureza física intervém na história universal’, Marx concebe a natureza desde o início segundo categorias sociais. A natureza física não intervém de maneira imediata na história universal, e sim de maneira mediata, como um processo de produção material que se desenvolve desde a sua origem não só entre o homem e a natureza, mas também entre o homem e o homem. Ou, para usar uma linguagem compreensível também para filósofos: a natureza pura, pressuposto de toda atividade humana (a natura naturans econômica), é substituída, em toda parte – enquanto ‘matéria’ social, na ciência rigorosamente social de Marx –, pela natureza como produção material (a natura naturata econômica), mediada e transformada pela atividade humana social, e, com isso, ao mesmo tempo, suscetível de ser transformada no presente e no futuro”. A citação foi retirada do manuscrito da obra intitulado Karl Marx, p. 3.

produções de base técnica constata-se a força das relações sociais fetichizadas atreladas, inelutavelmente, à problemática da reativação das forças míticas em todas as esferas da vida.

O problema formal da nova arte [,por exemplo,] pode ser expressado exatamente desta maneira: quando e como os universos de formas que, sem a nossa interferência, surgiram na mecânica, no cinema, na construção de máquinas, na nova física etc., e que nos subjugaram, revelarão o que neles, pertence, à natureza? Quando será atingido o estado da sociedade em que essas formas, ou as que delas surgiram, revelar-se-ão para nós como formas naturais? De fato, isso revela apenas um momento na essência dialética da técnica. (É difícil dizer qual momento: a antítese, se não for a síntese.) De qualquer modo, também está presente na técnica um outro momento: o cumprimento de objetivos estranhos à natureza com meios que lhe são também estranhos e hostis, meios que se emancipam da natureza e a submetem. (BENJAMIN, 2007, p. 440).

A categoria da aparência também se circunscreve em torno da tensão entre história e natureza. Mais uma vez Benjamin (2007) remete à problemática de produção do valor em outra significativa nota:

Enquanto houver uma aparência histórica, ela encontrará seu último refúgio na natureza. A mercadoria, que é o último espelho ustório da aparência histórica, celebra seu triunfo no fato de a própria natureza assumir o caráter de mercadoria. Esta aparência de mercadoria da natureza encarna-se na prostituta. “O dinheiro transmite sensualidade” é o que se diz, e esta fórmula delineia apenas o contorno mais grosseiro de um estado de coisas que vai muito além da prostituição. Sob o domínio do fetichismo da mercadoria, o sex appeal da mulher toma mais ou menos intensamente as cores dos apelos da mercadoria. Não é à toa que as relações do cafetão com a sua mulher – que ele considera uma “coisa” a ser posta à venda por ele no mercado – excitam intensamente a fantasia sexual da burguesia. O reclame moderno demonstra, por um lado, quanto os atrativos da mulher e da mercadoria podem se confundir. A sexualidade que, anteriormente, fora estimulada pela fantasia do futuro das forças produtivas, de um ponto de vista social, é agora mobilizada pela fantasia do poder do capital. (BENJAMIN, 2007, p. 390-391).

Nessa perspectiva, tal “ponto de indiferença” é o cerne mesmo do fetiche, ou seja, é a localização de uma relação social que se apresenta como se fosse autônoma – uma forma naturalizada ou, mais apropriadamente, um hábito social consolidado – em relação ao terreno histórico do processo de produção que a originou, mas que, enquanto aparência natural, dissolve-se na reflexão histórica genuína. Benjamin (2007) quer, portanto, conquistar para a Urgeschichte do século XIX as formas precursoras do presente histórico contidas nas produções culturais do fetichismo. Essa ideia da Urgeschichte é fundamental para a teoria histórico- filosófica das Passagens, visto que, mediante essa noção, poder-se-ia desvelar a essência da “nova natureza” como fenômeno passageiro, dependente das demandas da produção e consumo fetichizados. Uma imagem é retida nas Passagens: a história natural como uma história primeva

significa compor os traços do caráter pré-histórico da pré-história burguesa40. A Urgeschichte

é, nesse sentido, um dos recursos mais contundentes a serviço da crítica da modernidade. O novo ritmo de vida da sociedade burguesa – que se transforma em embriaguez para a percepção e ficção para o pensamento – tem seu germe no surgimento da produção em massa de mercadorias. O coletivo, em um movimento extático, confere ao vigoroso potencial das forças sociais da produção mercantil o contorno de projeções ora utópicas, ora apocalípticas. Isto significa dizer que a atividade coletiva não consciente do processo histórico, que condiciona a capacidade de produzir mercadorias em larga escala e em pouco tempo, imprime às formas de vida moderna as imagens de tais elaborações utópicas. As relações sociais configuram-se, nesse contexto, na forma do sonho enquanto imagens oníricas, as quais podem ser caracterizadas a partir da sua expressão sensível em fenômenos concretos da produção mercantil. As formas de vida modernas são conformadas a tais imagens oníricas em uma relação tensa e ambígua com as formas antigas de sociabilidade. A massa despersonalizada e amorfa está prefigurada na produção em massa de mercadorias – as consequências desse raciocínio serão produtivas para o ensaio sobre a obra de arte.

À forma do novo meio de produção, que no início ainda é dominada por aquela do antigo (Marx), correspondem na consciência coletiva imagens nas quais se interpenetram o novo e o antigo. Estas imagens são imagens do desejo e nelas o coletivo procura tanto superar quanto transfigurar as imperfeições do produto social, bem como as deficiências da ordem social de produção. Ao lado disso, nessas imagens de desejo vem à tona a vontade expressa de distanciar-se daquilo que se tornou antiquado – isso significa, do passado mais recente. Estas tendências remetem a fantasia imagética, impulsionada pelo novo, de volta ao ‘arquipassado’ (Urvergangenheit). No sonho, em que diante de cada época surge em imagens a época seguinte, esta aparece associada a elementos da história primeva (Urgeschichte), ou