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4 RESÍDUOS DO AMOR MEDIEVAL EM MARÍLIA DE DIRCEU

4.1 Elementos gerais e comuns a toda a obra

Primeiramente, é relevante voltarmos nossa atenção para o sentimentalismo

exacerbado presente no poema, de forma que a razão está sujeita à emoção. Todavia,

quando falamos de Neoclassicismo, dentro do qual se encaixa o Arcadismo, pensamos num período acentuadamente racionalista, de retorno aos moldes clássicos, de contenção dos sentimentos. Segundo Antonio Candido (s/d, p. 37), “a literatura [arcádica] seria [...] expressão racional da natureza, para assim manifestar a verdade”. Então, o Arcadismo e o Neoclassicismo pregavam a razão acima de tudo, inclusive do amor. No entanto, se examinarmos atentamente o poema de Tomás Antônio Gonzaga, veremos que ele se apresenta de maneira bem diferente daquela pela qual é costumeiramente considerada. Para exemplificar, observemos alguns trechos da lira IV, da parte 1, em que o poeta se dirige à Marília:

Mal vi o teu rosto, O sangue gelou-se, A língua prendeu-se, Tremi, e mudou-se Das faces a cor [...]

Se alguém te louvava, De gosto me enchia; Mas sempre o ciúme No rosto acendia Um vivo calor. [...] Se estavas alegre, Dirceu se alegrava; Se estavas sentida, Dirceu suspirava À força da dor. (GONZAGA, 2004, p. 17-18)

O tom dessa lira é o que anima todo o poema de Gonzaga, voltado para a explosão dos sentimentos, todos eles exagerados e, muitas das vezes, melancólicos – amor, dor, ciúme, alegria, dentre outros. Observemos que o amor transformou Dirceu. Assim como a lira de Orfeu transformava os homens e amansava as feras, o amor de Marília tinha poder transformador, pois, ao vê-la, o sangue de Dirceu gelava, seu rosto mudava de cor e seu estado de espírito era sempre o mesmo da amada.

Exemplo ainda mais claro está no início da lira III, da parte 1, em que o poeta afirma que quem não ama, quem “despreza uma beleza” precisa da luz da razão, o que

demonstra que a razão e as luzes do Iluminismo, em Marília de Dirceu, levam ao sentimento, parecendo estarem sujeitas a ele, o que se confirma no decorrer da obra, uma vez que o amor e a dor são as duas pontas que guiam e em torno das quais gira o poema de Gonzaga. Leiamos o trecho da lira mencionada:

De amar, minha Marília, a formosura Não se podem livrar humanos peitos. Adoram os heróis; e os mesmos brutos Aos grilhões de Cupido estão sujeitos. Quem, Marília, despreza uma beleza,

A luz da razão precisa; E se tem discurso, pisa A lei, que lhe ditou a Natureza. (GONZAGA, 2004, p. 16)

Já na parte 2 da obra, encontramos na lira II a mais famosa manifestação de sentimentalismo presente em Marília de Dirceu, quando o poeta diz:

Eu tenho um coração maior que o mundo! Tu, formosa Marília, bem o sabes:

Um coração..., e basta, Onde tu mesma cabes. (GONZAGA, 2004, p. 79)

Esse fragmento do poema de Gonzaga poderia resumir toda a obra, constituindo uma conclusão de todas as palavras de Dirceu dirigidas à Marília. Tudo o que diz o poeta nas trinta e três liras da primeira parte e nas trinta e oito da segunda pode ser sintetizado nesses quatro versos. Afinal, todas as declarações de Dirceu foram ditas porque ele ‘tem um coração maior que o mundo’ e porque é Marília que habita esse coração. Dessa forma, o poeta deixa de lado a razão e permite que o amor assuma o comando e guie os seus passos. Assim, observamos que, em Marília de Dirceu, apesar da roupagem neoclássica do culto iluminista da razão, prepondera um sentimentalismo exacerbado, em que domina a emoção. Os resíduos medievais, então, sobreviveram graças à força de adaptação ao novo contexto, cristalizando-

se em novo tempo e novo espaço. Além disso, percebemos que o Arcadismo é um dos

primeiros passos em direção ao Romantismo, podendo ser representado pelo deus Jano, de duas faces, uma voltada para o passado e outra para o futuro. Dessa maneira, além do resíduo medieval, mais especificamente do imaginário trovadoresco, encontramos também, em

