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Critério da evidência

No documento DESCARTES E A FUNDAÇÃO DO CONHECIMENTO (páginas 85-88)

3.1 Em busca de uma certeza

3.1.2 Critério da evidência

Descartes, desde as Regras, coloca o critério da evidência como o único capaz de proporcionar a distinção entre o verdadeiro e o falso e, com isto,

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possibilitar o aumento da instrução. Para ele, conhecer ou ter ciência é obter evidência, isto é, clareza e distinção. No entanto, Descartes ainda não disse como encontrar a evidência, apenas a identificou nas intuições, nas coisas simples para o entendimento, no final do processo dedutivo e aplicado à Aritmética e à Geometria. Entretanto, embora o critério de evidência tenha sido enunciado em várias passagens das obras cartesianas, ele ainda não foi devidamente esclarecido.

Na Meditação Primeira, tudo foi colocado sob suspeita, tendo sido considerado falso tudo em que se pode perceber a menor dúvida. Ao reapresentar o argumento de que se esse exercício do espírito não for suficiente para encontrar verdades, servirá para comprovar a incapacidade humana de conhecer qualquer coisa, constatamos que Descartes determina uma posição limite, uma situação de tudo ou nada: ou podemos ou não podemos conhecer. Nessa acepção, ele revisa suas dúvidas:

Mas que sei eu, se não há nenhuma outra coisa diferente das que acabo de julgar incertas, da qual não se possa ter a menor dúvida? Não haverá algum Deus, ou alguma outra potência, que me ponha no espírito tais pensamentos? Isso não é necessário; pois talvez seja eu capaz de produzi- los por mim mesmo. Eu então, pelo menos, não serei alguma coisa? Mas já neguei que tivesse qualquer sentido ou qualquer corpo. Hesito, no entanto, pois que se segue daí? Serei de tal modo dependente do corpo e dos sentidos que não possa existir sem eles? Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns: não me persuadi, portanto, de que eu não existia (DESCARTES, 1983, p. 91 e 92)?

Ao proceder à revisão de tudo o que colocou sob suspeita, a dúvida se mostra radical, hiperbólica, uma vez que assim reelaborada ultrapassa seu limite. O que Descartes pretende é uma certeza, a primeira, capaz de inaugurar a cadeia de razões do seu sistema filosófico. E é nesta ultrapassagem que, ao espírito atento, revela-se a primeira verdade, pois, quando Descartes questiona pela própria existência, ele é categórico, ao afirmar: “[...] eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou apenas pensei alguma coisa” (DESCARTES, 1983, p. 92), apesar de haver “[...] algum não sei qual, enganador muito poderoso e mui ardiloso que emprega toda sua indústria em enganar-me sempre” (DESCARTES, 1983, p. 92). O “Eu” que surge do ponto máximo da dúvida, no entanto, não é o mesmo da

Meditação Primeira. Ao encontrar o primeiro elemento de certeza, Descartes assim

Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito (DESCARTES, 1983, p. 92).

“Eu sou, eu existo”. Com essa constatação aparece exatamente o que resistiu à dúvida: não o homem de chambre ao pé do fogo, isto é, o sujeito concreto, e sim o sujeito do conhecimento. O Eu que surge da dúvida, cuja existência é incontestável e que permanecerá como primeira verdade na longa cadeia de razões cartesiana, “[...] evidencia bem o papel do ‘Grande Embusteiro’: impor [aos] pensamentos [...] uma prova de tal ordem que aquele que lhe resistir seja [...] pelo menos recebido como certo” (DESCARTES, 1983, p. 92). Nesta acepção, Alquié comenta:

A certeza que o pensamento tem de si próprio é, portanto, total, e não pode ser abalada. E nisto é mesmo necessário admitir que o Cogito não é conhecido por uma idéia semelhante a outras. Próprio de qualquer idéia é representar um ser que não é ela, e por isso é que posso sempre pôr em dúvida o seu objeto. Mas o Cogito manifesta, de forma direta, uma qualquer presença do ser do meu pensamento: a idéia que me faz conhecer que penso e o meu pensamento são uma só e a mesma coisa, de modo que a idéia que faço do meu pensamento é não tanto a idéia do meu pensamento como o próprio ser desse pensamento (ALQUIÉ, 1986, p. 78).

Após o enunciado do que conhecemos como “Cogito”, Descartes pergunta pela natureza deste “Eu” existente que acaba de afirmar. Ele teme equivocar-se a esse respeito e, como alguém que acaba de tomar consciência de si mesmo, irá analisar-se criteriosamente, pois está diante do conhecimento “[...] mais certo e mais evidente do que todos os que [já teve] até agora (DESCARTES, 1983, p. 92). Ao investigar a sua natureza, ele analisa os atributos do corpo e da alma, e conclui que sobrou-lhe, como natureza, apenas um entre os atributos pesquisados, um atributo da alma denominado “pensamento”. Só o pensamento lhe pertence, pois dele não pode ser separado. Há outras perguntas sobre essa natureza pensante e Descartes as apresenta, chegando sempre à mesma conclusão: que é uma coisa que pensa enquanto pensa. Nesta acepção declara, “[...] nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão [...], eu sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa” (DESCARTES, 1983, p. 94).

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Podemos afirmar que o critério da evidência enunciado nas obras de Descartes é inicialmente identificado no Cogito. A primeira certeza é em si mesma autoevidente. A partir dessa primeira verdade, toda a filosofia e toda a ciência poderão ser reconfiguradas com evidência, isto é, com clareza e distinção.

No documento DESCARTES E A FUNDAÇÃO DO CONHECIMENTO (páginas 85-88)