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2 A TEORIA DA RESIDUALIDADE

2.2 De onde vêm os conceitos da Teoria da Residualidade

2.2.3 Hibridação cultural

Prosseguindo nossa trajetória pelo caminho dos conceitos que levaram à elaboração da Teoria da Residualidade, debruçar-nos-emos um pouco agora sobre a

hibridação cultural, termo oriundo da Biologia, como nos mostra Néstor Canclini:

A hibridação veio da biologia para as ciências sociais. No século XIX, a hibridação “era considerada com desconfiança ao supor que prejudicaria o desenvolvimento social. Desde que, em 1870, Mendel mostrou o enriquecimento produzido por cruzamentos genéticos em botânica, abundam as hibridações férteis para aproveitar características de células de plantas diferentes e melhorar seu crescimento, resistência, qualidade, assim como o valor econômico e nutritivo de alimentos derivados delas [...]. A hibridação de café, flores, cereais e outros produtos aumenta a variedade genética das espécies e melhora sua sobrevivência ante mudanças de hábitat ou climáticas. (CANCLINI, 2003, p. 5)

Daí, logo a hibridação adentra as disciplinas humanas, através da Linguística e das Ciências Sociais. No que tange à Linguística, sabemos que

o especialista em teoria literária Mikhail Bakhtin, como [Gilberto] Freyre, chamou atenção para a importância do hibridismo cultural. A noção de Bakhtin de hibridismo estava ligada a dois conceitos que foram centrais para seu pensamento, “polifonia” e “heteroglossia”, que se referem à variedade de linguagens que podem ser encontradas em um mesmo texto. Por exemplo, ele descreveu a sátira Cartas de

homens obscuros, do século XVI, como um “híbrido linguístico complexo

intencional” de latim e alemão, que ilustra a “estimulação recíproca de linguagens” que alcançou seu ponto máximo durante a Renascença e ajudou a estimular inovações literárias e a criatividade, de maneira mais óbvia na obra de François Rabelais. (BURKE, 2003, p. 52-53)

Em consequência, no que diz respeito às ciências humanas, estamos nós aqui pesquisando as relações de entrecruzamento de culturas, como prova da vinda da hibridação para os estudos de cultura e literatura. Não obstante, é importante estarmos cientes de que a

hibridação, esse processo múltiplo e dinâmico, está em toda parte e pode ocorrer em

quaisquer aspectos de uma sociedade, segundo nos confirma Peter Burke:

Exemplos de hibridismo cultural podem ser encontrados em toda parte, não apenas em todo o globo como na maioria dos domínios da cultura – religiões sincréticas, filosofias ecléticas, línguas e culinárias mistas e estilos híbridos na arquitetura, na literatura ou na música. (BURKE, 2003, p. 23)

E, diante dessa hibridação que ocorre com todas as culturas,

precisamos tomar consciência de forças centrífugas assim como de forças centrípetas. Como a história das linguagens e dos dialetos, a história da cultura em geral pode ser vista como uma luta entre estas duas forças. Às vezes uma tendência predomina, às vezes a outra, mas elas alcançam um certo equilíbrio no longo prazo. (BURKE, 2003, p. 54)

Foi em leituras como essas, dos livros Hibridismo cultural e Culturas híbridas, respectivamente de Peter Burke (2003) e Néstor Canclini (2003), que Roberto Pontes buscou as bases do conceito de hibridação cultural, tão necessário à Teoria da Residualidade. Por que, entretanto, Pontes (1999) preferiu o termo hibridação a hibridismo, que Burke utiliza?

