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Distinção entre o interno e o externo

No documento DESCARTES E A FUNDAÇÃO DO CONHECIMENTO (páginas 41-46)

Apesar do reconhecimento de que a Aritmética e a Geometria “[...] são muito mais certas do que as outras disciplinas” (DESCARTES, 1985, p. 17), Descartes não afirmou que eram únicas nem que somente a elas devemos nos dedicar, mas, apenas que, “[...] na procura do reto caminho da verdade, não há que ocupar-se de objeto algum sobre o qual não se possa ter uma certeza igual às demonstrações da Aritmética e da Geometria” (DESCARTES, 1985, p. 17). É dessa certeza que ele buscará impregnar a sua física, o que lhe possibilitará inclusive distinguir o interno do externo.

A partir da constatação da não existência de semelhança entre as palavras20 e as coisas nominadas pelas palavras (através das quais o ser humano comunica as coisas) e as concepções sobre as coisas, Descartes problematiza o princípio da semelhança, admitido desde Aristóteles. Ao considerar que entre as coisas e as palavras que as designam há apenas verossimilhança, estabelecem-se as condições para abandonar os princípios qualitativos e começar a guiar-se pelos princípios quantitativos.

Ao explicar a aparência do mundo através de um sistema mecanicista, ordenado a partir do fenômeno luminoso, a visão será o primeiro dos sentidos a ser considerado como fonte de engano por Descartes e, assim, “[...] toda a dignidade que a tradição [...] conferia [à luz], dignidade ao mesmo tempo teológica, física e

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Cavaillé observa que, ao afirmar a existência “[...] de uma diferença entre as palavras e as coisas, a linguagem e o real”, Descartes “[...] apresenta a experiência da fala como o paradigma da representação por dissemelhança” (CAVAILLÉ, 1991, p. 85).

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metafísica” (CAVAILLÉ, 1991, p. 52) se desfaz. Com isto se desfaz também toda uma rede conceitual de significações admitidas desde a Antiguidade21.

Convém elucidar que o princípio da semelhança oferecia, como explicação do mundo, a suposição de que o real ou a essência das coisas apresentavam-se à razão humana tais quais são. Descartes apresenta outra possibilidade. Declara que o externo é simplesmente extenso, isto é, pode ser dimensionado. Para ele, desde as Regras, a extensão é condição racional de representar o mundo, produzir figuras em movimento.

A física cartesiana, objeto deste capítulo, ao contrário da física de Aristóteles, é destituída de qualidades. Os fenômenos apresentados por Descartes revelam uma física unificada pela extensão, em que figuras em movimento dão conta de explicar como é o universo onde não existe o vazio. Para elucidar a inexistência do vazio, na física cartesiana, é preciso considerar que nela a concepção da matéria é geométrica, onde tudo é espaço preenchido por espaço, ou seja, tudo está preenchido como se a matéria constituísse um bloco compacto. Sobre essa questão, Descartes assim discorre na segunda parte dos Princípios de Filosofia:

Quanto ao vazio, no sentido em que os filósofos tomam esta palavra, isto é, como um espaço onde não há nenhuma substância, é evidente que tal espaço não existe no universo, porque a extensão do espaço ou do lugar interior não é diferente da do corpo. E dado que só podemos deduzir que um corpo é uma substância porque é extenso em comprimento, largura e altura, como concebemos que não é possível que o nada tenha extensão, então devemos concluir a mesma coisa acerca do espaço que se supõe vazio, isto é: dado que ele tem extensão, então é necessariamente substância (DESCARTES, 2006, p. 66).

Ao iniciar o Tratado da Luz, Descartes adverte sobre a possibilidade de haver diferença entre a ideia que temos do objeto e aquilo que está no objeto. Essa advertência, segundo Cavaillé, “[...] afeta e estrutura a nossa percepção do mundo” (CAVAILLÉ, 1999, p. 67), uma vez que Descartes mostrará, durante a apresentação de sua física, “[...] que tal diferença é radical e geral” (CAVAILLÉ, 1999, p. 67).

