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2 A TEORIA DA RESIDUALIDADE

2.2 De onde vêm os conceitos da Teoria da Residualidade

2.2.2 Cristalização

Foi em Guerreiro Ramos, no seu livro Introdução à cultura, que Roberto Pontes teve pela primeira vez o insight da Teoria da Residualidade, segundo mencionamos anteriormente (PONTES, 2006). Nessa obra, o autor utiliza o termo cristalização, já retirado da Química, da Geologia e da Cristalografia, e aplicado, por ele, à cultura, quando diz que “toda visão grega do mundo está cristalizada em Homero, como a medieval em Dante, a renascentista em Shakespeare, e a contemporânea, talvez, em Dostoievski e Proust.” (RAMOS, 1939, p. 15) Desse trecho, inferimos que o termo cristalização é usado no sentido de congregação da visão de mundo de um povo, reunida e demonstrada na obra dos autores, que, filhos de sua época, naturalmente revelam-na em seus escritos. Parece ser essa a primeira vez que o termo é utilizado no tangente à cultura. Mas como adquiriu também o sentido de atualização?

Para responder a essa pergunta, passemos agora ao livro A necessidade da arte (2007), de Ernst Fischer, que dedicou algumas páginas ao estudo dos cristais, partindo da Química a fim de explicar a cristalização cultural. O autor afirma, primeiramente, que os cristais não são estáticos, mas, ao contrário, estão sempre em contínua movimentação e, muitas vezes, transformam-se, assumindo uma nova forma, como podemos constatar no excerto a seguir:

A rede espacial – ou, mais precisamente, o complexo ordenado de átomos associados – não é certamente estática. Não representa, pois, um rígido “princípio ordenador” metafísico. Os átomos no cristal não se acham absolutamente em repouso, imóveis, e sim em um estado de movimento, de oscilação. Cada estado de movimento possui a sua correspondente temperatura. Quanto mais elevada for a temperatura, tanto maior será o movimento e mais distanciados ficarão os átomos no espaço do cristal. A expansão da estrutura do cristal significa uma expansão de todo o sistema cristalino. Dependendo da estrutura do cristal, a expansão se realiza em diferentes direções e em diversas extensões. Como resultado, o cristal muda de forma. Em um determinado momento, no ponto de fusão ou ponto de mudança, a quantidade se transforma em qualidade, e a estrutura cristalina se modifica ou

entra em colapso como um todo. (FISCHER, 2007, p. 136, 137, grifos nossos)

O trecho mostra que é propriedade dos cristais modificarem-se de acordo com a temperatura. Aliás, eles têm a necessidade de se transformar, pois, conforme disse Fischer (2007, p. 137), alteradas as circunstâncias, “a estrutura cristalina modifica ou entra em colapso como um todo”. Ora, é exatamente o que acontece com as culturas: as circunstâncias mudam e elas têm que se modificar também, têm que se atualizar à nova realidade. Nesse processo dinâmico, alguns elementos permanecem, outros morrem. No entanto, os que permanecem não podem manter-se da mesma maneira, pois as circunstâncias são outras. Então eles se atualizam, num processo de cristalização, de transformação. Fischer relata,

inclusive, alguns exemplos da cristalização cultural, dentre os quais podemos citar o do tema do trabalho, sempre presente na arte egípcia, mas cujo significado altera-se frequentemente, ou seja, a essência permaneceu, mas o conteúdo foi modificado várias vezes, de maneira que “o estilo [egípcio] passa de uma solenidade padronizada a um realismo plebeu” (FISCHER, 2007, p. 153). Em sequência, leiamos mais um trecho do autor de A necessidade da arte:

Em certas circunstâncias, a matéria passa de um estado de desordem para um estado de ordem ou vice-versa. Sob certas condições (que, de nenhum modo, são condições espirituais e sim condições altamente materiais), os átomos mudam a sua organização, a ordem reinante entre eles. Tais mudanças, preparadas por um processo gradual, ocorrem de modo instantâneo: partículas de matéria passam, de repente, de um estado caótico para um estado ordenado.

[...]

Por conseguinte, um cristal não é uma coisa “acabada”, “definitiva”, não é a corporificação de um rígida ideia de forma, e sim o resultado transitório de contínuas modificações nas condições materiais. (FISCHER, 2007, p. 137, 138) Quando se fala em cristalização, muitas pessoas têm a ideia de algo estático, acabado, mas, como podemos perceber na citação precedente, nem a estrutura dos cristais estudados pela Química é definitiva, quanto mais se falarmos de cristalização cultural. É um processo contínuo, ininterrupto, sem fim, que ocorre gradativamente, quase sempre a olhos não vistos, pois que, em geral, observados apenas posteriormente. A cultura e, dentro dela, a literatura, não pode estar isenta dessas repetidas atualizações, pois as sociedades também não são organismos estáticos. Mudam-se as circunstâncias, muda-se a forma das manifestações culturais, embora a essência de muitas dessas permaneça. É o que nos mostra Fischer:

Qual é, então, a propriedade dos átomos que os capacita a tomarem posições ordenadas, sob determinadas condições? Cada átomo, num cristal, tem o seu raio de ação, suas exigências de espaço. Esse raio de ação não é constante, essas exigências não são as mesmas para quaisquer que sejam as circunstâncias, o que significa que não derivam de qualquer “princípio ordenador”. Mudam quando as circunstâncias mudam e obedecem à lei dialética da interação. (FISCHER, 2007, p. 138)

Observamos, assim, que, de fato, a cristalização é um fenômeno dinâmico, em contínua movimentação. Entretanto, logo que ocorre uma atualização, passa-se por um período de relativa estabilidade, até que venha novamente a necessidade de transformação, precedida por uma metamorfose gradativa de determinada manifestação cultural ou literária. Com Fischer ficam corroboradas nossas palavras:

estabilização temporária de condições materiais. O conteúdo incessantemente se transforma: às vezes imperceptivelmente, às vezes em ação violenta. O conteúdo entra em conflito com a forma, fá-la explodir, e cria novas formas nas quais o

conteúdo transformado encontra, por sua vez, nova e temporária expressão estável. (FISCHER, 2007, p. 143)

Portanto, a cristalização é o processo de atualização de um fenômeno cultural, que tem sua denominação justificada desde os primórdios da utilização desse termo, ainda na Química. Ao ler Guerreiro Ramos (1939), Roberto Pontes (1999) já percebera a relação entre a Química, a Cultura e a Literatura quanto aos cristais, pois compara a cristalização a uma modificação do “mineral bruto tornado joia na lapidação” (PONTES, 2006, p. 9). Ernst Fischer (2007), em A necessidade da arte, vem, assim, robustecer a observação já feita por Pontes, explicando detalhadamente os mecanismos dos cristais com base nos processos químicos. Nessas fontes bebeu também Roberto Pontes (1999) para formular e aprimorar, juntamente com sua equipe de pesquisadores, a Teoria da Residualidade.