O teórico cearense não revela claramente a resposta a essa pergunta, mas concordamos com José William Craveiro Torres (2010) quando afirma que Roberto Pontes deve ter preferido o termo hibridação devido ao significado processual e dinâmico do sufixo - ação, enquanto o sufixo -ismo transmite uma ideia de estaticidade e imobilidade, características contrárias ao processo que essa palavra comporta. Somos de acordo com a hipótese de Torres pelas mesmas razões que ele aponta: Roberto Pontes não é o tipo de teórico que utiliza um vocábulo ou outro indiscriminadamente. Para exemplificar, em seu livro Poesia insubmissa afrobrasilusa (1999), o autor constrói um neologismo – afrobrasiluso – completamente embasado linguística e semanticamente, para referir-se a uma convergência entre as literaturas de língua portuguesa da África, do Brasil e de Portugal, de maneira que até a ordem dos termos tem a sua explicação:

O sintagma literatura afrobrasilusa tem vantagens incontestáveis sobre as denominações antes questionadas e outras ainda de uso corrente, pois seu segundo termo se compõe por aglutinação, com a perda do limite “vocabular entre duas

formas que se reúnem por composição ou por derivação e assim passam a constituir um único vocábulo fonético”, tal e qual nos ensina J. Mattoso Câmara Jr.. O mesmo autor nos diz que a justaposição reúne “duas formas linguísticas num vocábulo mórfico, quando, ao contrário da aglutinação, cada forma se conserva como um vocábulo fonético distinto em virtude da pauta acentual; ex.: pré-histórico, [...]

guarda-chuva. [...] Também há nomes adjetivos, compostos por justaposição [...]

como a associação de dois nomes gentílicos (luso-brasileiro)”.

A pragmática da justaposição é, pois, manter separados os elementos do lexema; já a da aglutinação é, como vimos, nominar algo que se fundiu definitivamente, a não ser que coloquemos em dúvida o saber de J. Mattoso Câmara Jr.

Mas atenhamo-nos à questão histórica. “Todos somos gregos” – afirmava Percy Bysshe Shelley a propósito dos povos do Ocidente – “Nossas leis, nossa literatura, nossa religião, nossas artes têm raízes na Grécia” – cito cf. Fustel de Coulanges. Contudo, os mitos fundantes gregos provêm do Egito cujo território fica na África. Se por um lado admitirmos que “todos somos gregos”, e Portugal se imagina miticamente bafejado por Ulisses (donde provém Olisipo, Lisboa), a África está entranhada na fundação da Grécia antiga, dando vez a podermos afirmar que todos

somos negros. De modo que, em afrobrasilusa, deve vir em primeiro lugar o

elemento morfológico que sugere a ideia de mais remoto historicamente; o segundo deve ser o que patrocina a ideia de liame, de ponte, e este só pode ser o referente ao Brasil, pois é neste país que a fusão das etnias se aperfeiçoa, visando a integração e o entendimento mútuo; a Portugal cabe o fecho fonológico-ortográfico deste neologismo porque, em qualquer ritual, são lugares de honra sempre o primeiro e o último, os quais cabem aqui, respectivamente, aos africanos, que hoje reinventam a Língua Portuguesa, e aos lusitanos, que a modelaram a partir do Lácio. A nós, brasileiros, cabe-nos a alegria de desempenhar a função de elo aglutinante nesta palavra sonora e bela que muito bem exprime a realidade nova de uma literatura

afrobrasilusa. (PONTES, 1999, p. 165-167)

Diante de tão detalhada explicação, não podemos imaginar que um pesquisador do gabarito de Roberto Pontes, sistematizador de uma Teoria de alta funcionalidade para os estudos de cultura e de literatura, empregaria arbitrariamente quaisquer conceitos. Pelo contrário, acreditamos que cada um dos conceitos foi minuciosamente pensado e trabalhado. Assim, da mesma forma que o residual de Raymond Williams deu origem ao resíduo de Roberto Pontes, o teórico brasileiro preferiu o termo hibridação utilizado por Néstor Canclini ao termo hibridismo usado por Peter Burke, devido ao caráter dinâmico do primeiro, em detrimento do aspecto estático do segundo. Dessa forma, Pontes (1999) colheu mais um termo e adaptou-o para a boa formulação e a eficaz funcionalidade de uma teoria da cultura e da literatura, servindo-nos de instrumento de grande auxílio e esclarecimento em nossas pesquisas.