Marília de Dirceu, um resíduo antecipatório do imaginário romântico vindouro. Portanto, a

obra apresenta-se como um híbrido formado pela mescla de, pelo menos, três culturas – a medieval, a neoclássica e a romântica, embora nos detenhamos sobretudo nas duas primeiras.

Outra característica medieval – e também romântica – presente em Marília de

Dirceu é “a presença de confidentes da tragédia amorosa”, isto é, o confessionalismo,

caracterizando uma poesia de cunho subjetivo (SPINA, 1991, p. 24-25). Conforme explica Tavani (1988, p. 120), a cantiga de amor galaico-portuguesa era

Uma autêntica confissão de amor, que provoca quase sempre ou o desdém da dama, ou um anúncio que pode ser impessoal ou dirigido a um determinado interlocutor (Deus, Amor, os olhos do poeta que foram medianeiros da paixão, os amigos e confidentes, os que sofrem de amor, etc.), ou ainda a desconsolada constatação de que amar e servir não só não comportam recompensa (galardon, prol ou ben) mas que, pelo contrário têm como resultado alienar ao poeta a simpatia ou o afável convívio da senhora e até provocar o ressentimento, o desdém, a ira e mesmo a vingança dela.

As últimas palavras de Tavani (1988) não se aplicam diretamente a Marília de

Dirceu, em que a amada é cruel, mas aparenta corresponder em alguns momentos, consoante

veremos. No entanto, as palavras iniciais acerca do confessionalismo confirmam-se no poema de Gonzaga, pois o poeta a todo momento confessa os seus sentimentos, em geral para a própria amada, mas, em alguns momentos, para seus amigos, como podemos verificar na lira XV, da parte 1, e na lira VII, da parte 2. Leiamos os exemplos, transcritos a seguir:

A minha bela Marília Tem de seu um bom tesouro; Não é, doce Alceu, formado

Do buscado Metal louro.

(GONZAGA, 2004, p. 41, grifo nosso)

Meu prezado Glauceste,

Se fazes o conceito, Que, bem que réu, abrigo A cândida virtude no meu peito; Se julgas, digo, que mereço ainda

Da tua mão socorro, Ah! vem dar-mo agora

Agora sim que morro.

(GONZAGA, 2004, p. 85, grifo nosso)

Além de confidentes, o poeta de Marília também utiliza mensageiros para chegar até a amada, a exemplo dos pássaros e do próprio Amor personificado mitologicamente. Podemos observar o Amor enquanto mensageiro na lira XIX, da parte 2, em que Dirceu, preso numa “triste masmorra”, pede que Amor vá ao encontro de Marília e lhe conte o seu sofrimento:

“Se queres ser piedoso, “Procura o sítio em que Marília mora,

“E vê, Amor, se chora. “Se lágrimas verter, se a dor a arrasta, “Uma delas me traze sobre as penas, “E para alívio meu só isto basta.” (GONZAGA, 2004, p. 107)

Assim, representado alegoricamente com asas, Amor assume ares de pássaro, usufruindo da liberdade que o poeta não tem. Só Amor pode, então, levar as palavras de Dirceu até Marília, servindo-lhe de mensageiro. Essa invocação feita pelo pastor em suas liras aproxima-as ainda mais da poesia lírica galego-portuguesa, em que ocorria “a invocação de mensageiros da paixão do amante (pássaros)” (SPINA, 1991, p. 24-25).