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3.1 Em busca de uma certeza

3.1.1 A dúvida

Na Meditação Primeira, ao tratar “das coisas que se pode colocar em dúvida”, Descartes inicia pela análise das crenças que formamos, no decorrer da vida, a partir dos sentidos. Ele pretende desfazer-se de “antigos prejuízos” ou “opiniões”. Nesta acepção, anuncia que irá destruir essas opiniões de uma só vez, destruindo os fundamentos nos quais tais opiniões se amparam. No entanto, apresenta seus argumentos em sequencia. No primeiro argumento a dúvida incide sobre os erros dos sentidos, pois Descartes declara que tudo o que até então havia aprendido como verdadeiro e seguro havia aprendido dos sentidos ou pelos sentidos, e que estes, por vezes se mostraram enganosos, o que o leva a ter prudência diante daquilo que uma vez já o enganou. Para Forlin (2005, p. 59), com o argumento do erro dos sentidos, Descartes coloca a primeira razão de duvidar do nosso conhecimento.

A possibilidade do erro dos sentidos, abala a crença nos dados que eles nos fornecem. Descartes pondera que em certas ocasiões os sentidos nos enganam e noutras não. Como exemplo, declara que não pode duvidar do momento que está vivendo, “[...] sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo [um] papel entre as mãos e outras coisas desta natureza” (DESCARTES, 1983, p. 86). Que não poderia negar que as mãos e o corpo que sente como seus são os seus, a não ser se estivesse em estado de perturbação. Os sentidos, propriamente ditos, ainda não estão sob suspeita. A dúvida recai unicamente sobre as “opiniões” que formamos a

partir dos sentidos, isto é, as percepções sensíveis. O que se quer saber é se essas percepções correspondem ou não aos objetos externos.

Descartes apresenta o segundo argumento: o do sonho. Este irá estender a dúvida a todo o conhecimento sensível. Segundo Forlin, “não se trata mais de suspeitar que a percepção sensível possa estar sempre me enganando, mas de suspeitar mesmo que eu possa ter uma percepção sensível” (FORLIN, 2005, p. 62), pois quando vemos ou tocamos podemos estar simplesmente pensando que vemos ou tocamos. O argumento do sonho, portanto, não supõe que os sentidos possam nos enganar. Supõe a inexistência de um mundo externo.

Diante desse argumento, Descartes admite não haver indícios concludentes para distinguir nitidamente a vigília do sono. Propõe a suposição de estarmos agora adormecidos e que, abrir os olhos, estender a mão, entre outros, são especificidades que não passam de ilusões. Propõe pensarmos que nossas mãos e nosso corpo não sejam como os vemos. Porém, mesmo que seja assim, é preciso admitir que nisto existe algo de real, pois “[...] as coisas que nos são representadas durante o sono são como quadros e pinturas, que não podem ser formados senão à semelhança de algo real e verdadeiro” (DESCARTES, 1983, p. 86). Para Alquié “[...] o argumento do sonho, que me faz duvidar de se estou acordado ou a dormir, varre simultaneamente as qualidades sensíveis e a existência das coisas” (ALQUIÉ, 1986, p. 69).

Descartes chega a considerar que coisas gerais, semelhantes aos olhos, cabeças e mãos até possam ser imaginárias. No entanto, alerta que as coisas mais simples e universais, quer estejamos dormindo ou acordados, são verdadeiras e existentes. Como exemplo cita a extensão e tudo o que à extensão se relaciona, pois estas coisas, sob qualquer condição, são consideradas existente para ele. A segunda etapa da dúvida, portanto, não atingiu as naturezas simples ou indecomponíveis, o que inclui os objetos da matemática.

Ele considera como “duvidosas e incertas” as coisas compostas, mas, as coisas muito simples e muito gerais, quer estas coisas existam ou não na natureza, quer estejamos dormindo ou acordados, contêm algo de indubitável. Esta é a condição da matemática, pois, sob qualquer circunstância, [...] dois mais três formarão sempre o número cinco e o quadrado nunca terá mais do que quatro lados” (DESCARTES, 1983, p. 87). As verdades matemáticas, apesar do segundo argumento, ficam isentas da dúvida. Isto quer dizer que os componentes de nossas

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percepções, que se apresentam como verdades naturais claras e distintas, não foram até aqui abaladas. Para Forlin, isso demonstra a independência das coisas simples, das coisas universais e da matemática em relação aos sentidos (FORLIN, 2005, p. 71).