Por isso, ao analisar a ideia que formamos da luz a partir da visão do Sol ou da chama, Descartes pretende mostrar que entre a sensação que temos do objeto e o objeto existem diferenças. Suas observações, no entanto, são caracterizadas a

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“Para o pensamento medieval, e mais ainda para o neoplatonismo do Renascimento, o estudo da luz oferecia um meio privilegiado de apreensão dos fenômenos ontoteológicos do universo” (CAVAILLÉ, 1991, p. 52).

partir e através de analogias. Entre os exemplos que ele apresenta com essa finalidade, destacamos o que menciona a diferença que pode ser observada entre as palavras e as coisas que as palavras designam. Assim expressa Descartes:

Ora, se as palavras, cujo significado é fornecido por convenção humana, são suficientes para nos fazer conceber algumas coisas com as quais não guardam nenhuma semelhança, por que a natureza não poderia ter igualmente estabelecido certos signos que nos façam ter o sentimento de luz, ainda que esses signos não portem consigo absolutamente nada que seja parecido com aquele sentimento (Descartes, 2008, p. 22)?

De acordo com essa passagem, é certo que podemos conceber, na relação entre as palavras e as coisas, uma aproximação com a verdade, uma vez que compreendemos os discursos que escutamos, apesar de sabermos não haver, nas palavras, verossimilhança alguma com as coisas que elas designam. Outros argumentos são apresentados com vistas a evidenciar que a realidade pode diferir daquilo que é percebido pelos sentidos, especificamente através da visão pela qual percebemos a luz.

Descartes informa que o tato, apesar de ser considerado como o mais seguro dos sentidos, “[...] nos faz conceber várias idéias que não parecem de modo nenhum com os objetos que as produzem ou desencadeiam” (Descartes, 2008, p. 23). Que sendo assim em relação ao tato, podemos considerar que algo idêntico pode ocorrer em relação à visão. Daí decorre sua conclusão: “[...] é nosso espírito que nos representa a idéia de luz todas as vezes que a ação, designada por ela, toca nossos olhos” (DESCARTES, 2008, p. 22). Com essas afirmações, o critério da semelhança deixa de ser válido, pois não será mais possível admitir que os sentimentos advindos dos sentidos possam fornecer diretamente o conhecimento das coisas.

Sobre o tato ainda podemos considerar que, segundo Cavaillé, “[...] em certo sentido [ele] constituirá [...] o modelo por excelência desta teoria da percepção que inaugura, de fato, uma física de contato”, pois, “[...] em todos os textos consagrados à luz, Descartes tenta comparar a vista ao tato, a fim de mostrar que a luz é a ação instantânea de partículas de matéria sobre o olho” (CAVAILLÉ, 1991, p. 71 e 72).

Mas por que é que Descartes, em O Mundo, designa o tato como o sentido menos enganador? Ocorre que, na época de Descartes, a visão era considerada como o sentido mais enganador e o ceticismo em relação à vista era habitual, posto que muitos espetáculos exploravam a ilusão de óptica. Visando a esclarecer bem

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essa questão, acrescentamos o que Cavaillé comenta em relação à visão e ao tato. Ele considera que a visão, “[...] o sentido mais nobre, nos termos da tradição, revela- se como sendo também o menos fiável” (CAVAILLÉ, 1991, p. 73) para Descartes. Disso decorre que “contra as mentiras da vista, o último recurso do cético é o tato” (CAVAILLÉ, 1991, p. 73). Não é, portanto, Descartes que considera o tato como o mais confiável dos sentidos. Esta era uma tendência em sua época.

O que Descartes quer dizer, contrapondo tato e visão, segundo Cavaillé “[...] é que o tato é tão enganador como a visão” (CAVAILLÉ, 1991, p. 74), e, por isso, “[...] não representa o real com mais fidelidade do que a vista, e as suas ideias diferem também radicalmente das coisas (CAVAILLÉ, 1991, p. 76). Para Cavaillé, “a dúvida dos sentidos pode ser generalizada”, e a recorrência de Descartes à experiência sensível tem como único propósito “[...] pôr em causa a sua validade epistemológica” (CAVAILLÉ, 1991, p. 70). Cavaillé considera muito sutil a estratégia retórica de Descartes que, ao referir-se “[...] a um sentido para descrever outro, [...] faz ver a dissemelhança das suas imagens respectivas” (CAVAILLÉ, 1991, p. 70). Em outras palavras, isto equivale a dizer que “[...] a unidade do sensível é apenas aparente” (CAVAILLÉ, 1991, p. 70), pois “[...] a análise mostra-nos que os sentidos apenas produzem representações díspares das coisas” (CAVAILLÉ, 1991, p. 70).