A dúvida continua. Como novo argumento, Descartes supõe a existência de um Deus “que tudo pode” o qual o criou e produziu assim como ele é agora. Esse Deus pode ter o poder de ilusionar Descartes a ponto de fazê-lo pensar que existe céu, terra, corpos extensos e figuras, entre outros sentimentos enquanto nada disso existisse? E se o desejo desse Deus “que tudo pode” é que Descartes se engane “[...] todas as vezes em que [ele fizer] a adição de dois mais três, ou em que [enumere] os lados de um quadrado?” (Descartes, 1983, p. 87). Mas o contrário é também possível. Pode ser que Deus não o pretenda decepcionar, pois Deus é considerado soberanamente bom. Nessa fase da dúvida, tanto parece possível que Deus permita a ocorrência do engano sempre ou esporadicamente. A suposição do engano, porém, não pode ser afastada diante da simples consideração da bondade de Deus. Descartes decide então considerar a existência de um Deus que “tudo pode” e que, assim sendo, pode também enganá-lo.

Ao examinar as possibilidades de ser o que ele é, Descartes analisa as questões do destino, da fatalidade, do acaso. Mas o que descobre mesmo é que nele existem imperfeições, pois, para ele, falhar e enganar-se supõe imperfeição. E, se há um Deus que “tudo pode” e o engana, em quem é que ele pode acreditar doravante? Em nada. Resolve então suspender seu juízo sobre tudo o que até então acreditara ser verdadeiro. A dúvida está generalizada, uma vez que o Deus que “tudo pode” tem condições de fazer com que as concepções que se apresentam como claras e distintas a ele também sejam um engodo. O argumento do Deus “que tudo pode” incide inclusive sobre a natureza da razão. Doravante tudo está sob suspeita e Descartes se propõe a não esquecer isto. Tomando partido contrário às crenças e opiniões, irá fingir que todos os pensamentos delas advindos são “falsos e imaginários”. Declara que sustentará essa suposição até obter o conhecimento da verdade, ou admitir a inexistência da verdade. Suspender o juízo implica meditar e conhecer as coisas, se possível sem a interferência das antigas crenças e opiniões, as quais Descartes considerava como muito mais prováveis do que duvidosas. Diante do Deus “que tudo pode”, portanto, Descartes suspendeu o juízo.

No entanto, suspender o juízo para meditar e tomar decisões não parece suficiente a Descartes. Ele supõe agora a existência “[...] não [de] um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas [de] certo Gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que [emprega] toda a sua indústria em [enganá-lo]” (DESCARTES, 1983, p. 88) . A partir da suposição do Gênio maligno, tudo pode ser considerado como consequência dos malogros desse Gênio. Assim sendo, “[...] todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender [nossa] credulidade” (DESCARTES, 1983, p. 88). Diante do Gênio maligno, as crenças não podem mais ser mantidas. E a existência de mãos, olhos, sentidos, passa a ser considerada, como uma falsa crença: “a falsa crença de ter todas essas coisas” (DESCARTES, 1983, p. 88).

Em outras palavras, todas as coisas que até então Descartes considerava como verdadeiras passam a ser consideradas como ilusões, uma vez que o poder do Gênio maligno incide sobre tudo, inclusive a memória. Para Beyssade, “a ficção do gênio [maligno] intervém tanto para [...] fazer recusar o assentimento ao mundo sensível como às verdades matemáticas” (BEYSSADE, 1972, p. 35). Alquié comenta que a Meditação Primeira “[...] estabeleceu que nenhuma realidade exterior pode ser atingida com certeza” (BEYSSADE, 1972, p. 35). Para ele, nunca estamos “[...] senão perante uma impressão de exterioridade, impressão que pode ser ilusória, como o atestam nossos sonhos. Portanto, a realidade das coisas [escapa-nos]” (BEYSSADE, 1986, p. 77).

Admitida a possibilidade de um Gênio maligno, Descartes poderá cuidar “[...] zelosamente de não receber em [sua] crença nenhuma falsidade, e [preparar] tão bem [seu] espírito a todos os ardis desse grande enganador que, por poderoso e ardiloso que seja, nunca poderá impor-[lhe] algo” (DESCARTES, 1983, p. 89). Supor a possibilidade de engano, portanto, não é um fingimento e sim um exercício radical e metódico. Se eu sei que posso ser enganado sempre, então ficarei prevenido.

No documento DESCARTES E A FUNDAÇÃO DO CONHECIMENTO (páginas 82-85)