Para justificar a diferença entre ideias ou sentimentos e as sensações táteis,22 Descartes apresentou dois exemplos. Considerou que o efeito “cócegas” causado pelo roçar de uma pluma na boca de uma criança em nada se assemelha a esta pluma. Que a impressão de dor causada pela pressão exercida por um cinturão no corpo de um soldado, caso a sensação “dor” fosse semelhante ao objeto “cinturão”, esta semelhança levaria o soldado a identificar imediatamente a causa de sua dor e retirar o cinturão que o auxiliara a acomodar suas armas durante a batalha ao invés de julgar-se ferido e, após a batalha, procurar socorro médico. Os exemplos apresentados por Descartes sobre os efeitos “cócegas” e “dor”, os quais comentamos, são assim enunciados por Descartes:

Ora, todos sabem que as idéias de cócegas e de dor, que se formam em nosso pensamento quando os corpos exteriores nos tocam de algum modo, não guardam nenhuma semelhança com os corpos que as produzem.

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“No Mundo o sensível está sob suspeita. Se o sentimento que temos das coisas pode ser diferente daquilo que, estando nos objetos produz em nós tais sentimentos, isso significa que o mundo não é tal qual o sensível nos permite perceber. O sentimento que temos das coisas, segundo Descartes, é ‘a idéia que se forma em nossa imaginação através de nossos olhos’” (CAVAILLÉ, 1991, p. 67).

Quando se passa levemente uma pluma sobre os lábios de uma criança adormecida e ela sente que lhe são feitas cócegas, penseis que a idéia de cócegas, que a criança concebe, assemelha-se a algo idêntico a essa pluma? Um guarda retorna de uma batalha. Podemos supor que no calor dessa batalha ele tenha sido ferido sem perceber; entretanto, quando seu corpo começa a esfriar, ele sente dor, e acredita estar ferido; são retiradas então, suas armas e é chamado um cirurgião. Ele descobre, enfim, que o que sentia era apenas um cinto ou um tipo de correia, presente nas suas armas no intuito de facilitar seu manuseio, que o prensava e o incomodava. Se de fato seu tato, fazendo-o sentir a correia ou cinto, imprimisse-lhe uma certa imagem dessa correia em seu pensamento, o referido soldado não teria tido a necessidade de recorrer a um cirurgião que lhe dissesse a causa de sua dor ou infortúnio (DESCARTES, 2008, p. 23 e 24).

A questão da sensação é alvo de variados comentários, conforme podemos acompanhar. Para Beyssade (1972, p. 53), as diferenças entre as sensações não podem instruir-nos sobre a natureza dos corpos, mas sinalizam que há diferença entre os corpos. Ele diz que as sensações têm um significado prático, uma vez que, devido a características agradáveis ou penosas, indicam a utilidade ou nocividade das coisas.23 E considera que “[...] Descartes convida-nos a ver nas sensações não cópias, mas sinais das coisas que as produzem” (BEYSSADE, 1972, p. 53). Para Cavaillé, “[...] acreditar numa semelhança entre o interno e o externo equivaleria a dizer que a idéia da comichão é semelhante a alguma coisa que está na pena” (CAVAILLÉ, 1991, p. 81).

Gaukroger considera que “[...] a função do primeiro capítulo de Le Monde foi mostrar que nossas imagens perceptivas não precisam assemelhar-se àquilo que representam” (GAUKROGER, 1999, p. 287). Em outras palavras, segundo ele, “uma sensação não precisa assemelhar-se à sua causa” (GAUKROGER, 1999, p. 287). Gaukroger diz que o exemplo do soldado que se julga ferido ultrapassa a “[...] afirmação de que o mundo pode ser diferente da imagem perceptiva que temos dele”, (GAUKROGER, 1999, p. 287) posto que “[...] Descartes tenta nos conduzir à idéia de que nossa imagem perceptiva pode sem sequer ser um guia de como é o mundo” (GAUKROGER, 1999, p. 287).

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Conforme Descartes “Os nossos sentidos não nos ensinam a natureza das coisas, mas apenas se nos são úteis ou prejudiciais” (DESCARTES, 2006, p. 60).

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